Correio da Cidadania

A insustentável leveza do financiamento da saúde

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Atenção Primária e Atenção Especializada: Conheça os níveis de assistência  do maior sistema público de saúde do mundo | Prefeitura Municipal de Olho  d'Água das Flores
O país ao optar por um sistema de saúde de acesso universal – Constituição de 1988 – firmou compromisso político e o dever de sua concretização. O reconhecimento de direito a serviços públicos de acesso universal exige ação do Estado e recursos suficientes.

Infelizmente, o SUS nasceu subfinanciado, dado que os recursos federais que lhe foram alocados eram os mesmos que financiavam os serviços do Inamps, cujo público se restringia aos trabalhadores do regime geral de previdência social. Ao expandir sua base de acesso, seus recursos deveriam ter sidos redimensionados, daí a baliza do art. 55 do ADCT que previa a alocação de 30% dos recursos do orçamento da seguridade social para a saúde até a LDO (1) lhe alocar recursos suficientes. A sustentabilidade do financiamento do SUS em três décadas nunca foi alcançada.

A inconsequência entre a teoria e a prática tem mitigado o direito posto que deságua no Judiciário em busca de sua correção. Não cabendo ao Judiciário dispor sobre o financiamento global da saúde, ele impõe ao Estado a garantia dos serviços individuais reclamados, muitas vezes, para além das políticas de saúde, desorganizando mais ainda o sistema de saúde.

O que espanta são as três décadas desse vai e vem sobre o financiamento adequado da saúde pública, com números a demonstrar às escâncaras o seu subfinanciamento. Voltar no tempo é o que sempre se faz nos debates como forma de resistência a esse permanente subfinanciamento, sem falar do constante assédio das mídias com a falsa retórica sobre o quanto o piso da saúde impede o saneamento das contas públicas, levando a crença de que cumprir a Constituição faz mal à economia, com afirmações semelhantes à ideia de que a Constituição não cabe no orçamento. Apesar de toda mitigação e constrangimentos fiscais contra garantir à população suas necessidades de saúde nesses 35 anos de SUS, não equacionaram as contas públicas federais até os dias de hoje, evidenciando que o diagnóstico da crise fiscal feitos pelas autoridades econômicas nesse período está equivocado.

Durante esses 35 anos de SUS, nenhum governo enfrentou estruturalmente o (sub)financiamento da saúde – sempre o Ministério da Saúde de um lado e a área econômica de outro, num cabo de aço que sempre arrebenta contra a população que vê suas necessidades não atendidas, o que a leva a desejar um seguro saúde como saída imediata ao seu sofrimento, quando sabemos todos não ser essa a solução, sendo que tal situação serviu de oportunidade lucrativa para o setor privado (que ainda é beneficiado pelas diferentes formas de renúncias de receitas).

Não faltam estudos a demonstrar a insustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) se o Estado (União, estados, Distrito Federal e municípios) continuar a aplicar 4% do PIB, enquanto o gasto privado aumenta já encostando em 5,7% do PIB em 2021 (2).

Os três poderes da República sentem a pressão da insustentabilidade financeira do SUS: o Judiciário com as crescentes ações judiciais; o Legislativo com projetos de leis sanitárias garantindo direito de modo segmentado; e o Executivo (nas três esferas de governo), enfrentando com muita dificuldade, principalmente o aumento de filas, epidemias, agravo de doenças.

Ao invés de se buscar uma solução fundada em estudos técnico-sanitários e econômicos que garantam recursos suficientes para o SUS, vê-se mais uma vez a área econômica do governo e as mídias discutindo o fim do piso da saúde e educação como a solução da questão fiscal brasileira, sem levar em conta primeiramente o que diz a Constituição de 1988, tampouco perguntar quanto o SUS precisa de fato. Esse filme é velho e não é bom.

Para não alongar este texto com a história de 35 anos de subfinanciamento do SUS e ataques ao piso constitucional, um exemplo das ambiguidades que cercam a alocação de recursos públicos à saúde está no piso federal da saúde em 2023, que, na realidade, não ficou definido expressamente.

Ainda que em 2022, a EC 126, de dezembro, articulada politicamente pelo atual governo junto ao Congresso Nacional, antes mesmo de tomar posse, tenha permitido alocar mais de 20 bilhões de reais no orçamento do Ministério da Saúde de 2023, medida essencial para interromper o processo de desfinanciamento provocado pela EC 95, os dilemas governamentais e legislativos da saúde não foram poucos. Vejamos.

1 - A EC 126 rezava que a partir da sanção da lei complementar dispondo sobre o novo regime fiscal, seriam revogados os artigos arts. 106, 107, 109, 110, 111, 111-A, 112 e 114 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias pondo fim do congelamento do gasto público e da regra de cálculo do piso federal da saúde da EC 95, que retirou do SUS cerca de 70 bilhões de reais no período de 2018-2022.

2 - Em agosto de 2023, a Lei Complementar n° 200 dispôs sobre o novo regime fiscal sustentável, revogando os artigos mencionados.

3 - Em outubro de 2023, o projeto de lei complementar (Lei Complementar n° 201), que estabelecia regras para as compensações financeiras devidas pela União aos entes federativos, recebeu emenda na Câmara Federal, art. 15, dispondo que no exercício de 2023, para cumprir o piso da saúde de 15% da RCL (3) “será considerada a receita corrente líquida estimada na LOA” (4) - Lei nº 14.535, de 17 de janeiro de 2023.

4 - É bom esclarecer que a Constituição reza que os 15% da RCL devem ser calculados em acordo com a receita realizada no período e não estimada.

5 - Enquanto tramitava a LC 201 no Congresso Nacional, a área econômica do Governo Federal consultou o TCU (5) sobre a data da aplicabilidade do piso da saúde de 15% da RCL: se em 2023 ou se a partir de 2024.

6 - O TCU entendeu que poderia ser exigido somente em 2024. (Observação: houve ainda uma corrente no TCU que entendia ser devido a partir de 1 de setembro de 2023).

7 - No ano de 2023, o piso da saúde ficou na berlinda quanto ao seu valor, tornando-se um piso flutuante entre 147 bilhões a 185 bilhões.

Em outros termos, a polêmica em torno do piso de 2023 pode ser resumida, conforme abaixo (ressalte-se que as propostas representavam valores menores de aplicação mínima federal em relação aos 15% da Receita Corrente Líquida da União, constitucionalmente estabelecido):

- Piso da LOA calculado em acordo à Constituição: R$ 185 bilhões

**- Piso da LOA calculado pelo artigo 15 da LC 201: R$ 172bi **

- Piso consulta-TCU: R$ 147bi

- Piso corrente interna TCU: 155 bi

- Valor aplicado pelo MS: R$ 182bi

A realidade de três décadas fala pelos seus números em relação à insustentabilidade do financiamento da saúde.

- União: aplica 1,6/1,7% do PIB (há três décadas)

- PIB: 4% do PIB – R$ 363bi em saúde pública

- Per capita saúde pública: por volta de 1.600 reais (ou cerca de R$ 4,00 per capita por dia)

- Per capita saúde privada: quase o dobro da pública, que é o oposto do que ocorre nos países com sistemas de saúde de acesso universal, em que gasto público está situado entre 60% e 70% do gasto total.

Essa insustentável leveza do orçamento público da saúde, que flutua no ar, resulta em ações e serviços de saúde insuficientes às necessidades das pessoas, o que nos leva a questionar até quanto a insustentabilidade do SUS sonhado pela reforma sanitária.

Enquanto continuamos a mesma discussão de três décadas, a caravana passa: o capital estrangeiro continua sem julgamento pelo STF (ADI 5.435) e sem regulação, assim como as clínicas populares; a precarização dos vínculos dos trabalhadores continuam sempre crescentes; as isenções na saúde não são revistas, como merecem; as emendas parlamentares mantém-se desvinculadas do planejamento da saúde; as parcerias e o regime da complementaridade no SUS estão na casa dos 85% dos serviços de médio e alto custo.

É preciso falar com a sociedade e os três poderes da República sobre a vinculação de recursos mínimos da saúde para que o direito fundamental à vida e à saúde seja cumprido de forma satisfatória e o orçamento da saúde possa ser verdadeiramente sustentável.

1) Lei de Diretrizes Orçamentárias.

2) Fonte: Estudo recentemente publicado Conta-satélite de saúde – Brasil: 2010-2021 pelo IBGE, Coordenação de Contas Nacionais, disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/9056-conta-satelite-de-saude.html?=&t=publicacoes  - acesso em 11 de abril de 2024) .

3) Receita Corrente Líquida.

4) Lei Orçamentária Anual.

5) Tribunal de Contas da União.

Lenir Santos é advogada, doutora em saúde coletiva pela Unicamp, professora colaboradora da Unicamp, e presidente do Idisa – Instituto de Direito Sanitário Aplicado.

Francisco R. Funcia é economista e mestre em Economia Política (PUC-SP), doutor em Administração (USCS), professor dos cursos de Economia e Medicina da USCS e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES).

Fonte: Instituto de Direito Sanitário Aplicado.

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