Correio da Cidadania

A pregação rentista

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O governo brasileiro, como qualquer governo que emite moeda soberana, não pode ficar sem dinheiro. A ideia de que qualquer governo pode quebrar é todo dia disseminada na grande mídia por artigos de opinião pregando o ajuste fiscal para evitar risco de calote da dívida pública em moeda nacional. É interessante tornar claros os principais pressupostos que formam a base dessas teorias.

O primeiro erro é afirmar que o governo deve tomar empréstimos para financiar seus déficits, porque imprimir dinheiro causa inflação. Todos os gastos do governo assumem a forma de um crédito, portanto aumentam a oferta de dinheiro. Se isso causasse hiperinflação, teríamos hiperinflação o tempo todo.

O segundo pressuposto errado é o da existência de uma lei que governos devem tomar empréstimos para financiar déficits. Existem regras relevantes que regem os procedimentos operacionais. O Tesouro está proibido de sacar a descoberto em sua conta de depósito no Banco Central e este, por sua vez, não pode comprar títulos diretamente do Tesouro (nova emissão). Para simplificar, podemos dizer que o Tesouro não pode “emprestar” diretamente do Bacen (com algumas ressalvas, pois as regras às vezes são relaxadas).

Já o terceiro pressuposto está correto. Mas é aqui que as coisas ficam difíceis. O Bacen é o banco do Tesouro Nacional. Assim como recebe ou faz um pagamento eletrônico, o Bacen credita as reservas do banco do destinatário, e esse banco credita a conta de depósito de seu cliente. Quando o Tesouro recebe um pagamento, como, por exemplo, o pagamento de algum imposto de um ente privado, o Bacen debita as reservas do banco do pagador, e esse banco debita a conta do cliente. Se o Tesouro faz mais pagamentos do que recebe, o Bacen acumula reservas bancárias líquidas e esses bancos criam dinheiro líquido de novos depósitos. Aqui surge um problema.

Os créditos de reserva líquida exercem pressão descendente sobre as taxas de juros, à medida que os bancos com reservas extras os emprestam no mercado de títulos públicos. O Bacen paga juros sobre as reservas, mas com a menor taxa do país. Os bancos que buscam lucro esperam melhores retornos, mas preferem manter ativos seguros e líquidos. Títulos do Tesouro Nacional se encaixam na operação.

Se o Tesouro está sacando da sua conta no Bacen, gastando mais do que arrecada em impostos, ele vende títulos. O Bacen lida com as vendas. Quando os títulos são vendidos diretamente aos bancos, eles usam reservas em pagamento. Se um fundo de pensão, empresa ou família comprar um título, as reservas de seu banco serão debitadas e seu banco debitará seus depósitos. Quando o Bacen debita reservas bancárias, ele credita na conta do Tesouro. A conta de depósito do Tesouro no Bacen é recomposta, para que possa fazer pagamentos sem violar a proibição de sacar a descoberto, tipo cheque especial, ou venda direta de títulos ao Bacen.

Se os banqueiros mudarem de ideia e decidirem que preferem ter reservas, o Bacen compra títulos que o Tesouro acabou de vender. Essa é uma compra de mercado secundário, perfeitamente legal, e algo que o Bacen vem fazendo para evitar ter que elevar os juros.

Esta é a verdadeira razão pela qual o Bacen define as taxas de juros, não pelo déficit fiscal ou por risco de calote da dívida. Ele a mantém alta por causa da taxa do banco central americano (FED) de 5,5% ao ano. Essa é a variável central de decisão da taxa de juros pelo Bacen. Juros altos não têm nada a ver com a questão fiscal.

O choque da inflação pós-Covid, que fez a taxa de juros subir não foi o fiscal. Foi o choque exógeno da inflação e o nosso Bacen “independente” se antecipou ao FED e ao Banco Central Europeu e elevou estratosfericamente a taxa de juros. Ninguém reclamou dessa violenta subida dos juros. Porém, quando chega a hora de baixar, começa recorrentemente o mimimi fiscalista.

Com a taxa de juros americana de curto prazo em 5,5% ao ano, baixar a taxa de juros no Brasil tem o risco de uma fuga de capitais, da desvalorização do Real e geração de uma pressão inflacionária. Mas para que servem as reservas de US$ 335 bilhões? No momento não existe nenhum problema de crise de balanço de pagamentos, a balança comercial é altamente superavitária e o déficit em transações correntes, 1,79% do PIB, perfeitamente financiável. Sob este aspecto, a economia brasileira vive situação confortável, de baixo endividamento externo, inflação controlada e grandes reservas internacionais. Por que é necessário ter superávit primário e juros tão altos? Isso não tem lógica.

O único sentido é que visa imobilizar o governo e culpar uma suposta “gastança”, cuja origem está no preço pago pelas altas taxas de juros. Esse é o discurso conservador da Faria Lima reproduzido pela grande mídia. A defesa do arrocho fiscal, com cortes na educação e na saúde, desvinculação dos benefícios previdenciários do salário mínimo, como propõem os articulistas liberais conservadores, é a pregação rentista.

Porém, essa convenção macroeconômica neoliberal tem outras implicações políticas. Ela conseguiu juntar interesses distintos de parte do grande capital industrial com o capital financeiro. A taxa de juros é a cola desta reunião de interesses.

Se os juros estiverem baixos, a economia fica aquecida, aumenta o emprego. Nesta situação, o empresariado reclama de demanda aquecida e da pressão por aumento de salários, mesmo que a taxa de desemprego esteja em 7,5% ao ano e metade da população em condições de trabalhar esteja em condições de precarização no mercado de trabalho. Muito longe do pleno emprego, que poderia pressionar a demanda e gerar inflação.
Quando aumenta a taxa de juros, começa outra reclamação: a valorização cambial do Real, que causa a perda de competividade internacional dos produtos brasileiros, e logo surgem as pressões por subsídios e incentivos fiscais. O resultado é uma perda de arrecadação fiscal e déficit fiscal.

Ainda que em alguma conjuntura específica os blocos de rentistas e o de industriais possam ter divergências em relação à política monetária e fiscal, desde o Plano Real foi se consolidando uma união rentista/industrial. Os balanços das grandes empresas industriais mostram claramente a importância dos ganhos financeiros para a valorização do capital e como eles se transformaram na atividade fundamental nessas empresas.

Esse processo de financeirização brasileiro, com as aplicações em renda fixa rendendo 11 vezes mais do que a inflação e os juros reais de 6,5% ao ano (média anual dos últimos 30 anos pós Plano Real), o capital aplicado dobra em apenas dez anos. Nesse quadro, quem vai investir em produção e inovação? Como exemplo, nos países desenvolvidos com juros reais de 0,5% a 1% ao ano, são necessários mais de 150 anos para dobrar o capital.

Os juros estratosféricos cumprem a sua missão política. Ao invés de fomentar o investimento em aumento da capacidade produtiva, em inovação, em infraestrutura, em saúde e educação, o objetivo é o ajuste fiscal. O alto diferencial de juros em relação aos internacionais estimula o rentismo generalizado e as empresas industriais se transformam em operadoras de tesouraria. Sem demanda e perspectiva de rentabilidade para o investimento produtivo e inovador, o pacto do rentismo é vencedor.

Quaisquer que sejam as explicações para os juros astronômicos, o fato é que sob o falso pretexto de ajudar a controlar a inflação, eles deixam sequelas devastadoras para a sociedade: baixo crescimento, aumento da dívida pública e ampliação da desigualdade de renda e riqueza.

Luiz Martins de Melo é economista, doutor pela UFRJ, professor da graduação e da Pós-Graduação do IE/UFRJ, ex-diretor da Finep.
Retirado de Terapia Política.

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