Correio da Cidadania

A surpresa francesa. Surpresa?

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Boca de urna dá vitória histórica à esquerda na França – CONTEE
Se tivessem sido mais cuidadosos, os chefes da mídia francesa e europeia deviam pelo menos ter prestado atenção aos líderes da Nova Frente Popular (NFP), que asseguravam que a esquerda podia ganhar.

Os chefes dos grandes meios de comunicação social e os analistas políticos de todos os quadrantes ficaram perplexos quando chegaram às redações os resultados da sondagem, feita à saída das urnas, que davam como vitoriosa a Nova Frente Popular (NFP) e relegavam para o terceiro posto a extrema-direita. Por todo o lado, os títulos sublinharam a “surpresa”, o “resultado surpreendente” do segundo turno das eleições legislativas, que inverteu o primeiro turno.

Porém, se tivessem sido um pouco mais cuidadosos, jornalistas e analistas poderiam ter evitado o vexame. Bastava terem ouvido, e dado um mínimo de crédito ao que diziam os dirigentes da Nova Frente Popular. Recordo ter visto entrevistas a porta-vozes da NFP feitas na véspera do segundo turno, em que dirigentes como Jean-Luc Mélenchon, Manuel Bompard ou Eric Coquerel sustentaram a sua certeza de que o jogo não terminara, que a Nova Frente Popular mantinha intactas as hipóteses de vitória, que o voto de barragem contra a extrema-direita iria funcionar para impedir a vitória da Reunião Nacional (RN), e que os eleitores se apercebiam de que o programa da NFP implicava em mudanças grandes na sua vida e era, por isso, uma alternativa. Por exemplo, a revogação da lei das reformas de Macron, que elevou para 64 anos a idade de aposentadoria.

Regra geral, os entrevistadores reagiam com um sorriso condescendente e tentavam discutir os “cenários” em que nunca aparecia a possibilidade de vitória da NFP. Os entrevistados recusaram-se a discutir essas possíveis situações em que a NFP era derrotada, por se tratar, como dizia Mélenchon, de “ficção científica”.

Mas a verdade é que na semana que separou a primeira da segunda volta só se fez, na mídia, ficção científica. Os eleitores foram submergidos por uma avalanche de informações e “cenários” que os tentava empurrar para as possibilidades imaginadas por analistas e editores. “E se RN vence com maioria absoluta, que fará Macron?”, perguntavam. Pura “ficção científica”, mas os eleitores eram levados a ver o cenário de terror como o mais plausível de todos.

Na imprensa em toda a Europa especulava-se sobre o futuro da União, se um dos componentes do seu “motor”, a França, abraçava a extrema-direita. Tudo parecia indicar a continuação da maré da extrema-direita até um futuro dominado pelos neofascistas.

Até que a França mostrou que há outro caminho. Valha a verdade que a primeira formação de extrema-direita com impacto político na Europa foi o Front National de Jean-Marie Le Pen. Depois dele já houve a geração da filha, Marine, e agora de Bardella. Já havia experiência suficiente para as coisas mudarem e a barragem começar realmente a funcionar.

Mas para isso era preciso um partido que tivesse peso e influência suficiente para fazer a resistência e mostrar a alternativa. Os Insubmissos de Mélenchon fizeram, em primeiro lugar, uma frente de esquerda, a Nova Frente Popular, que reuniu toda a esquerda e destruiu os sonhos de Macron de realizar uma grande união ao centro que deixasse os Insubmissos isolados e salvasse, mais uma vez, a “Macronia”.

Espertalhão, Macron mais uma vez apostava que o voto antifascista iria para ele, principalmente se reunisse o centro e a esquerda, mas “sem Mélenchon”. Errou. Sabe-se que o dia de negociações para sair o acordo em torno da Nova Frente Popular deve ter batido o recorde mundial de negociações entre a esquerda para conseguir a unidade.

Mas os Insubmissos não fizeram apenas isso. Garantiram a unidade, onde, pela primeira vez, a NFP teria um único candidato por círculo eleitoral (a dor de cabeça que isso deve ter causado!)

Em seguida, e o mais importante, chegaram a um consenso em torno de um programa que inclui medidas de choque como a revogação da reforma aos 64 anos aprovada por Macron, o aumento do salário mínimo, o congelamento dos preços da energia e toda uma série de medidas a serem tomadas logo no primeiro dia. Um programa mobilizador e que aposta na mobilização para manter ou arrancar conquistas perdidas, sem esquecer a premência da ecologia.

E, finalmente fizeram uma frente antifascista, facilitada pelo sistema eleitoral francês. A frente antifascista, que foi chamada pela mídia de “frente republicana”, consistia num único ponto: em todos os círculos onde houvesse um candidato da NFP em terceiro lugar e diante do risco de vitória do candidato da RN, o candidato em 3º lugar desistiria para impedir a eleição do deputado da RN. Os macronistas fariam o mesmo se o candidato em terceiro lugar fosse de um dos partidos macronistas. É um acordo simples: não há programa, até porque seria impossível fazer um programa com quem comandou a ofensiva capitalista contra as classes trabalhadoras em sucessivos mandatos presidenciais. O único ponto foi fazer uma barragem contra a extrema-direita.

No domingo, 7 de julho, viu-se como essa frente antifascista foi importante. A Nova Frente Popular até que saiu um pouco prejudicada, porque houve muitos macronistas que fizeram orelhas moucas para a desistência, ao contrário dos militantes da NFP, que logo no primeiro dia da semana entre as duas voltas eleitorais desistiram a cem por cento, mesmo havendo alguns candidatos de esquerda que tiveram de engolir sapos para ajudar a barrar o partido dos Le Pen e de Bardella. Mas todos reconhecem que o efeito barragem foi decisivo para relegar a Reunião Nacional ao terceiro lugar.

Agora, seguem-se dias complicados. Já se sabe que Macron tudo fará para não nomear um Insubmisso primeiro-ministro. A capacidade de negociação da esquerda entre si e de manter a unidade conseguida vai ser duramente posta à prova. Mas a alegria que a juventude demonstrou nas comemorações de dia 7 de julho à noite, os apelos à mobilização saídos do comício em Paris da LFI são promissores.

Será que a maldita onda do neofascismo vai começar a refluir? A via para fazê-lo está aberta. Oxalá saibamos todos agir em conjunto para seguir o exemplo da França.

Luis Leiria é jornalista português.

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