Correio da Cidadania

Engracia Caba: a altivez da resistência à agressão de EUA-Israel à Guatemala

0
0
0
s2sdefault


Engracia Mendoza Caba tinha apenas nove anos quando tudo aconteceu, mas traz “bem doído” quando no dia 16 de fevereiro de 1982 os soldados guatemaltecos baixaram dos helicópteros atirando e deram vida à palavra “genocídio”.

Bem treinados na Escola das Américas, mataram seu pai com um “tiro vindo do alto”. O balaço destroçou a cabeça e cobriu o corpo do senhor de sangue: “Escondida a seu lado, vi que ali ele ficou”.

“Minha irmã foi enforcada dentro de casa e teve as duas filhas executadas. A maior estava no meio das cinzas. A bebê tinha apenas 40 dias e foi encontrada sem a cabeça, que havia sido cortada. Estava numa bacia, devorada pelos cachorros. Desde então não consigo chorar, as lágrimas não saem. Só lutamos para que se faça Justiça”, declarou.

Busca dolorosamente na memória: “ao passarem os helicópteros levantavam muita terra e gravetos”, e os pequenos pedaços de madeira voavam rápido e com força. A ventania repentina fez com que as pessoas que se escondiam, camufladas, fossem encontradas... Uma vez descobertas, eram executadas, uma carnificina.

A conduta criminosa era diferente da adotada pelo Exército na primeira vez que cruzou pela comunidade “cerca de dois meses antes, quando passaram em busca da guerrilha e minha mãe disse não ter visto ninguém”. E embora realmente não tivesse havido contato algum, na dúvida, a ordem dada pelo alto comando – seguindo os manuais posteriormente apreendidos – era o extermínio de indígenas para barrar o crescimento do movimento de libertação.

Nascida no dia 30 de junho de 1973 em San Gaspar Chajul, em Quixé, Engracia apontou ter vivido “tempos sofridos durante o Conflito Armado Interno” e que só em sua comunidade foram 24 pessoas mortas. “Os soldados baixaram com suas cordas e já desceram massacrando. Eu sobrevivi com minha amiga Margarita, que me agarrou pela mão e me levou em busca de um esconderijo. Eu queria ficar na comunidade, mas o que fazer se já estavam todos mortos?”. Tudo passou rápido.
Mobilização popular cobra Justiça pelos mortos e desaparecidos: “Sim, houve genocídio!”

“Nesse tempo ficamos sem comer nada, nenhuma tortilha, não havia o que fazer. Os soldados esperavam os sobreviventes que iam enterrar seus mortos para os executarem, por isso as pessoas não regressavam. Meu cunhado esperou três dias e então muitos decidiram queimar os familiares porque não sabiam mais identificar quem era quem”, declarou. Disse que tudo isso ocorreu num “rancho” a umas quatro horas de carro de Chajul, “quando ainda não havia estrada”. Hoje o percurso está a duas horas, mas as fortes chuvas nos impossibilitaram de fazer um registro de imagens do local.

“Mataram outros sobreviventes”

Diante de tamanho horror, a pequena Engracia afirma ter se esforçado e lutado para sobreviver ao redor de um grande rio próximo ao local e também de buscar amparo, se protegendo junto a árvores bem altas. Que chegou a ver os soldados passarem perto, com seus capacetes, mochilas e lanternas. “Eu ouvi que mataram outros sobreviventes. Escutei o choro de uma senhora. Então, eu tinha muito medo, queria chorar, mas desde esse tempo as lágrimas não escorrem. Ficou a tristeza no coração e a timidez tomou conta de mim”, revelou.

“Quando voltei, todos os vizinhos das sete casas estavam mortos, enforcados, as mulheres com o pescoço cortado, com os braços cortados… Uma senhora teve até sua orelha arrancada e jogada no chão”, descreveu.

Lembrou que era pequena e sentia fome, muita fome. Algo imensurável que chegou a superar o próprio medo das brutalidades presenciadas. Reiterou que Margarita insistiu para não voltar, pois sabia que o Exército daria a elas o mesmo destino entregue às famílias. “Mas a forme era tanta que regressamos. Foi quando vi que os meus familiares e os dela estavam mortos. Nossas casas ficavam bem próximas, coladas umas nas outras. Todos os vizinhos foram massacrados. Fomos encontradas e então estupraram Margarita e me torturaram”, relatou. “Eu recordo que vi quando violaram Margarita. Me amarraram e me deixaram atirada no chão, com os olhos vendados”, contou Engracia.

Um momento de pausa na entrevista. Eu, André Taka, e o jornalista argentino Andres Sal.lari trocamos olhares e pudemos ver a profundidade da sua dor.

Quatro dias depois do suplício relatado, Engracia comemorou que um senhor passou à procura do filho. “Foi esse senhor quem me soltou e tirou a venda dos olhos. Minhas mãos e meu rosto já estavam bem inchados. Fiquei com ele por um tempo, pois me sentia tão débil que não aguentava caminhar. Fiquei doente, mas esse senhor me curou com plantas medicinais”, agradeceu.

Diferente dos mais de 200 mil mortos e das 45 mil pessoas desaparecidas – cinco mil delas crianças – Engracia está viva para dar o seu depoimento ao Tribunal de Justiça que pôs no banco dos réus alguns chefes militares acusados pelo “genocídio” praticado entre 1960 a 1996. O processo é amparado no relato das vítimas, em documentos desclassificados da CIA, que também incriminam o governo de Israel – que treinou, armou e financiou o terrorismo de Estado -, e do Exército guatemalteco.

Foram comprovadas ações militares destinadas a produzir a morte de membros da etnia maia Ixil (mulheres, crianças, idosos e homens), violações sexuais, desaparecimentos forçados, tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, saques, queima de lavouras, deslocamentos de adultos e crianças, entre outros crimes de lesa-humanidade que criaram condições para a destruição dos integrantes do grupo. Tudo isso em decorrência dos massacres seletivos e coletivos realizados, das perseguições e bombardeios a que foram submetidos os moradores das aldeias e “ranchos”, e da política de controle e confinamento implementada na região – reproduzindo de fio a pavio o modelo aplicado por Israel contra o povo palestino.

Atualmente ensinando jovens da etnia maia ixil a defender sua identidade, preservar sua cultura e a tecer bordados, Engracia é cada vez mais uma combatente pelos costumes e valores indígenas. Ainda mais porque, sustenta, a “situação é dura e há muito a ser feito”. “Por serem mais ricos e poderosos, os grandes empresários não querem saber de indígenas, pensam que somos inválidos”, destacou a ex-prefeita indígena e dirigente das Mulheres da Área Ixil, frisando o valor e a dimensão da palavra “resistência”. “Me casei e tenho cinco filhos e quatro netos. Estamos nos mobilizando pela Justiça, para fazer com que finalmente ela alcance os responsáveis”, concluiu.

*A reprodução deste conteúdo é livre e gratuita, desde que citadas a fonte e a lista de entidades apoiadoras da cobertura: Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), Federação dos/as Trabalhadores/as em Empresas de Crédito de São Paulo (Fetec-SP) e Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Construção e do Mobiliário de Araraquara (Sticma).

Leonardo Wexell Severo é jornalista do Hora do Povo e Coletivo ComunicaSul.

*Gostou do texto? Sim? Então entre na nossa Rede de Apoio e ajude a manter o Correio da Cidadania. Ou faça um PIX em qualquer valor para a Sociedade para o Progresso da Comunicação Democrática; a chave é o CNPJ: 01435529000109. Sua contribuição é fundamental para a existência e independência do Correio.

*Siga o Correio nas redes sociais e inscreva-se nas newsletters dos aplicativos de mensagens: 
Facebook / Twitter / Youtube / Instagram / WhatsApp / Telegram  

 

0
0
0
s2sdefault