Direitos dos trabalhadores ou lutas identitárias?
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- Elenira Vilela
- 04/10/2024
Todo dia alguém diz que é mais importante lutar pelos direitos trabalhistas, pela política do salário-mínimo, pelo aumento do emprego e que esse negócio de representatividade, de linguagem neutra é só frescura, babaquice... Vamos pensar nisso?
O capitalismo é um sistema que enriquece alguns explorando os que só podem trabalhar para outro pra sobreviver, isso significa que só haverá bilionários se houver um número enorme de pobres. Hoje, o capitalismo está em uma crise profunda, como disse Lula; há três mil pessoas que tem um patrimônio de 15 trilhões de dólares, o que é mais do que o PIB de muitos países, inclusive desenvolvidos, juntos. Essa desigualdade emperra a roda da exploração.
Mas e então? O que o Brasil ter mais mulheres que homens, mas menos de um sexto da câmara ter mulheres, tem a ver com isso? O que o Brasil ter mais negros que brancos e que essas pessoas não tiveram acesso nem mesmo ao direito ao reconhecimento como humano e, depois, a nenhum dos direitos básicos, tem a ver com isso? O que o Brasil ser o país que mais mata pessoas trans do mundo tem a ver com isso? O que o governo estadual de Santa Catarina censurar um filme sobre sexualidade de Pessoas Com Deficiência (PCDs) tem a ver com isso? O que professoras que cumprindo sua função e trabalhando educação sexual nas salas de aula e, por isso, sendo perseguidas e demitidas tem a ver com isso? O que jovens sem perspectivas e idosos sem dignidade e cuidados tem a ver com isso?
A realidade é: não existe luta de classes no Brasil (e na maior parte do mundo) sem enfrentar machismo, racismo, capacitismo, especismo e tantos ismos do mundo! A razão? Não existe luta de classes sem organizar as dores e demandas da classe trabalhadora concreta, a que existe de verdade, a que de fato está sendo explorada, passando fome, massacrada pela polícia, sem remédios... E não existe luta de classes sem libertar a mais importante fábrica do capital, a fábrica que produz a única mercadoria que gera valor: os úteros! Especialmente os úteros das mulheres negras de periferia.
Recentemente, a Oxfam anunciou um dado que não deveria parar de ser repetido por toda mulher feminista militante nesse debate: os super-ricos roubam 10,8 trilhões de dólares por ano na forma de trabalho de produção e reprodução da força de trabalho, aquele trabalho das mulheres (quase sempre negras) que uns chamam de cuidado e outros de amor! Como seria pra fabricar um Jeff Bezos, um Elon Musk ou um Jorge Lemann sem poder praticar esse roubo? E não é possível praticar esse roubo sem utilizar do machismo, de racismo e de LGBTfobia como ferramenta de naturalizar a exploração de mulheres.
Não é possível garantir que haja pessoas em número além do que eles contratam (pra fazer quem tem trabalho aceitar qualquer salário e, por exemplo, a escala 6×1 e quem não tem que aceitar ser explorado em qualquer condição) se as mulheres e demais pessoas, especialmente as LGBTQIAPN+, exercerem o direito livre à sua sexualidade e o direito ao aborto.
Experimente colocar no google “queda nas taxas de fecundidade” e veja o quão desesperadas são as manchetes. Exercício livre de sexualidade hoje significa ter menos filhos em boa parte do mundo e isso atinge o capital. Vamos pensar: por que as taxas de fecundidade caírem é um problema? A pergunta correta é: pra quem a queda da taxa de fecundidade é um problema?
Não é para mulheres e pessoas com útero, afinal, todas as vezes que elas têm o mínimo de minimamente, as taxas caem. Certamente não é para o planeta, que está precisando se recuperar de uma superpopulação de seres humanos (1). Mas eles dizem ser um problema pra economia. Só seria um problema para a economia se fosse impossível, sem aumentar o número de pessoas trabalhando, seguir produzindo o que é necessário para as pessoas viverem com dignidade. Só que, pelo contrário, com a tecnologia que temos e o crescimento em ritmo menor, basta reduzir as jornadas de trabalho, contratar mais pessoas e isso deixaria de ser um problema.
É problema somente para os supercapitalistas, os bilionários. Por que somente controlando os corpos é que eles conseguem explorar o suficiente para seguirem aumentando seu patrimônio no ritmo que querem. Não é acaso feminismo, sexualidade e aborto serem temas centrais da extrema direita fascista. As ideologias extremistas autoritárias (colonialismo, fascismo, nazismo...) apoiadas em religiosidades fundamentalistas (mercadores da fé no cristianismo neopentecostal no Brasil, hinduísmo islamofóbico na Índia, sionismo em Israel, islamismo que segue a lei da sharia no Afeganistão...) é que dão o suporte necessário para a criação de sistemas autoritários; violências que têm em sua base estrutural a liberdade da mercadoria e da exploração e a opressão e dominação dos corpos. Sem essas ideologias o capitalismo iria ruir.
A outra alternativa para a manutenção do capitalismo é a guerra. E a guerra também depende de machismo, do lado que constrói uma masculinidade tóxica que coloca ao homem a referência de autorreconhecimento por meio da violência e, somente assim, o convence a colocar a própria vida e a de tantos outros em risco em nome do suposto heroísmo de lutar em uma guerra que nunca é sua.
Como diria o Paulo Galo, não é possível libertar a classe trabalhadora sem libertar a menor fábrica, que é o útero de cada mulher negra.
Portanto, não existe lutar contra o capitalismo sem lutar contra o machismo, o racismo, o capacitismo, o especismo, a lgbtfobia, a cis-heteronormatividade e todas as formas de opressão que criam as condições concretas para todas as formas de exploração do trabalho. E não existe libertar os corpos das opressões sem libertá-los de toda forma de exploração, afinal, Noam Chomsky e tantos outros já nos mostraram que somos escravizadas e escravizados pelos capitalistas.
A revolução contra o capitalismo será feminista, negra, ecológica, LGBTQIAPN+ e PCD ou não será!
Não existe luta identitária (me doeu muito usar essa palavra no título, mas eu queria que você lesse...), porque a identidade é uma parte da luta pelo direito à vida, pela democratização do poder e pela dignidade. Na complexidade do humano, a linguagem mata, o simbólico mata, o simbólico impõe a fome e a miséria, a tortura, o salário miserável e o consumismo, a ebulição climática e a consequente vida com extrema escassez de acesso à água! Essas são as lutas revolucionárias.
Se ontem dizíamos “Socialismo ou barbárie”, hoje dizemos “Socialismo ou extinção” e esse socialismo contempla em si o fim de toda forma de opressão. Só podemos alcançá-lo pela classe trabalhadora concreta que quer lutar contra suas dores concretas. A mulher será revolucionária para não ver seu filho preto, LGBT ou PCD morrer de tiro, de fome, ou em uma enchente.
Nota:
1) Jamais imaginem que estou defendendo alguma teoria eugenista. Houve, e ainda há, situações em que o exercício do controle dos capitalistas sobre os corpos das pessoas com útero foi com laqueaduras indesejadas ou com mutilações genitais. A questão é exatamente que os capitalistas querem poder decidir por nós quando teremos, quando não teremos filhos e se tivermos, em que quantidade. Por isso a luta por autonomia.
Elenira Vilela é professora de matemática no Instituto Federal de Santa Catarina e Coordenadora Geral do SINASEFE.
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