Correio da Cidadania

Bacia do Micay: a prova de fogo da política de paz de Petro

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Li com muita atenção o ensaio elaborado e publicado por Horacio Duque Giraldo sobre a realidade da Bacia do rio Micay, no departamento de Cauca. A publicação desse tipo de texto é muito oportuna, agora que o governo de Petro decidiu priorizar o uso da força armada para tentar resolver um problema histórico que tem causas sociais, econômicas, políticas e culturais de longa data.

O texto é muito sugestivo, a começar pela hipótese. Ele nos leva a elaborar uma série de conclusões que deveriam ser levadas em conta tanto pelos representantes do governo quanto pelos dirigentes das comunidades rurais dessa região e de outras com condições semelhantes, como Catatumbo, Meta, Guaviare, Caquetá, Putumayo e Nariño.

Destaco a hipótese:

"A hipótese que se apresenta neste ensaio sobre a atual situação e os problemas da Bacia do rio Micay, que faz parte dos diálogos e negociações que recentemente se iniciaram entre o governo e as chamadas ‘dissidências das Farc’ (grupo armado autodenominado ‘Estado Maior Central’ EMC, que possui forte presença nesse território), consiste em que o processo de colonização e povoamento dessa região, que ocorre desde os anos 70 do século XX e gira em torno da economia do narcotráfico e da mineração ilegal, faz parte de um ciclo de expansão da fronteira agrícola com características e particularidades que o tornam diferente dos ciclos anteriores ocorridos na Colômbia nos últimos 150 anos, desde a segunda metade do século XIX" (Duque Giraldo, 2024).

Entre as conclusões mais importantes que podem ser tiradas desse estudo e deveriam influenciar as decisões tanto do governo quanto das comunidades envolvidas com essa realidade, proponho as seguintes:

• Surgiu uma “burguesia emergente” que se torna um ator social e econômico muito importante. Diferentemente de outros processos de colonização anteriores, essa burguesia não permitirá que a oligarquia colombiana tradicional (grandes proprietários de terras) se aproprie desses territórios e das terras desbravadas e domesticadas pelos camponeses colonos cocaleros.

• A Bacia do rio Micay não é o mesmo que o “cânion” do rio Micay. A bacia é um território muito extenso, enquanto o “cânion” é um local relativamente reduzido, mas muito estratégico do ponto de vista militar.

• A insurgência colombiana foi cooptada pela economia do narcotráfico, e nesse processo deixou de ser a vanguarda do movimento camponês que lutava por uma reforma agrária democrática para se tornar a “polícia rural” dos narcotraficantes e dessa “burguesia emergente”.

• Essas “forças armadas ilegais”, apesar de tudo, têm legitimidade real entre as comunidades desses territórios, pois regulam as relações entre os diferentes setores sociais e garantem a segurança e a “estabilidade” do processo produtivo e social, tanto na produção e comercialização da cocaína quanto na mineração ilegal.

• Existem na região dois tipos de ocupação e utilização do território por parte das comunidades que precisam ser conciliados ou complementados para superar os problemas atuais: a apropriação ancestral e harmônica com a natureza das comunidades afro e indígenas e a ocupação predatória e destrutiva de caráter colonial capitalista desenvolvida por camponeses colonos.

Diante do exposto, parece que tanto os funcionários do governo quanto os representantes das comunidades dessas regiões não têm plena consciência da realidade que enfrentam. Ou talvez criem narrativas para evitar enfrentar o problema concreto, pois não querem reconhecer algo que está à vista. E entre eles, os grupos “guerrilheiros” mantêm ou “fingem” um discurso que há muito tempo não corresponde à sua prática real e cotidiana.

A realidade é que a “burguesia emergente”, que surgiu nesse longo processo de “colonização cocalera”, está, sim, interessada em legalizar seus capitais e riquezas e quer se integrar à economia e ao mercado nacional (o que já fez parcialmente e “de fato”), mas não aceita as políticas tradicionais de “substituição de culturas” propostas para os “camponeses cocaleros”, e que até agora não têm nenhuma chance de sucesso, pois as condições reais de marginalização, distância, estradas ruins ou inexistentes e ausência de infraestrutura produtiva impedem que nessas regiões surjam ‒ a curto prazo ‒ economias agrícolas que possam competir no mercado capitalista existente.

Por isso, a política que o governo de Petro atualmente impulsiona nessa região o leva, finalmente, a confrontar as comunidades rurais (como já está ocorrendo) e, como se verá no futuro, não poderá ser sustentável, pois, por um lado, a demanda global por cocaína e ouro continuará existindo e, por outro, essa política não foi acordada com a população local.

Além disso, o Estado não possui a musculatura econômica e financeira para garantir investimentos sustentados na região. Por isso, o presidente Petro pede ajuda aos EUA e à China para comprar as colheitas de folha de coca ou subprodutos que possam ser processados, o que significa que é apenas uma “ideia no ar”. E o povo “não cai mais nessas histórias”.

É interessante ler o ensaio de Duque Giraldo, um pouco longo, mas muito interessante.

Fernando Dorado é ativista social, dirigente sindical de trabalhadores do setor de saúde e eletromecânicos. Colabora com movimentos sociais do Vale do Cauca, Colômbia. Deputado entre 1994-1997.
Traduzido por Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.

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