Não ousem culpar os árabes e muçulmanos pela vitória de Trump
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- Ahmad Ibsais
- 07/11/2024
À medida que a poeira lentamente baixa nesta eleição, e Kamala Harris está diante dos destroços de uma campanha que não conseguiu vencer um único estado indeciso, o Partido Democrata e seus apoiadores liberais estão ansiosamente procurando por alguém, qualquer um, além deles mesmos para culpar por sua derrota catastrófica. E, ao que parece, eles já encontraram bodes expiatórios convenientes: árabes americanos, muçulmanos e qualquer um que se recusou a votar na administração que permitiu o genocídio do meu povo, os palestinos.
Durante a noite de 5 de novembro, enquanto os votos eleitorais de estados importantes como Carolina do Norte, Indiana e Ohio chegavam para Trump, as plataformas sociais foram invadidas por democratas furiosos culpando os árabes e muçulmanos americanos que não votaram em Harris pelo resultado e desejando mais morte e destruição para nossos irmãos no Oriente Médio como punição por essa suposta "traição".
“Espero que todos os muçulmanos [sic] que votaram em Trump possam assistir Bibi transformar Gaza em um estacionamento de vidro”, escreveu um. “Os eleitores [da líder do Partido Verde Jill] Stein verão o que Trump fará com Gaza”, sugeriu outro.
O argumento deles parece ser que, ao rejeitar Harris, demos a presidência a Trump e “sacrificamos” o futuro da democracia norte-americana no altar da política externa. Eles parecem acreditar não apenas que somos poderosos o suficiente para decidir o destino da democracia neste país, mas também que, simplesmente devido ao nosso status de minoria, “devemos” nosso voto ao Partido Democrata.
Claro, é verdade que nas eleições contemporâneas dos EUA as minorias demonstraram consistentemente apoio aos candidatos democratas em taxas muito mais altas do que os eleitores brancos.
Em 2016, a vitória de Trump contra a então candidata presidencial democrata, Hillary Clinton, foi garantida principalmente pelos eleitores brancos, com 57% dos homens brancos e 47% das mulheres brancas votando nele. Oitenta e oito por cento dos eleitores negros e 65% dos eleitores asiáticos apoiaram os democratas naquela eleição. Da mesma forma, três quartos dos eleitores muçulmanos e cerca de 60% dos árabes americanos disseram que votaram em Clinton naquele ano. O padrão persistiu em 2020, com minorias, incluindo muçulmanos e árabes, aparecendo em grande número para apoiar a chapa Biden-Harris.
Mas esse apoio histórico, que sem dúvida reforçou as vitórias democratas no passado e ajudou Clinton a manter o voto popular em 2016, não significa que "devemos" algo ao partido, ou que podemos ser responsabilizados por sua "magnífica" derrota contra Trump nesta eleição.
Políticos, não importa sua filiação partidária, não têm direito aos votos de nenhum grupo demográfico. É dever deles, na verdade, prerrogativa deles, ganhar nossos votos. Neste ciclo eleitoral, no entanto, o establishment democrata trabalhou incansavelmente para garantir que não votaríamos neles. Então, essa derrota é deles, e somente deles.
Basta ver como os democratas fizeram campanha no estado em que vivo, Michigan. Um estado crucial e decisivo onde as eleições podem depender de meros milhares de votos, Michigan é o lar de cerca de 200.000 muçulmanos americanos. No ano passado, esses eleitores deixaram claro, de todas as maneiras possíveis, que seu voto estava condicionado ao compromisso do partido de encerrar seu apoio financeiro, político e militar aos massacres de palestinos, libaneses e iemenitas. A campanha "não comprometida" — buscando encerrar o apoio do Partido Democrata ao genocídio de Israel — garantiu mais de 100.000 votos nas primárias democratas do estado.
O Partido Democrata não ouviu. Harris não apenas se recusou a abandonar as políticas firmemente pró-Israel de Biden sobre a Palestina, mas também apoiou pessoalmente o derramamento de sangue contínuo em Gaza ao insultar publicamente os ativistas antigenocídio no estado. Quando manifestantes pró-palestinos interromperam um comício de Harris em Detroit simplesmente afirmando que "não votariam pelo genocídio", ela os calou com seu bordão "estou falando". Ela então enviou o ex-presidente Bill Clinton ao estado para fazer um discurso que tentava justificar o assassinato em massa de palestinos.
Liz Cheney, a filha republicana do arquiteto da guerra do Iraque e criminoso de guerra Dick Cheney, também fez uma aparição no estado para fazer campanha por Harris. O congressista Ritchie Torres, que passou o ano passado acusando qualquer um que exigisse o fim do derramamento de sangue em Gaza de ser um terrorista antissemita, foi outro substituto que Harris enviou para Michigan.
Como resultado, compreensivelmente, os muçulmanos em Michigan não votaram em Harris. Eles não votaram em Harris, porque não lhe deviam o voto, e ela não fez nada para merecê-lo.
Na cidade de Dearborn, onde cerca de 55% dos moradores são descendentes do Oriente Médio, Trump venceu com 42,48% dos votos sobre a vice-presidente Kamala Harris, que recebeu apenas 36,26%. Jill Stein, do Partido Verde, que fez uma campanha intensa para acabar com o ataque de Israel a Gaza, recebeu 18,37%. Em 2020, impressionantes 74,20% dos eleitores da cidade votaram em Biden.
O que estamos vendo em Michigan é, de fato, uma imagem de traição. Mas foi o Partido Democrata que traiu os eleitores que o apoiaram eleição após eleição, e não o contrário.
De qualquer forma, os números que surgem em Michigan e outros estados-chave mostram que as perdas democratas são grandes demais para serem atribuídas somente aos eleitores árabes e muçulmanos.
O Senado, por exemplo, virou como resultado das perdas democratas em lugares como Ohio e Virgínia Ocidental, onde os resultados não podem ser vinculados à suposta “traição” dos eleitores muçulmanos e árabes. Essas disputas, e eventualmente o Senado e a Casa Branca, foram perdidas porque o diretório central dos Democratas se recusou a ouvir as demandas e desejos primários não apenas dos muçulmanos e árabes, mas da vasta maioria dos potenciais eleitores democratas.
Eles não ofereceram respostas e soluções ao povo em questões importantes como saúde, mudanças climáticas e, sim, o fim do genocídio.
De fato, diferentemente do que Harris e seus representantes podem sugerir, a maioria dos norte-americanos quer ver o fim do apoio dos EUA à guerra brutal de Israel em Gaza. Uma pesquisa de fevereiro com 1232 prováveis eleitores feita pela Data for Progress descobriu que 67% — incluindo 77% dos democratas e 69% dos independentes — apoiariam os EUA pedindo um cessar-fogo permanente em Gaza e condicionando a ajuda militar a Israel.
Isso foi há cerca de oito meses, antes de Israel cometer inúmeros massacres, invadir o Líbano e começar a limpar etnicamente o Norte de Gaza usando a fome como arma de guerra. Até mesmo uma porcentagem maior de norte-americanos provavelmente quer que seu país pare de apoiar Israel agora.
Kamala Harris e o Partido Democrata não perderam esta eleição porque qualquer grupo demográfico em particular os “traiu”. Eles perderam a eleição porque traíram sua base principal, incluindo árabes e muçulmanos norte-americanos.
Kamala Harris poderia facilmente ter garantido seus votos, e os votos de muitos outros, simplesmente concorrendo com uma chapa humana e humanitária, incluindo promessas de defender a lei internacional e pôr fim à cumplicidade estadunidense no genocídio de Israel. Em vez disso, a administração escolheu a teimosia, aparentemente disposta a apostar tanto em vidas humanas quanto no sucesso eleitoral.
O establishment Democrata não pode ter as duas coisas. Eles não podem ignorar, dispensar e antagonizar comunidades enquanto esperam simultaneamente seu apoio incondicional. Palestinos, árabes e muçulmanos americanos, e outros que se afastaram do Partido Democrata por seu apoio a Israel, não estão pedindo tratamento especial – eles estão pedindo dignidade humana básica e consistência moral na política externa.
Não se trata apenas de política externa – trata-se da natureza da representação democrática em si. Aqueles que permaneceram em silêncio durante meses de crise humanitária, mas agora emergem para discutir política eleitoral, revelam que seu silêncio anterior foi de fato uma escolha. Foi uma escolha que falou muito sobre prioridades e valores. Eles agora professam, “Trump será pior”. Mas para aqueles que viram seus filhos mutilados e suas terras destruídas, não há nada pior.
Nós, é claro, sabemos que o presidente Trump não apoiará menos o genocídio do meu povo do que Biden ou Harris. Suas ações durante seu primeiro mandato deixaram isso bem claro. Ele é um podre que cresceu a partir de uma longa história de décadas de supremacia branca, racismo e intolerância. Mas isso não significa que poderíamos ter passado por cima dos restos mortais de dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças palestinos mortos por bombas norte-americanas lançadas por Israel para votar na mulher que pessoalmente defendeu e facilitou seu assassinato. Não podíamos, e não o fizemos.
É hora, enquanto o país e o mundo se preparam para uma segunda presidência de Trump, de os democratas pararem de passar a bola e assumirem a responsabilidade pelas escolhas que fizeram. Não estamos aqui por causa de algo que os árabes e muçulmanos americanos fizeram ou deixaram de fazer. Estamos aqui porque o Partido Democrata, primeiro sob Joe Biden e depois Kamala Harris, insistiu em perpetrar genocídio enquanto ignorava os princípios fundamentais de "democracia" e "liberdade" que eles supostamente prezam.
Então, vice-presidente Kamala Harris, Gaza está falando agora. O massacre de nossas crianças valeu a pena?
Ahmad Ibsais é um palestino-americano de primeira geração e estudante de direito que escreve a página Estado de Sítio no Substack.
Publicado originalmente em Al Jazeera.
Tradução de Amyra El Khalili, colunista do Correio da Cidadania.
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