Correio da Cidadania

O cessar-fogo no Líbano não é uma “vitória divina”

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Nasser Nasser / AP

Poderia o acordo de cessar-fogo entre Israel e o Líbano ser uma nova “vitória divina”? Foi assim que o Hezbollah descreveu o acordo que encerrou o ataque israelense ao Líbano em 2006. Na época, o partido exibiu essa frase em grandes outdoors, acompanhada de uma foto do Secretário-Geral Hassan Nasrallah, em um claro jogo de palavras, pois o slogan podia ser interpretado tanto como uma vitória atribuída a Deus quanto como uma vitória liderada por Nasrallah, cujo nome, em árabe, significa “vitória de Deus”.

Independentemente dessa suposta dimensão divina, a reivindicação de vitória fazia sentido em 2006, quando o ataque israelense não conseguiu desferir um golpe decisivo ao Hezbollah, que resistiu ferozmente. O Estado sionista foi forçado a interromper sua guerra com base em uma resolução internacional, a Resolução nº 1701 do Conselho de Segurança da ONU, que não oferecia garantias reais para sua aplicação. Isso incluía até mesmo sua primeira cláusula, que exigia a retirada das forças do partido para o norte do rio Litani, sem mencionar a cláusula que reafirmava a resolução anterior nº 1559 (2004) do CSNU, que demandava o desarmamento do Hezbollah — a única organização que insistiu em manter armas no Líbano após 1990, sob o pretexto de resistir à ocupação israelense.

O partido conseguiu recuperar-se das feridas da guerra de 2006, que causou mais de mil mortes e uma destruição generalizada nas áreas sob seu domínio, em conformidade com o que mais tarde ficou conhecido como a “Doutrina Dahiya”. O financiamento iraniano permitiu ao Hezbollah pagar indenizações por perdas humanas e materiais, enquanto o armamento iraniano possibilitou não apenas compensar as perdas militares, mas também multiplicar sua capacidade de fogo em quantidade e qualidade, adquirindo um poder dissuasório contra o Estado sionista. Como é amplamente sabido, o poder militar do partido e o apoio iraniano cresceram ainda mais devido à sua intervenção na Síria para sustentar o regime de Assad, transformando-o, na prática, em uma divisão da Força Quds — a ala da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã especializada em operações no exterior — encarregada de missões militares que incluíam o Iraque e o Iêmen.

O contexto atual

A situação atual e o acordo de cessar-fogo, negociado lentamente ao longo de meses e intensamente nas últimas semanas, são completamente diferentes de 2006. A principal diferença é que o golpe infligido pelas forças armadas sionistas ao Hezbollah é hoje muito maior, ainda que não fatal. Israel não tem ilusões de que pode eliminar o partido apenas com bombardeios, pois o Líbano oferece diversos refúgios locais e regionais, diferentemente da Faixa de Gaza, que continua sendo uma grande prisão apesar da rede de túneis escavada pelo Hamas.

A ofensiva lançada pelas forças armadas israelenses no Líbano há dois meses e meio, que começou com a explosão de dispositivos de comunicação do Hezbollah, conseguiu decapitar o partido ao eliminar a maioria de seus líderes e destruir suas capacidades e infraestruturas militares de maneira muito mais eficaz do que há 18 anos, graças a avanços tecnológicos que aprimoraram a inteligência israelense. O Hezbollah sairá desta guerra exausto, em um estado incomparavelmente pior do que em 2006, com capacidade limitada para se reconstruir, muito menos para ampliar suas forças.

Como destacou recentemente o embaixador de Israel na ONU, aprenderam-se as “lições de 2006 e da resolução 1701”. Dessa vez, os israelenses estarão muito mais atentos para garantir a retirada total das forças do Hezbollah ao norte do rio Litani e impedir que o Irã reabasteça o partido por meio do território sírio. Israel exigiu garantias oficiais dos Estados Unidos para essas questões e manterá a liberdade de atacar qualquer movimento que viole o acordo, da mesma forma que atua contra operações iranianas na Síria.

Impacto financeiro e político

Além disso, a capacidade do Hezbollah de se recuperar perante sua base popular será mais limitada desta vez, não apenas porque as perdas humanas e materiais são maiores, mas também porque o Irã enfrenta hoje uma situação financeira mais difícil do que em 2006, antes das sanções mais rigorosas impostas pelos Estados Unidos.

Por fim, o Estado sionista conta com os esforços de Washington, em cooperação com Paris, para alterar o cenário político libanês, fortalecendo as forças armadas regulares do Líbano e impedindo o Hezbollah de se rearmar. Esse processo inclui a restauração das instituições governamentais libanesas, com a eleição de um novo presidente e a formação de um gabinete, pressionando pela escolha de Joseph Aoun, comandante das forças armadas libanesas.

O futuro dependerá da dinâmica entre Irã e Estados Unidos: se haverá um acordo político ou uma escalada de violência no Líbano, intensificando o confronto regional.

Traduzido do francês ao espanhol por César Ayala, Correspondencia de Prensa e ao português de Gabriel Brito, do Correio da Cidadania.
Original em árabe publicado em Al-Quds al-Arabi.

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