A fumaça, o fogo e, novamente, a economia
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- Eduardo Gudynas
- 30/12/2024
O primeiro impacto é o cheiro inconfundível da fumaça; depois, à medida que se avança, surgem ardências nos olhos e na garganta; finalmente, a visão se torna muito difícil. Assim foi meu primeiro encontro com incêndios na selva amazônica, naquele caso no Brasil, no estado do Acre. A marcha pelo caminho se torna perigosa porque pouco ou nada se pode ver, e ao longe aparecem os destroços vermelhos das chamas. É muito perigoso seguir se aproximando e ali paramos.
Apesar de essa experiência ter ocorrido há cerca de 20 anos, nunca se conseguiu evitar, nem mesmo conter, esses incêndios. Todas as primaveras eles se repetem, mas só ganham atenção pública quando a fumaça se espalha pelas grandes cidades. Neste ano, quase metade da superfície sul-americana estava afetada pela fumaça, incluindo grandes cidades como Buenos Aires e São Paulo, e algumas enfrentaram emergências devido à má qualidade do ar.
A fumaça é uma expressão de uma epidemia de incêndios. Até setembro, foram detectados mais de 98 mil focos de calor, número que supera amplamente o registrado no mesmo mês de 2023. Em 2024, já somaram mais de 368 mil incêndios no continente. O Brasil é o mais afetado, com mais de 188 mil focos, seguido pela Bolívia com mais de 65 mil, Venezuela com cerca de 40 mil e Argentina, que superou os 23 mil. O Uruguai também não escapa dos olhos dos satélites e aparece com 222 focos de calor. Esses indicadores mostram outro aspecto alarmante: a Amazônia não é o único ecossistema que está queimando. O fogo também devasta o Cerrado, um enorme bioma de pastagens e árvores no centro do Brasil, as florestas da Chiquitanía, na Bolívia, e os montes chaqueños no Paraguai e na Argentina. Também não se restringe a florestas: o Pantanal no Brasil, os pântanos e os campos que acompanham os rios Paraguai e Paraná estão em chamas.
Em todos esses ambientes, repetia-se uma prática tradicional, conhecida como "chaqueo", pela qual os indígenas e camponeses, a cada primavera, queimavam pequenas parcelas de floresta para seus cultivos ou algumas cabeças de gado. Mas nas últimas décadas essa prática se multiplicou em número e intensidade com a chegada de novos colonos aos trópicos, especialmente latifundiários e empresários, tanto no Brasil quanto nos demais países.
O êxtase agropecuário no Brasil ocorreu em 2019, durante o governo de Jair Bolsonaro. Foi quando lançaram o Dia do Fogo, com queimadas simultâneas em várias localidades, aproveitando a postura presidencial para liberar a exploração da Amazônia enquanto se cortavam monitoramentos e controles. Nesse ano, a fumaça também chegou às grandes cidades e desencadeou muitas críticas que foram infrutíferas, pois no ano seguinte aconteceu o mesmo. Os governos atuais de Lula, no Brasil, e de Luis Arce, na Bolívia, apesar das promessas, também não conseguiram evitar essa situação.
A área afetada é imensa. No Brasil, estima-se que mais de 7 milhões de hectares tenham sido queimados, e na Bolívia, cerca de 4 milhões. Calcula-se que quase um quarto do território brasileiro tenha sido devastado pelo fogo em algum momento nos últimos 40 anos. As consequências disso para a vida selvagem são devastadoras: em 2019 concluiu-se que os incêndios na Bolívia causaram a morte de 2,3 milhões de animais carbonizados, especialmente grandes mamíferos como capivaras, antas e cervos. Alteram-se as propriedades dos solos, destroem-se os ciclos da água e liberam-se enormes volumes de gases de efeito estufa. Os impactos na sociedade também são severos, especialmente para aqueles que perdem suas casas, seus cultivos e o acesso à água.
Fui testemunha das sequelas das chamas em outra visita à Amazônia, mas no Peru, ao percorrer zonas que haviam sido queimadas poucos dias antes. A paisagem já não era verde, mas uma mistura de cinzas no solo e o marrom dos restos de troncos. O fedor da fumaça e da fuligem estava ali, impregnado nas roupas e até na própria pele. Não havia vida, apenas silêncio.
Essas queimadas de florestas e pastagens são inseparáveis das estratégias de desenvolvimento agropecuário que predominam na América do Sul. Em todos os países, elas são voltadas para a pecuária e os cultivos, intensivos, empresariais e focados na exportação. Se expandem, por exemplo, no Cerrado brasileiro, o que leva ao deslocamento dos pecuaristas tradicionais, que se mudam para a Amazônia. Lá, tomam posse de terras, tanto por meios legais como por titulações irregulares ou falsas, contratam bandos criminosos para deslocar camponeses e indígenas e, a cada primavera, saem queimando esses campos.
Ao longo dos anos, esses colonizadores, como outros agentes que respondem a esse tipo de desenvolvimento, geram o que se conhece como o arco de desmatamento amazônico. Ele se estende pelo sul da região, desde a costa atlântica a leste até o outro extremo do Brasil, em Acre, no oeste, na fronteira com o Peru e a Bolívia. As dimensões dessa frente de destruição são impressionantes: cerca de 3 mil quilômetros, mais do que a distância entre Madrid e Varsóvia, por exemplo.
Como consequência, não é raro que, na Amazônia brasileira, mais de um milhão e meio de hectares de floresta sejam destruídos a cada ano, seja por derrubada ou fogo; segue-se a Bolívia, com mais de meio milhão de hectares perdidos. Aproximadamente 85 milhões de hectares de floresta foram perdidos. Ao mesmo tempo, no Cerrado, cerca de 40 milhões de hectares foram transformados em áreas agrícolas para o cultivo de 20 milhões de hectares de soja.
Essa dinâmica depende, como muitos outros problemas ecológicos, da economia. A demanda por soja, especialmente da China, é tão intensa que, à medida que se expande no Brasil, entre suas consequências está a penetração do agronegócio na Amazônia. Um processo análogo ocorre na Bolívia, Argentina e Paraguai, onde os monocultivos de soja e a pecuária de exportação estão por trás das grandes transformações territoriais e da invasão de novos ambientes. As decisões de importação tomadas em Pequim e a cotação dos produtos na bolsa de grãos de Chicago se conectam com medidas governamentais que operam no mesmo sentido e decidem a sorte ecológica da América do Sul. É assim que os incêndios de hoje deixam bem claro que, até agora, prevaleceram os interesses econômicos e empresariais muito acima dos ambientais.
Tradução: Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.
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