A grande e fabulosa distopia da falta de utopias
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- Cassiano Terra Rodrigues
- 30/12/2024
Megalópolis (dir. Francis Ford Coppola, EUA, 2024, 2h 18m) é um filme megalomaníaco. Perdoem-me o trocadilho, mas é difícil evitá-lo. Não é o tipo de filme do qual se sai indiferente do cinema. Menos gente vai ao cinema hoje em dia, eu sei, mas isso não é importante. Pessoalmente, lamento não ter visto o filme em uma sala IMAX, o que possibilitaria ver a tela ser dividida em três, como em algumas exibições mundo afora aconteceu. Imagino como seria ver esse filme na tela grande de um cine Comodoro, um Majestic, um Astor... Nas telas pequenas das pequenas salas de cinema atuais, como as heroicas salas do Belas Artes (foi ali que vi o filme), não posso duvidar, o filme perde boa parte de seu impacto.
Como não poderia perder? O próprio diretor avisou para o título do filme ser levado a sério – “uma fábula” – e o próprio filme, por ser fabuloso, nem tanto. O título do filme, em inglês, também indica a subjetividade exacerbada do diretor: “Francis Ford Coppola’s Megalopolis”, isto é, a fábula é dele, Coppola, o filme é seu. E o que nós, espectadores, fazemos com isso?
Pois é. Difícil dizer. Eu mesmo me senti incomodado muitas vezes durante o filme e realmente não posso dizer que apenas gostei ou desgostei. O que me parece, e não tenho pretensão alguma de dar uma opinião definitiva sobre o que experimentei na sala do Belas Artes, é que o espectador é colocado numa posição desconfortável e nada insuspeita. Não penso que Coppola suspeita profundamente de sua obra ou que brinca com seu público, acho mesmo que ele acredita na moral–ou falta dela–da fábula que conta e que o incômodo não é facilmente resolvido para ele mesmo. Daí, ele resolve transferir esse incômodo a nós, na plateia, mas não de forma inconsequente, e sim como uma pergunta, um tanto retórica ou ambígua, é verdade, mas sem deixar de ser sincera.
Para não ficar críptico demais, tenho de dar alguns spoilers. E devo já declarar que não pretendo convencer ninguém que tenha visto o filme a mudar de opinião, muito menos decidir se o filme é bom, ruim, isto ou aquilo. Como desconfio da ambição filosófica de racionalizar obras de arte, principalmente filmes, contento-me, aqui, apenas com a indicação de alguns elementos do filme que me ajudaram a construir um sentido para a minha experiência de cinefilia. E tampouco espero que meu percurso revele alguma coerência implícita do filme, pois posso ser mesmo mais confuso. Espero ao menos não ser exageradamente arbitrário.
À primeira vista, “Megalópolis” é uma retomada, no contexto da política estadunidense contemporânea, de uma antiga história romana. Dois inimigos politicamente poderosos – Cesar Catilina (Adam Driver) e o prefeito Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito) – disputam o poder sobre a cidade de Nova Roma, uma alegoria vaga na medida certa de Nova Iorque. Catilina é o herdeiro da família mais rica do império. Além de ser um arquiteto brilhante, ele é capaz de parar o tempo e está apaixonado pela filha do prefeito, Julia Cicero (Nathalie Emmanuel).
Este é apenas o primeiro tema do filme, a sua camada mais superficial, uma releitura para os tempos atuais da conspiração contra a República romana, liderada por Lucius Sergius Catilina no século I antes da era cristã. De acordo com o principal opositor de Catilina, o senador e filósofo estoico Cícero, Catilina era um populista que conspirou para derrubar a República Romana depois de perder três vezes a eleição para cônsul. Cícero descobriu os planos de Catilina e, convencendo o senado a dar-lhe poderes excepcionais de emergência, conseguiu expulsar de Roma o conspirador e executar seus apoiadores sem o devido processo legal. As ações de Cícero, no entanto, não passaram em branco. Após o fim da conspiração, o político demagogo Públio Clódio Pulcro acusou Cícero de exagero e manobrou para que o senado o mandasse para o exílio. O fracasso de Catilina significou, no fim das contas, um caos político que abriu caminho para Júlio Cesar, logo depois, derrotar os cônsules do senado e tornar-se imperador.
Segundo o próprio Coppola, o filme desenha uma analogia da conspiração catilinária com o sistema político americano. A analogia é legítima, uma vez que os Estados Unidos foram fundados segundo princípios de Direito Romano. Seus “pais fundadores” – como, lá, são denominados os sete principais políticos da Independência e do começo do governo da nova nação: George Washington, Thomas Jefferson, John Adams, Benjamin Franklin, Alexander Hamilton, John Jay e James Madison – planejavam um governo “democrático”, sem reis, mas com escravos. Coppola chegou mesmo a observar que a história se repetiria nos Estados Unidos, um país ameaçado pelas mesmas forças políticas e tensões que destruíram a República e criaram o Império Romano. No filme, porém, a história, se não é farsesca, é invertida. Cícero, o político conservador e defensor do status quo, não é nada simpático; já Catilina, apesar de demagogo e de também se chamar César, parece realmente comprometido com uma sociedade mais democrática, ao menos, livre de dívidas. Catilina, para Coppola, é o porta-voz da utopia; o demagogo inescrupuloso, o populista farsesco é Clodio Pulcher (Shia LaBeouf), primo invejoso e ressentido de Catilina.
Se tomarmos esse primeiro tema a sério, ao menos dois outros podem ser identificados. Um deles é a utopia modernista da cidade ideal, o outro, correlato, a confiança na criação técnica, ou estética, como forma de resolução dos conflitos da história. O Catilina de Coppola (livremente inspirado em personagens de Ayn Rand) é um arquiteto e um cientista, ao mesmo tempo. Sua maior descoberta–a que lhe valeu o prêmio Nobel–é a revolucionária substância megalon, com a qual ele sonha construir uma utópica comunidade pacificada chamada, justamente, Megalopolis.
Mas a utopia de Catilina, como toda utopia, é também uma distopia. Se não deve haver dívidas, ainda assim a luta de classes não é o motor da história. Ao contrário, a revolta das massas parece ser apenas um motivo para a ascensão de Catilina (as massas nem aparecem direito e acho que nem podem ser chamadas de massas propriamente). Após a queda do satélite soviético (!) Cartago (!), que destrói boa parte da Nova Roma, Catilina consegue, ao menos momentaneamente, apaziguar as insatisfações de alguns adversários, derrotar outros e garantir a adesão do populacho ignaro à sua utopia megalômana. O que vemos, então, é a concretização da sua utopia: uma natureza como a de Blade Runner, muda, plastificada, praticamente sem vida, no centro da cidade de Nova Roma, como se pudéssemos simplesmente erigir uma natureza que, esvaziada de toda outra vida que não a nossa, pudesse simplesmente ser apropriada – e não expropriada (o que exigiria dar algum jeito nos seus donos – genocidá-los, como o foram os povos nativos do Continente americano, ou como os palestinos, desde a invenção do Estado de Israel). É um motivo endênico, no fim das contas, mas que Éden é esse? E mais: Éden para quem?
Acho que esse Éden na verdade não é nada ameno, mas é o próprio nada. É claro que não poderia faltar, no meio disso tudo, uma história de amor, traição e ciúme. Para isso, comparece Wow Platinum (Aubrey Plaza, ambiguamente inexpressiva), jornalista ambiciosa, corrupta e manipuladora, como personagem que tensiona as lealdades de todas as demais. É no casamento de Wow Platinum com Hamilton Crassus III (John Voigt, outra atuação indefinida) que a farsa da vestal acontece. Não darei esse spoiler, mas se o Jardim das Delícias é um lugar onde os maiores pecados do amor e da sexualidade são livres, nada disso vemos surgir na Megalopolis de Catilina. Nada, sim, reiteiro, pois não há catarse da qual–ou na qual–resulte o paraíso purificado e o que aparece à nossa vista é a imagem ou de uma Nova Roma que nem a pornografia de Calígula consegue emular ou a de uma Megalopolis completamente esvaziada de vida natural, tão artificial quanto a inteligência informática e maquínica que a produziu para nossa contemplação. Um lugar perfeito para o exercício do niilismo, a imagem translúcida de um lugar nenhum esvaziado de qualquer vida. O contrário do fascínio futurista causado pela Metrópolis de Fritz Lang.
Catilina é César – o imperador, não um revolucionário, já que sua utopia não resulta de revolução política, social ou econômica e provoca apenas um apaziguamento das insatisfações pelo maravilhamento que a visão da Megalopolis causa – um sublime espetacular que a todos hipnotiza e mortifica os sentidos, anestesiando-os. Nesse sentido, a construção visual do filme parece indicar um distanciamento relativamente a essa epiderme narrativa – o arrebatamento do olhar nunca é completado, uma vez que é impossível dar conta de tudo o que aparece na tela, ao mesmo tempo que nosso olhar é dominado pelas imagens. Na verdade, o rebuscamento das imagens tecnologicamente produzidas, a artificialidade exagerada da fotografia digital, o tratamento de cores – temperatura, saturação, nitidez etc. – sem falar na abundância de detalhes que não parecem decisivos – tudo isso cansa o olhar. É como se o filme emulasse a experiência de esgotamento físico após as horas que passamos diante das nossas telinhas, usando a cinematografia não para nos imergir na sua diegese, mas para nos afastar do que se passa na tela. Não é só a quebra da quarta parede que faz isso – e o filme teve algumas sessões ao vivo, em que, a certa altura, um ator se posicionou em pessoa frente à plateia, no cinema, para fazer uma pergunta a Cesar Catilina, que respondeu ao vivo, na tela – seria essa uma desculpa para uma pregação direta à plateia ou mais uma reinvenção do efeito de estranhamento? Imagino a surpresa que eu teria num momento como esse, ao menos inicialmente! Mas essa surpresa, após algum tempo, resultaria em quê? Só quem a presenciou pode dizer. O que me parece, e me pareceu ao ter visto o filme, infelizmente sem essa performance ao vivo, é que estamos sentados numa posição incômoda, a de espectadores da arrogância megalômana das elites, ou de um diretor que faz parte dessas elites, pessoas riquíssimas que tudo decidem sem que nós, meros mortais, participemos de maneira mais criativa ou sequer ativa. Um ator fez uma pergunta a uma personagem, mas o microfone, ou telefone, não foi aberto ao público. A personagem ordena ao tempo que pare, e o tempo, no filme, para. O que estamos a testemunhar? É realismo fantástico ou é apenas artificial, talvez até banal a ponto de dar vergonha alheia? Mas, sinceramente, vergonha alheia é uma sensação muito comum nos dias de hoje, não? Talvez só menos comum do que a de impotência diante do espetáculo mundano.
Como convém a um retórico dos nossos tempos, Catilina não é nem de esquerda nem de direita; na verdade, ninguém no filme tem posição ideológica muito esclarecida, o que permite supor que não se opõem ao modo de operação social instaurado. Cícero, lembremos, defendia a República Romana contra o conspirador que desejava conquistá-la; no filme, apesar das declarações do cineasta, a situação não tão diversa: o prefeito é um homem da ordem, o arquiteto quer por mais ordem na ordem, não há desejo de transformação radical. É como se a grande narrativa dos poderosos do mundo lutando pelo poder passasse à nossa frente, diante dos nossos olhos, debaixo dos nossos narizes, e não pudéssemos fazer nada. É natural que assim seja, ou melhor, é assim que as coisas são. Nem na narrativa ficcional as coisas mudam.
Debaixo, não, acima dos nossos narizes, pois é nesse lugar de baixo que somos postos, o que faz dessa narrativa uma ficção nada ingênua. Isso só me ficou claro no finalzinho mesmo do filme, quando a perspectiva de contre-plongée nos é indiscutivelmente imposta. Perdoem o tecnicismo, mas é necessário. Contre-plongée, ou contra-mergulho, é o mesmo que em inglês diz-se low-angle shot, tomada de ângulo inferior. É uma visão de baixo para cima na fotografia e no cinema, como quando, do chão, tenta-se fotografar prédios muito altos, por exemplo.
No cinema, o enquadramento da nossa visão de espectadores é comumente feito em um eixo horizontal. Da plateia, vemos de um ponto localizado na altura do meio do sujeito. Um cineasta como Yazujiro Ozu pode levar essa técnica à rigidez mais do que perfeita a ponto de a rigidez desaparecer – é natural ver pessoas ajoelhadas como se estivessem na altura dos nossos olhos. Já as vistas inclinadas, seja em mergulho de cima para baixo–plongée– ou em contra-mergulho, são muito menos naturais. A perspectiva da águia ou da rã, não importa, são imediatamente identificadas por nós como artificiais. Por isso, seu efeito cinematográfico é forçar a atenção, aumentando a impressão já causada pelo enquadramento. A perspectiva deslocada verticalmente provoca uma indisfarçável sensação de antinaturalidade e, se combinada ao movimento, pode provocar até mesmo náuseas ou terríveis angústias, dentre outras sensações. No filme de Coppola, esse recurso é usado com a precisão e a maestria de um Orson Welles, mas não apenas para criar profundidade de campo e espaço, e sim para, na imagem final, nos interpelar como espectadores.
Ao nos impor a perspectiva de baixo para cima, parece que Coppola está nos expulsando da zona de conforto, como se diz. É inegável que as imagens de Megalópolis, em sua imaterialidade saturada de efeitos especiais, propiciam uma experiência incômoda. É como se o filme nos impedisse de nos reconfortarmos com a posição de meros espectadores que aceitamos ao entrar no cinema ou ao sentar no sofá da sala, se virmos o filme por streaming. Contribuem para esse efeito os muitos acontecimentos que não dão em nada no filme. O satélite Cartago, por exemplo, ocupa toda a primeira metade da história, para praticamente desaparecer na segunda parte, depois de causar o buraco onde será construída a Megalópolis (acho que é só isso mesmo). Personagens vêm e vão aleatoriamente, como Nush “The Fixer” Berman (Dustin Hoffman), que entra e sai de cena sem coerência aparente para praticar ações de relevância discutível. Ou a narração de Fundi Romaine (Lawrence Fishburne), motorista e assistente de Cesar Catilina. É impossível, aqui, examinar detidamente cada uma das personagens secundárias, mas dificilmente as femininas passariam no teste de Bechdel, assim como todas as demais possivelmente sucumbiriam à uma leitura contra-colonizadora. Às pontas soltas na narrativa e às dificuldades de construção das personagens, juntam-se as que não estão soltas e parecem exageradamente óbvias ou forçadas. O excesso de citações cinematográficas, literárias e filosóficas, algumas quase com referência da página ou do fotograma de que foram tiradas; a exortação à nobreza por parte de pessoas duvidosamente nobres; o tempo que para, mas não para. Devemos engolir tudo isso sem falar nada? Como assim?
Eu não tenho dúvidas de que Coppola realmente acredita nos ideais de nobreza e conduta expressas nas citações de Shakespeare, Emerson e Marco Aurélio (dentre muitas outras) declamadas pelas suas personagens. Mas duvido muito que ele acredite que esses ideais podem de alguma forma valer alguma coisa no mundo em que vivemos, esse mundo que está retratado, ainda que por analogia, na distopia que é a utopia da Megalópolis. A farsa da vestal, já mencionada, parece exemplar, nesse sentido: na velha Roma, as virgens que cultuavam a deusa Vesta eram sacerdotisas, guardiãs do fogo sagrado, encarnações simbólicas de pureza e de potência fecunda infinita; na Nova Roma, a virgem é falsa e nada tem de pura ou casta, ao contrário.
Mas Coppola, se parece desconfiar do nosso presente, não me parece ter realizado um filme moralista ou reacionário. Penso que ele continua acreditando no cinema – principalmente, no seu próprio cinema – como forma autêntica e criativa tanto de expressão artística quanto de juízo crítico e denúncia, sem deixar de ser ao mesmo tempo cético quanto à capacidade do cinema de incitar as sensibilidades, como um dia já foi possível acreditar. Cético, talvez, não seja a melhor palavra. Um realista desencantado, eu diria, mas não conformado. Basta lembrar que é impossível contar a história do século XX sem o cinema para imaginar o quanto a vida social já foi permeada e colonizada por filmes. Não é só a incapacidade da arte de transitar ou mediar entre as esferas da vida social em geral – aliando-se a umas, opondo-se a outras – que o filme parece tematizar, mais uma camada, um terceiro tema, romântico, como as citações de Goethe sugerem; mas a própria capacidade do cinema de continuar a ser socialmente indispensável no século XXI – essa sim, uma quarta camada do filme, menos superficial e nem por isso mais densa, mas ainda tênue e meramente sugestiva. Pois quem é que ainda vai ao cinema hoje em dia? É certo que alguém ainda vai, como eu, mas, com os preços dos ingressos no patamar em que estão e o fim dos cinemas de rua, é inegável que o cinema atual está longe de ser a arte popular que foi no século XX. E se ainda há quem vá ao cinema, como eu, para ver filmes como Megalópolis, então não posso deixar de admitir que a experiência da cinefilia não deixou de fazer parte da vida social, mas se tornou um mercado de nicho. Com o esgotamento do mercado de streaming despontando no horizonte, o formato das séries não demonstra nem a mesma vivacidade nem a mesma disposição para a longevidade que o cinema conquistou. Chegamos a uma contradição, então?
Uma contradição que não embota o pensamento e que não se releva facilmente. A todo momento esse filme megalômano parece querer nos afastar da história que conta pelo exagero dos próprios meios cinematográficos. Se fosse um romance, é como se o narrador nos contasse: essa história não vai oferecer alívio, exemplo ou redenção, desista. No filme, a sobrecarga visual, o excesso sonoro, a artificialidade dos sentimentos das personagens, a inocuidade da moral, a falta de erotismo nas cenas de amor e sexo, o heroísmo pós-moderno, fraturado e frágil, a hipocrisia da política, a vida das elites distantes do chão da gente comum, uma gente, aliás, sem nome e sem papel, de tão comum. Só vemos farsas dentro de uma fábula essencialmente farsesca. A falência das grandes narrativas em uma grande narrativa, a guinada inevitável das utopias ao caminho sem volta das distopias filmada em cinemão, um filme que para retratar o fim do cinema tal qual o conhecemos até o final do século passado não fala de cinema, mas de urbanismo, política e sei lá mais o quê, mas se põe como o próprio cinema que fala ao vivo aos espectadores, sejam quem e quantos forem. O que leva a pensar em quais formas de criação estética dominarão o século XXI – conseguiria o cinema sobreviver além da técnica? Mas isso me lembra uma frase de outro diretor, Terry Gilliam, se não me engano, que seria: “O cinema é como um dinossauro que muita gente tenta matar com tiros de revólver, mas qualquer filme do Spielberg mostra que é impossível matar dinossauros desse jeito”. Em outro depoimento, Coppola afirma mesmo isso: o cinema talvez morra para renascer de outra forma, assim como a nossa civilização um dia deixará de ser o que é para outra surgir. Essa analogia é dele, não minha, o que me leva a pensar que Coppola não considera se dedicar à atividade de matar dinossauros daqui em diante. Ufa!
Até que, no final, da perspectiva de rã, aquela que nos é imposta, como a parte que nos cabe desse latifúndio, vemos uma criança no ponto focal da imagem que se fecha em vinhetas. A criança é depositada, com solene discurso, em um chão transparente, acima de nossas cabeças. Olhamos para ela de baixo para cima, é impossível não a vermos, até que só vemos a ela, sem saber se podemos tocá-la. Depois que o foco se fecha completamente, fica a pergunta: o que essa criança representa, afinal? Nada? Uma esperança de futuro? O último dos males da caixa de Pandora, também citada–obviamente, a esta altura já podemos dizer–no filme? A camada mais profunda e essencial do filme, enfim, aquela camada que nos implica no contracampo incontornável sem o qual o campo do visível não existiria? Difícil afirmar. Afinal, o que vemos no cinema não tem camadas, a tela é só um pano, não vários sobrepostos, uma imagem é uma imagem e talvez seja sempre a mesma que esperamos ver a cada vez.
A meu ver, depois desse filme tão aparentemente ambíguo quanto desconcertante, há uma pergunta possível e apenas possível: até quando nos contentaremos em ficar sentados e a tudo assistir passivamente, esperando respostas de um filme, de um diretor de cinema, de políticos que não andam entre nós, de sei lá mais quem? Perdoem-me, mas não resisto a uma paráfrase totalizadora: a quem cabe a responsabilidade pelo mundo que queremos, afinal, a não ser a nós mesmos?
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