Correio da Cidadania

Chaga no Xingu: um olhar retrospectivo sobre Belo Monte

Findo um ano, há três certezas no mundo moderno:

- a explosão de buscas online pela canção natalina da Mariah Carey;
- súbito interesse, por parte de muitos, em balbuciar palavras frente a uma tela;
- a temporada de retrospectivas, de todos os gêneros, números e graus;

Pois, de fato, o texto a seguir abordará o ano de 2024 a partir das perspectivas de dois atores que contracenam forçosamente há pelo menos dez anos.

De um lado, o Xingu, que faz papel de rio. Do outro, a Belo Monte, que faz papel de usina hidrelétrica. Discorrerei, a partir de dados hidrológicos que abrangem os últimos cinco anos, sobre o momento atual desse indesejado contrato social entre locador e inquilina. Há soluções para tamanho imbróglio? Provavelmente, sim. Continuaremos-na buscando; mas antes, som na caixa, Mariah.


Gráfico 1. Evolução das pesquisas no Google pela música "All I Want for Christmas", exemplificando típico comportamento sazonal.

No ano de 2024, assim como demais partes do país e do mundo afora, a floresta amazônica foi afetada por fenômenos climáticos extremos, seja no Norte, no Sul, e do Madeira ao Xingu. Esses eventos continuam sendo naturais, em essência. Não se gerou a chuva torrencial com uma máquina nas nuvens, tampouco a estiagem é, de imediato, dolosa. Anos de seca extrema e de enchentes que dariam inveja a Noé já aconteceram aos montes no passado da Terra. A diferença está na frequência com que anos como o de 2024 foram observados, no que diz respeito ao clima global.

Se, no registro geológico, é possível verificar que algumas vezes a cada milênio acontecem episódios ambientais que se desviam muito da condição climática esperada naquele momento, atualmente, o intervalo entre os chamados eventos climáticos extremos segue tendência de encurtar-se, ou seja - não só devemos esperar que continuem ocorrendo, como cada vez mais deles. Fatalmente, esta análise torna incompatível a ideia de que o clima atual, de extremos, seja análogo a outros eventos de mudanças climáticas ao longo da história do planeta.

Ou seja, já é seguro afirmar que o clima, hoje, possui um caráter pós-moderno, isto é, artificialmente gestado a partir do acúmulo das mudanças climáticas de origem humana, resultado de séculos de certa ordem econômica mundial que prezou pela constante busca por crescimento e consumo desenfreados. Foi o mundo capitalista, afinal, que a partir da revolução industrial injetou, sem consentimento da vítima, parte dos produtos da queima de combustíveis fósseis na atmosfera terrestre.

Calma, não sou maluco a ponto de sugerir que comunistas ou anarquistas iriam viver de fotossíntese, e nem que queimar carvão per se levou-nos ao que vivemos agora. Mas são gases como o CO2 e metano os responsáveis pelo efeito estufa, acumulando-se ano após ano para tecer o cobertor planetário que envolve a Terra e impede que parte do calor armazenado por aqui seja devolvido ao espaço, o que daria pelo menos uma folguinha ao aquecimento.

Tentando fazer alguma justiça a outras fontes importantes desses gases, não relacionadas aos combustíveis fósseis, podemos citar emissões de gases biogênicos, produtos da decomposição contemporânea de matéria orgânica submersa em condições redutoras apropriadas. Não surpreende que o Lago de Belo Monte seja um exemplo formidável dessa fonte de metano, com seu amplo reservatório que, nas horas extras, é também cemitério de celulose alagada.

Para além de nosso país, há, por exemplo, o solo congelado permafrost, que acumula um sem-número de petagramas de carbono orgânico preso sob gelo perene. Uma vez alcançada a temperatura limite para a existência desses solos, gases armazenados há quase uma dezena de milhar de anos estarão livres, leves e soltos para contribuir mais ainda com o aumento do efeito estufa, formalizando um didático feedback positivo da mudança climática.

As dezenas de eventos que nos impressionaram ao longo deste ano, nos quatro cantos do mundo, evidenciam importante descompasso climático - colocando em xeque o argumento de que pode ter sido um ano como outro qualquer, apenas recheado de eventos climáticos de menor probabilidade de ocorrência.

O ano de 2024 não foi exatamente “dos bons”, pra muita gente. Definitivamente nem para o Rio Xingu, nem para a UHE Belo Monte. Foi um ano cuja probabilidade de ocorrência figurava entre as menores possíveis de se predizer. A parte complicada vem a seguir, pois haverá um dia em que anos como este, muito árido para a bacia do Xingu, serão, de fato, alguns dos bons.

A seguir, discorro sobre a origem dos dados hidrológicos utilizados nesta análise, e, após a exposição, seguem meus comentários sobre o réveillon a la Xingu.

A base de dados

O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) é a instituição que coordena a geração e transmissão de energia elétrica no Brasil. Organização privada sem fins lucrativos, gerida sob tutela da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), é o responsável pelo planejamento e operação do Sistema Interligado Nacional (SIN) de distribuição de eletricidade.

Dentre as virtudes do ONS, que creio serem ao menos algumas, está a disponibilização de ampla base de dados atualizados diariamente a nível federal. A partir do https://www.ons.org.br/paginas/resultados-da-operacao/historico-da-operacao/dados-gerais, em poucos cliques pode-se gerar relatórios e gráficos sobre o panorama energético no Brasil. Quanta energia Itaipu produziu em 2019? Lá tem. No dia de ontem, havia quanta carga disponível no sistema em caso de eventual aumento de demanda? Tem também.

Neste fortuito e respeitoso oásis de valorização de informações precisas e contínuas, foram feitas as seguintes pesquisas na base de dados hidrológica de monitoramento dos rios brasileiros que hospedam reservatórios hidrelétricos.

Tais pesquisas podem ser reproduzidas pelo leitor, com as seguintes opções:

É possível salvar e exportar os resultados em formatos diversos, além de abrir no próprio site tabelas com os dados. As pesquisas indicadas retornam, para cada um dos 1827 dias consultados, um valor de vazão, que é a medida do volume de água que passa por determinada região ao longo do tempo (m3/s).

No caso da vazão afluente no reservatório Pimental, os valores podem ser interpretados como o "estado natural" do Rio Xingu, o volume de água que estaria correndo com ou sem reservatório. O Xingu que se deveria observar em um dia qualquer de décadas atrás, quando ir à prainha de Altamira trazia felicidade invejável àquela que 2025 pode oferecer, limitada a no máximo um sábado de sol no lago da usina.

Já com relação à vazão turbinada no reservatório Belo Monte, temos o volume médio diário da água que passou pelas gigantescas turbinas Francis localizadas na Casa de Força Principal, um total de 18, cada uma esbanjando potência nominal de 611.11MW, que em conjunto totalizam o numeral mais regurgitado pelos encarregados de dourar a pílula hidrelétrica.

Os colossais 11,233.1 MW de capacidade instalada para geração de eletricidade (para todos os efeitos, 18 x 611.11 = 10,999.98; o chorinho vem da Casa de Força Complementar presente na barragem de Pimental) catapultam, de imediato, a UHE Belo Monte para o topo dos rankings de maiores usinas hidrelétricas do planeta, e faz da usina a menina dos olhos de setores desenvolvimentistas.

Séries históricas de dados hidrológicos permitem melhor análise de tendências para a Bacia do Rio Xingu, que tem como nascentes cabeceiras ao norte do Mato Grosso, já deformadas pela cultura de soja que vem desde a década de 1980. Um bom exemplo é o município de Querência - MT, localizado à beira do Parque Indígena do Xingu. A fronteira entre município e terra protegida é simbólica - ao vermos imagens de satélite ou fotografias aéreas, de um lado haverá um oceano verde-escuro de dosséis de árvores centenárias, enquanto, passada a linha, o poder destrutivo da mentalidade colonizadora, na forma de uma ferida pustulenta, encravada na floresta.

A cidade apresenta, há pelo menos duas décadas, formidável crescimento populacional, econômico e territorial. A palavra querência, como nos ensina Érico Veríssimo, nada mais é para os gaúchos que seu lar; local para onde se deseja retornar ao fim de uma jornada. Estranhamente, neste caso, o rendez-vous agropecuário foi parar um pouco distante dos pampas.


Figura 1. Imagem extraída no Google Earth do município de Querência – MT. Pode parecer, à primeira vista, tentativa tupiniquim de reproduzir a lendária estética de Mondrian, mas na verdade se trata do cenário atual de chagas produzidas em uma floresta até então intocada, responsável por parte da água que irá girar as turbinas da UHE Belo Monte, milhares de quilômetros adiante.

Tabela I. Síntese de informações sobre a vazão do Rio Xingu em Altamira – PA, compilado a partir do ONS.

Vazão natural Rio Xingu (m3/s)

2020

2021

2022

2023

2024

Máximo (cheia)

24,816

23,465

25,658

24,618

18,152

Mínimo (seca)

508

733

715

880

524

Média (12 meses)

7,697

7,272

9,553

7,733

5,179

Variação frente ao período anterior

-

-5.52%

31.37%

-19.05%

-33.02%

Vazão turbinada Belo Monte (m3/s)

2020

2021

2022

2023

2024

Média (12 meses)

3,864

4,282

5,118

4,271

3,004

Variação frente ao período anterior

-

10.82%

19.53%

-16.54%

-26.66%


Gráfico 2. Vazões (m3/s) naturais do Rio Xingu em Altamira, registradas pelo ONS (Reservatório Pimental).