Correio da Cidadania

CVRD: Ela enriquece. E nós?

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A Companhia Vale do Rio Doce está cada vez mais rica e internacionalizada. Quando aumenta sua presença em outros países, acata as exigências que lhe são feitas pelos governos locais, inclusive sobre os trabalhadores. Não é da mesma maneira que procede no Brasil. Aqui, desrespeita os direitos do trabalhador, que paga a conta do crescimento. O maior avião cargueiro do mundo, o russo Ilyushin, pousou no aeroporto de Belém recentemente. Fretado pela Companhia Vale do Rio Doce, transportou pneus para caminhões Haulpak, conhecidos como "fora-de-estrada". Essas máquinas são usadas pela empresa em Carajás, que é a maior província mineral do mundo, no sul do Pará. Com capacidade para 140 toneladas e com 13 metros de altura (equivalente a um prédio de quatro andares), o "fora-de-estrada" é o maior de todos os caminhões. Um deles, na madrugada do dia 28 de julho, passou sobre o corpo do auxiliar de serviços gerais Thiago Santos Cardozo, de 20 anos, morador de Marabá, que trabalhava na jazida N4 Norte.

Entre três e quatro horas da madrugada, Thiago segurava um cabo elétrico, que transferia energia de um gerador para a área de operação de uma escavadeira, situada atrás do local onde o caminhão ia carregar minério. Thiago não tinha lanterna nem rádio de comunicação, e a visibilidade era deficiente por falta de iluminação adequada.

A operação foi considerada, pelos fiscais do Ministério Público do Trabalho, "prática bastante arriscada e insegura". Eles estranharam, na perícia realizada logo em seguida, que essa fosse a única atividade "não exercida por trabalhador" contratado diretamente pela CVRD, "apesar da relação direta com o processo produtivo". Essa atividade, de maior risco, foi transferida para o trabalhador terceirizado, muito jovem e provavelmente inexperiente. Além de nativo.

O motorista Divanyr Clayton Lima não percebeu a presença de Thiago no local, onde não devia estar, ao dar ré no caminhão, e o esmagou. Só soube do acidente quando o motorista de uma pick-up, que estava no pátio de manobras, o avisou por rádio. De sua posição, no alto da cabine da máquina, a visibilidade traseira do enorme caminhão é nenhuma. O operador manobra às cegas, sem contar sequer com câmeras ou iluminação própria do veículo. No registro policial, a morte foi classificada de "triste fatalidade".

Foi o acidente de maior impacto em Carajás neste ano. Mas não o único. Projetada para operar com até 25 milhões de toneladas anuais de minério de ferro, a mina de N4 vai atingir 100 milhões de toneladas neste ano e chegará a 130 milhões em 2008, quase metade da produção recorde que a CVRD está planejando para todo país, de 300 milhões de toneladas. Todos os dias o trem, o maior trem de minérios do planeta, recebe 700 mil toneladas, que transporta por quase 900 quilômetros até o porto da Ponta da Madeira, na ilha de São Luís, no litoral do Maranhão. Daí, o mais puro minério de ferro do mercado segue para o mundo; 60% dele rumo à China e ao Japão, os maiores compradores, a 20 mil quilômetros de distância.

Para que haja essa quantidade de minério em condições de embarque, máquinas e homens, em turnos sucessivos de trabalho, que se estendem sem intervalos pelo dia inteiro, movimentam um milhão de toneladas de terra e rocha todos os dias. A pressão gera tensão, que impõe sacrifícios aos trabalhadores e dá causa aos acidentes. Provavelmente eles são muito mais numerosos do que os registrados pela companhia e apontados pelo governo.

No ano passado, por exemplo, outro operário terceirizado foi soterrado por 4,6 mil toneladas de minério de ferro. Ele estava dentro de um automóvel pequeno, que dava manutenção a uma dessas máquinas gigantes, quando um talude desmoronou sobre o veículo. Como o operador também era empregado terceirizado, provavelmente essa estatística - como a maioria das ocorrências - não apareceu nos registros da companhia, que propagandeia seus índices positivos de responsabilidade social. Não incluindo neles, é claro, os maus feitos dos seus empreiteiros.

Das 23 mil pessoas que trabalham atualmente em Carajás, apenas 10% é de contratados diretamente pela CVRD. Mais de 20 mil trabalhadores foram recrutados por 175 empreiteiros, que terceirizaram a maior parte dos serviços, sobretudo os mais pesados e menos qualificados. Há turnos de seis, oito e 12 horas. Os intervalos para descanso e convivência familiar ficam ainda mais reduzidos porque os empregados perdem de duas a quatro horas indo ou voltando para suas casas. A distância, no caso dos que moram fora do núcleo residencial de Carajás, passa de 30 quilômetros.

Para a Vale, o cenário é como se fosse de uma cidade comum. Por isso, se recusa a pagar o trajeto como hora extra de trabalho. Esse é o principal motivo de mais de 90% das 8 mil reclamações protocoladas na 1ª vara da justiça trabalhista de Parauapebas nos últimos 18 meses (o congestionamento já provocou a criação de uma segunda vara para o município).

A empresa não reconhece a alegação dos reclamantes de que, a caminho do trabalho numa região pioneira, entre a portaria da mina e cada uma das frentes de lavra, deviam ser remunerados por estarem "in itinere", a expressão técnica dada ao tempo de transporte para local de trabalho de difícil acesso, que não é servido por transporte público. Nesse caso, as horas de deslocamento devem ser computadas na jornada de trabalho.

Além de não partilhar esse entendimento, a CVRD diz também que tal benefício não consta dos contratos assinados com os empregados. E não se impressiona com a contradita do MP do Trabalho, de que essa hipótese se enquadra na renúncia a direito previsto em lei, cujo cumprimento pode ser cobrado pela autoridade competente na defesa de um direito que o cidadão deixa de exercer. Há muitas queixas também contra o excesso de trabalho nos turnos.

Todas as causas somadas, a empresa e suas terceirizadas teriam que pagar aproximadamente 70 milhões de reais. Esse valor equivale à receita de pouco mais de um dia de produção bruta em Carajás. Pagar em juízo, assim, se tornou um negócio mais rentável do que cumprir no ato as obrigações trabalhistas. E ainda possibilita a legalização das infrações, pela via do acordo em juízo, apagando o passado.

O sistemático descumprimento de garantias legais e a recusa da Vale de conceder vantagens aos trabalhadores brasileiros contrasta com a postura que a empresa adotou ao adquirir a Inco, empresa canadense que detém as maiores jazidas de níquel do mundo e é a segunda maior produtora. O governo do Canadá impôs várias condições à CVRD para aprovar a transação, dentre as quais impedimento a demissões por cinco anos, manutenção salarial e transferência da sede das operações de níquel para aquele país.

Há brutal contraste também com os lucros líquidos recordes que a empresa alcançou nos últimos anos (11 bilhões de reais só no primeiro semestre deste ano contra R$ 14 bilhões em todo o ano passado) e a milionária distribuição de dividendos aos seus acionistas, com uma taxa de retorno, de 40%, que nem os bancos igualam. Essa fantástica rentabilidade é decorrente da competência da empresa, dos preços elevados das commodities no mercado internacional e do surgimento de novos compradores, ou, sobretudo, das taxas de crescimento da China. Mas também contribuem decisivamente para esse desempenho a isenção de impostos, os créditos favorecidos, a colaboração financeira oficial e o baixo valor da remuneração do trabalho.

Os atuais donos da Vale do Rio Doce foram favorecidos pela aquisição do controle acionário por preço vil. Além disso, a privatização foi precedida de uma dispensa em massa de funcionários, por conta da estatal, que não apropriou adequadamente esse ônus. Foi igualmente ignorado o valor extra-patrimonial das informações estratégicas em poder da companhia, o sistema logístico, o controle de grande parte do subsolo do país (e, em particular, do Pará) e as condições monopolísticas ou oligopolísticas que detinha, toleradas em função da sua condição de empresa pública. A tolerância não foi alterada pela privatização. Mas devia ter sido.

Sem falar na coincidência da entrada em vigor da famigerada Lei Kandir (proposta pelo deputado paulista Antônio Kandir, que não prejudicou seu Estado, como fez com Pará, Minas Gerais e Espírito Santo), isentando a exportação de produtos primários e semi-elaborados exatamente em 1997, ano da privatização. Em 10 anos, só o que a Vale deixou de recolher de ICMS foi além de quatro bilhões de reais, ou quase duas vezes o valor do investimento na fábrica de alumínio da Albrás, em Barcarena, a 8º maior do mundo.

Alvo de 103 ações que há uma década questionam na justiça o leilão de venda e de manifestações de protesto dos movimentos sociais, a Vale reage à sua maneira: contratando empresas internacionais para avaliar a mudança do seu nome e da sua logomarca. Por um lado, essa maquilagem tem sentido: afinal, a CVRD, comandada por Roger Agnelli, uma variação empresarial da visão de Luís XIV (depois dele, o dilúvio), aderiu irrestritamente à globalização.

A empresa parece disposta a aprofundar ao máximo sua internacionalização, mesmo que isso custe a perda da identidade de origem, que é pública e é brasileira. Contudo, essa mudança de aparência pode também equivaler ao gesto do marido traído, que joga fora o sofá onde flagrou a mulher infiel. Com nome e marca novas, a Companhia Vale do Rio Doce continuará infiel ao significado que podia ter para as regiões que explora, ao invés de desenvolver. Infiel à própria propaganda e ao discurso de responsabilidade social, feito para inglês ouvir e chinês aplaudir.
 
 
Lúcio Flávio Pinto é jornalista.
 
Fonte: Adital
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