Correio da Cidadania

Cappio: 'A transposição é um projeto ecologicamente insustentável e eticamente corrompido'

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Em 2005 o Bispo Dom Luís Cappio, passou 11 dias em jejum, em Cabrobó (PE), encerrados após o compromisso do governo em “suspender o projeto de transposição e iniciar um amplo diálogo entre governo e sociedade civil brasileira”. O franciscano afirma que o compromisso assumido pelo governo foi descumprido com a chegada do 2º Batalhão de Engenharia do Exército, instalado em Cabrobó desde o dia 4 de junho deste ano.

Confirma a entrevista com o religioso, que a nove dias retomou o jejum contra a transposição do rio São Francisco


Que motivos levam o senhor e algumas organizações da sociedade civil a serem contra o projeto da transposição das águas do Rio São Francisco?


Dom Luís Cappio – Olha, os grandes motivos que nos levam a ser contrários ao projeto de transposição, em primeiro lugar porque ele é socialmente injusto. Porque, embora a propaganda oficial diga que essa água vai para atender 12 milhões de habitantes, isso não é verdade. Essa água é destinada para os grandes empresários, para os grandes empreendimentos econômicos no Nordeste, não é? A criação de camarão, a produção de frutas para exportação. Essa água vai passar muito distante das comunidades que realmente necessitam da água. E também é injusta porque quem vai ser beneficiado com essa água são os grandes, os projetos, os empreendimentos agroindustriais e que vai pagar a conta de energia elétrica é o povo, através do subsídio cruzado. É o povo que vai pagar um aumento na conta de sua energia elétrica para poder subsidiar essa água que vai beneficiar as grandes empresas.


Em segundo lugar é um projeto economicamente inviável. E por quê? Porque o próprio governo já apresentou, através da Agência Nacional das Águas (ANA), o Atlas do Nordeste, que tem mais de 500 alternativas de recursos hídricos para as comunidades urbanas.

A transposição, também é um projeto ecologicamente insustentável, porque vai usar um rio que precisa ser urgentemente revitalizado. Também é eticamente corrompido esse projeto. Porque ele vai transformar a água em objeto de compra e de venda, de produto de mercado, e a água é um produto, um dom de Deus para a vida das populações, um bem essencial para a vida e não pode se transformar em objeto de mercado, de barganha no mercado. É por isso que nós somos contra esse projeto de transposição, porque não vai atender as necessidades, que enganosamente o governo ilude a população do Nordeste.

Em declaração à imprensa, o presidente Lula afirma que “entre os 12 milhões de pobres que sofrem com a escassez de água e o Dom Luís Cappio”, ele, o presidente, “fica com os pobres”. Como o senhor acha que o presidente vai se comportar nessa sua segunda tentativa de barrar o projeto da transposição?
 Dom Luís Cappio – Olha, se essa afirmação do presidente fosse verdade, eu também ficaria com ele. Eu também assinaria embaixo, porque eu gostaria que todos os meus irmãos do Nordeste tivessem água, e água com abundância, água de qualidade. Nós estamos lutando por isso.

É uma mentira muito grande quando eles dizem que nós somos egoístas, que nós não queremos dar água. Isso não é verdade. Nós estaríamos dispostos a dar com toda alegria, e queremos dar água para nossos irmãos do Nordeste, queremos sim. Agora, esse projeto de transposição não é para 12 milhões de pessoas, é para um pequeno grupo interessado no capital, nas grandes empresas, não é para o povo.

O governo deveria ter a coragem de falar a verdade, de dizer a verdade sobre a transposição e não continuar iludindo o povo dizendo que essa água é para o povo, quando ela não é para o povo, não é? Se o que o presidente disse fosse verdade, eu estaria com ele e assinaria embaixo dessa palavra dele. Mas, isso não é verdadeiro. O governo deveria ter a coragem de dizer a verdade, para quem realmente a transposição interessa, e não é para o povo é para os grupos econômicos.

Quando eu converse com ele, com o presidente Lula, lá no Palácio do Planalto, eu disse a ele: “olha presidente, eu a vida inteira lutei para vê-lo sentado aí, nessa cadeira em que o senhor está. Toda a vida eu vesti a sua camisa e lutei pelo senhor. Mas, infelizmente, depois que o senhor assumiu o poder, o senhor se tornou refém dos grandes grupos econômicos do Brasil e do estrangeiro. Hoje, o senhor é refém do capital. O senhor esquece das suas origens. O senhor esqueceu do povo que o elegeu para ser o presidente dos pobres desse país”. Isso eu disse a ele. Nesse momento, ele abaixou a cabeça. Então, eu não posso admitir que um presidente que foi eleito para ser, especialmente, prioritariamente, presidente dos pobres desse país, hoje esteja governando para os ricos do Brasil e do mundo. (Ouça esse trecho aqui).

Quando o senhor chegou a conclusão que deveria retomar a greve de fome?


Dom Luís Cappio – Eu cheguei à conclusão em reassumir porque quando, há dois anos atrás, eu encerrei o jejum lá em Cabrobó, foi porque eu acreditei no governo, quando nós assinamos juntos o nosso documento, que abria um amplo debate nacional para procurar as melhores alternativas de abastecimento hídrico para o Nordeste. Então, eu acreditei nesse contrato, nesse pacto firmado, nesse documento assinado. Foi por isso que eu deixei o jejum há dois anos atrás. Nesses anos, foram muitas as tentativas de reabrir esse diálogo, de realmente fazer com que esse diálogo acontecesse, porque a nossa preocupação é que o povo tenha água, e água de qualidade. Mas, nunca o governo se interessou de fazer aquilo que havia prometido e assinado em Cabrobó. Em vista disso, qual foi a resposta deles? Foi o início das obras usando o Exército Brasileiro.

Isso comprova que é uma obra autoritária, é uma obra autocrática, que não é fruto de uma discussão em que o povo participa, porque uma obra desse tamanho, com esse porte de investimentos econômicos mereceria uma consulta popular, que o povo opinasse, que o povo também desse as sua sugestões. Uma obra desse porte, ela necessariamente tem que nascer de um consenso democrático, e ela foi autoritariamente imposta, está sendo construída através do Exército Brasileiro. Então, em vista disso, nós retomamos o jejum, porque fomos enganados, não apenas eu, mas toda a sociedade brasileira foi enganada. O governo não atendeu aquilo que assinou, aquilo que compactuou, de abrir um amplo diálogo nacional para ver as melhores alternativas de desenvolvimento sustentável para o Semi-Árido brasileiro. Foi por isso que nós retomamos o jejum. (Ouça esse trecho aqui).

Nessa luta em defesa do São Francisco o senhor tem encontrado mais aliados ou mais opositores?


Dom Luís Cappio – Eu estou rodeado de amigos, bispos, padres, religiosos, o povo, tá tudo aqui comigo. A gente sente, o povo é o primeiro que percebe o absurdo de tudo isso. A solidariedade tem sido imensa. O número de cartas, de e-mails que a gente recebe, de mensagens solidárias. O número incrível de rádios, de emissoras de TV, como vocês que me telefonam pra saber da verdade dos fatos. Então, a solidariedade tem sido muito, muito, muito grande e isso fortalece muito a luta.

Dentro da Igreja parece não haver unanimidade em relação à transposição.

 

Dom Luís Cappio – Não existe.

Na primeira greve de fome a CNBB e a Santa Sé o criticaram...


Dom Luís Cappio
– Alguns segmentos, não a CNBB, porque a CNBB sempre esteve conosco. Alguns grupos, alguns bispos, alguns membros da Igreja que eram opositores. Mas, a CNBB nos deu o maior apoio. Agora mesmo eu recebi uma carta belíssima da CNBB manifestando todo o seu apoio e mostrando tudo isso que eu estou acabando de dizer, que o governo deveria olhar para as carências e necessidades do povo.

Esse seu gesto, de decretar greve de fome, é um ato de fé ou um ato político?


Dom Luís Cappio – Agora mesmo eu estava conversando com o meu amigo, Dom Geraldo, bispo de Juazeiro, e a gente está embasado na fé. A gente assume esse gesto porque a gente acredita na palavra de Deus, que diz que quando o inimigo é muito forte, muito grande, somente o jejum e a oração são capazes de dominá-lo. É por isso que nós entramos no jejum e estamos em oração, porque acreditamos na palavra de Deus, a única que nos dá força e coragem para enfrentar inimigos tão fortes. (Ouça esse trechoaqui).

Para finalizar, que recado o senhor deixa para as famílias do Semi-Árido?


Dom Luís Cappio – Eu gostaria de dizer para todos vocês, meus irmãos nordestinos... Lançamos uma carta dirigida a todos vocês, e eu diria o seguinte: “Olha, escute bem o que o frei vai dizer. Nós não somos egoístas querendo a água do São Francisco só para nós. Se essa água da transposição fosse realmente para vocês, nós seríamos os primeiros a aprovar o projeto. O que nós somos contra é a menti, à propaganda enganosa do governo, dizendo que ‘essa água vai para tirar a sede dos que têm sede. Que quem tem sede é a favor do projeto’. Isso é uma propaganda enganosa. Não se deixe levar por essa propaganda, dizendo que essa água vai para 12 milhões de habitantes, porque isso não é verdade. Essa água vai para um pequeno grupo de empresários e quem vai pagar conta é o povo”. É essa verdade que o povo precisa saber. (Ouça esse trecho aqui)

 

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