A crise do setor elétrico e a passividade do governo federal
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- 21/01/2008
O Correio publica abaixo nota do ILUMINA, Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético sobre a crise energética.
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Neste início de 2008 o setor elétrico brasileiro volta a enfrentar mais uma de suas já quase rotineiras ameaças de crise de abastecimento, conseqüentes à implantação do modelo mercantil do governo FHC em meados dos anos noventa do século passado. Recorda-se que, consumidas as reservas de segurança então existentes, necessárias e compatíveis com um sistema de base hidrelétrica como é o nosso, já no ano 2000 surgia a primeira ameaça de crise que afinal veio a se materializar dramaticamente em 2001. Tornou-se necessário um pesado racionamento durante nove meses (Junho/2001 a Fevereiro/2002) em toda área do sistema interligado nacional (SIN).
Pouco mais de dois anos depois, em 2004, a região Nordeste esteve seriamente ameaçada de novo apagão, em virtude de atraso no período chuvoso nas cabeceiras do rio São Francisco, escapando por muito pouco. E em 2005 e 2006 a ameaça de crise aconteceu no sub-mercado do Sul, devido à ocorrência de dois anos consecutivos de hidrologia desfavorável na região.
Agora, configura-se a ameaça de uma grave crise para os sub-mercados do Nordeste e Norte-Interligado, com a possibilidade eventual de se alastrar para a região Sudeste/Centro-Oeste, tendo em vista o atraso já confirmado de mais de dois meses no regime de chuvas nas cabeceiras dos rios São Francisco e Tocantins, cujas nascentes situam-se em áreas vizinhas, que são responsáveis pelo potencial hidroenergético das respectivas regiões. Em conseqüência, as vazões dos citados rios, que já deveriam ter apresentado crescimento significativo desde o mês de novembro passado, até agora se situam bem abaixo das suas médias históricas, insuficientes não apenas para a recuperação dos armazenamentos dos seus reservatórios, como até mesmo para a produção da energia atualmente demandada. Nesse período, enquanto os reservatórios de Tucuruí e Sobradinho atingiram níveis mínimos, o abastecimento dos seus mercados está sendo garantido pela transferência maciça de energia da região Sudeste, tanto para o Nordeste quanto para o Norte, bem como do acionamento de todo o parque térmico nacional que atualmente dispõe de combustível para gerar, inclusive usinas remanescentes do chamado programa emergencial pós-racionamento.
Não se pode afirmar que haja iminência de um novo racionamento neste ano de 2008. Esta hipótese é muito remota. Mas não resta dúvida que a situação é preocupante, especialmente quanto ao que poderá ocorrer em 2009 se a hidrologia do período úmido no final deste ano persistir desfavorável e o consumo continue com expansão significativa em função do crescimento da economia.
Porém, o que mais espanta em tudo isto é a passividade com que o Governo Federal, através de seus representantes mais qualificados do setor, tem encarado essa ameaça de crise, sempre negando a possibilidade da ocorrência de qualquer problema, tal como aconteceu na época de FHC antes do racionamento. E o que parece ainda pior, é a ausência de providências mais efetivas que possam evitar uma crise nos próximos dois ou três anos. Não adianta falar nas grandes usinas futuras, como as do rio Madeira, Angra 3 e Belo Monte, que somente estarão funcionando, respectivamente, a partir de 2012, 2014 e 2015. Até 2011, muita coisa poderá acontecer e, além de pequenas complementações do PROINFA, praticamente só se poderá contar mesmo com a oferta hidrelétrica já existente e o parque térmico já implantado, que, aliás, precisa urgentemente contar com disponibilidade firme de gás natural.
Mas aqui parece absolutamente conveniente examinar-se o porquê do surgimento repetido dessas ameaças de crise no setor elétrico brasileiro Na verdade, o que se tem observado é que o sistema hidroenergético brasileiro tornou-se muito vulnerável e, a qualquer sinal de anormalidade nos períodos de chuvas nas bacias dos seus principais rios, logo aparece uma ameaça de crise. Isto não deveria ocorrer.
É oportuno registrar com muita ênfase uma lembrança.
Antes do modelo mercantil de FHC, tanto a expansão quanto a operação do sistema eletro energético brasileiro eram conduzidas mediante processos de planejamento de caráter plurianual, suportados em critérios probabilísticos, que foram totalmente abolidos no modelo adotado. A energia elétrica passou a ser considerada uma “commodity”, com preços fixados pelo mercado, em função do suposto equilíbrio (ou desequilíbrio) entre oferta e demanda, que sinalizariam as oportunidades para expansão da oferta. A operação seria efetuada basicamente pela busca da otimização pelo mérito de custo da geração. Como era de se esperar, isto não funcionou, não houve expansão adequada e deu no que deu: o racionamento.
O Governo Lula, que assumiu em Janeiro de 2003 com uma proposta de mudanças profundas no modelo, através de Medida Provisória que se transformou na Lei 10.848/2004 e em legislação complementar, introduziu uma série de modificações no modelo FHC que melhoraram substancialmente o funcionamento do setor. A EPE (Empresa de Pesquisa Energética) foi implantada com o objetivo de restabelecer o planejamento estratégico plurianual como atividade permanente.
Porém, no que se refere à operação, praticamente nada de relevante foi acrescentado. A verdade é que, ao lado das melhorias implantadas, a nova legislação preservou quase que integralmente as características de mercado do modelo de FHC, do que resultou para o setor elétrico um novo modelo que alguns dirigentes do setor denominaram “híbrido”, mas que mereceria ser denominado de “mercantilista renovado”.
Assim sendo, é necessário enfatizar que a operação dos grandes reservatórios de armazenamento do sistema dentro de um modelo com filosofia de mercado, seja no de FHC seja no “híbrido” de Lula, faz-se de forma fundamentalmente diferente daquela função de regularização plurianual sob cujas bases, e com enorme sucesso, tais reservatórios foram planejados, projetados e construídos. Sem dúvida, esta deve ser a razão pela qual o nosso sistema hidrelétrico tem apresentado tanta vulnerabilidade a qualquer anormalidade no regime de chuvas.
A este respeito, vale a pena retornar aos acontecimentos da época do racionamento. No bojo daquela situação adversa, foi criada a Câmara de Gestão da Crise de Energia (CGE), comandada pelo então Ministro Chefe da Casa Civil do segundo mandato de FHC, Eng. Pedro Parente, por inspiração de quem foi implantada a chamada Curva Bianual de Aversão ao Risco (CAR), por meio da Resolução CGE nº. 109, de 24/01/2002.
O objetivo da CAR foi justamente o de criar um monitoramento do sistema hidrelétrico interligado para evitar-se que dali para frente ele pudesse entrar novamente numa situação de descompasso entre oferta e demanda tão crítica quanto aquela de abril de 2001, na qual havia apenas uma única medida a ser adotada: o racionamento.
Adicionalmente, naquela ocasião foi também determinado pela CGE que o Ministério de Minas e Energia (MME), a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e a Agência Nacional de Águas (ANA), em conjunto com o Operador Nacional de Energia Elétrica (ONS), até 31/12/2002 deveriam definir também um mecanismo de aversão a risco de racionamento para ser incorporado internamente aos modelos computacionais de otimização eletro energética usados para a operação do sistema. Entretanto, segundo a própria ANEEL, até hoje não se obteve uma metodologia para este fim validada por todos os interessados e homologada pela Agência Reguladora. Em outras palavras, das determinações da CGE restou apenas a CAR.
Então, a partir da Resolução CGE 109, anualmente cabe ao ONS elaborar a CAR para os dois anos seguintes, para cada um dos sub-mercados do SIN (Sul, Sudeste/Centro-Oeste, Nordeste e Norte–Interligado), em consonância com o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), e submetê-las à aprovação da ANEEL.
Deve ser ressaltado, porém, que na prática a Curva Bianual de Aversão ao Risco traduz apenas uma visão de curto prazo (dois anos), cuja finalidade básica é “denunciar” e deixar explícita uma eventual situação de iminência de crise para o sistema hidrelétrico, de modo que se possa tempestivamente acionar os recursos termelétricos disponíveis, gerando energia mais cara, com vistas à superação das dificuldades imediatas.
Ocorre que isto não vem funcionado como era de se esperar porque, embora existam várias usinas térmicas implantadas, de fato não existe gás natural suficiente para muitas delas operarem plenamente. Este problema ficou evidente em 2004, quando da ameaça de crise no Nordeste, ocasião em que o Governo teria “descoberto” que não se dispunha de gás, o que, segundo consta, teria causado um sério mal estar dentro do MME. Do mesmo modo, o problema se repetiu em 2005 e 2006, quando das dificuldades na região Sul, que somente foram superadas graças à transferência de energia do Sudeste e de Itaipu.
Agora, de forma similar, quando todas as térmicas convencionais seriam mais do que necessárias, de uma capacidade total instalada no SIN de mais de 12.000 MW, por insuficiência de combustível não se tem conseguido gerar sequer 5.000 MW médios, incluindo aí as usinas ditas emergenciais que estão despachadas por autorização do CMSE, medida adotada em reunião do dia 12 de dezembro passado.
Aliás, esta limitação da capacidade real de geração das térmicas já foi até institucionalizada pelo Termo de Compromisso celebrado em Maio de 2007 entre a Petrobrás e a ANEEL, pelo qual ficou estabelecido um cronograma para regularização paulatina do suprimento de gás para diversas usinas, a ser completado até 2010. Todavia, há quem questione a real possibilidade da Petrobrás vir a cumprir fielmente tal compromisso, que inclusive já teria sofrido algum contratempo.
Por tudo que foi acima exposto, o ILUMINA considera que já seria tempo de o Governo Federal mandar promover estudos aprofundados para apurar as causas reais da vulnerabilidade que o sistema eletro energético brasileiro vem apresentando com freqüência, conforme aqui foi explicitado, viabilizando a formulação das necessárias propostas de correção do atual modelo para que o setor elétrico venha a desempenhar o papel de verdadeiro prestador de um serviço público essencial e não seja mantido como uma área cobiçada para a realização de bons negócios.