Carta de João Sette Whitaker Ferreira à Veja São Paulo
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- 11/05/2007
A revista "Veja São Paulo" desta semana (http://vejasaopaulo.abril.com.br/revista/vejasp/sumario2007.html) fez uma dupla de reportagens sobre "jovens arquitetos que estão mudando a cara da cidade" e sobre a ocupação dos mananciais que é o retrato de como as classes dominantes enxergam (ou não-enxergam) a cidade.
Para rebater o descompromisso com a realidade da revista, o urbanista e professor João Sette Whitaker Ferreira escreveu uma carta para a redação da revista, que reproduzimos abaixo.
"Prezados editores da Veja SP,
Ao colocar lado a lado, numa mesma edição, reportagem sobre jovens
arquitetos - todos brilhantes, sem a menor dúvida - que estão
"começando a mudar a cara da cidade", e outra sobre o desmatamento e a
ocupação dos mananciais (Veja São Paulo Ano 40, nº18, 9 de maio de
2007), a revista, de forma provavelmente inconsciente, mas muito
sintomática, acaba escancarando o absoluto descompasso existente entre
a forma como as elites brasileiras vêem e entendem a situação urbana do
nosso país, acreditando que a "cidade" é só uma, justamente aquela
privilegiada pelos investimentos públicos e pelo mercado imobiliário, e
que pode ter sua "cara" moldada e renovada apenas pelos traços
competentes de arquitetos de sucesso em projetos de casas, lojas e
edifícios.
Infelizmente, a cidade não é só essa, a dos belos projetos
arquitetônicos. E os milhões de paulistanos (quase metade da cidade!)
que vivem em situação precária ou na informalidade urbana, inclusive
nos mananciais, também fazem parte dela, mesmo que sejam esquecidos e
desdenhados pela cidade "que vale", a não ser quando lhe servem como
domésticas, pedreiros, seguranças, caixas de supermercado.
Se é verdade que os grileiros cometem crime ao promover a ocupação
ilegal dos mananciais, não é por isso que se pode chamar aqueles que
buscam moradia nessas regiões por absoluta falta de alternativas
oferecidas nem pelo Estado e nem pelo mercado, de um "mundaréu de gente
usando as represas de maneira irresponsável". Se parece incomodar a
ameaça que essa ocupação constitui para a reserva de água potável da
cidade, deveria incomodar mais o fato de que não somos capazes de
construir uma sociedade que ofereça moradia a todos e com isso preserve
não apenas a natureza e nossos recursos naturais, mas sobretudo a
dignidade de seus cidadãos.
Para a revista, os "bons exemplos de ocupação" da represa ocorrem
apenas nos raros bairros de alta classe como o Riviera Paulista ou nos
privilegiados clubes como o Yatch Club Santo Amaro. O que a revista não
percebe é que a degradação urbana e ambiental - que se vê na ocupação
de mananciais, mas também, por exemplo, na manutenção irresponsável de
prédios vazios em áreas centrais com infra-estrutura - é de
responsabilidade de todos nós, que produzimos uma sociedade desigual e
intolerante, que prefere simplesmente ignorar que a "cidade" não é
formada apenas pelos bairros "que funcionam", cuja "cara" é mudada
pelos arquitetos de sucesso.
É preciso juntar as coisas e aceitar que a profissão dos
arquitetos-urbanistas ainda tem enormes desafios pela frente, para
promover uma cidade menos desigual e com moradia digna para todos, sem
o que, ao contrário do que pressupõe o primeiro artigo, deverá
dobrar-se à constatação de seu profundo fracasso em seu papel social de
promover a habitação para toda a sociedade. Esse é, aliás, o objetivo
mais original da profissão, para o qual se dedicam também muitos
arquitetos. Se o atingir um dia, quem sabe então mereça não só uma capa
da Veja SP, mas o respeito de toda a sociedade. E, em especial, dos
excluídos.
Prof. Dr. João Sette Whitaker Ferreira
Professor de Planejamento Urbano, de graduação e pós-graduação, das
Faculdades de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e da
Universidade Presbiteriana Mackenzie".