Carta do encontro de agricultores do sem-árido nordestino
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- 03/08/2007
O Correio publica abaixo a carta política produzida após a IV Festa Estadual da Semente da Paixão, ocorrida na Paraíba, onde agricultores e agricultoras do nordeste brasileiro debateram questões relacionadas à agricultura familiar e ao campesinato do país.
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Semente da Paixão: plantando e colhendo solidariedade e riquezas no Semi-Árido
Nós, mais de 2.000 pessoas, entre agricultoras e agricultores familiares e representantes de entidades que integram a Articulação do Semi-árido Paraibano e a Vía Campesina, nos reunimos na cidade de Patos (PB), nos dias 23, 24 e 25 de julho de 2007, na IV Festa Estadual da Semente da Paixão, para celebrar as conquistas que alcançamos nos últimos anos em defesa da agricultura familiar e camponesa ecológica como base de sustentação de um modelo de desenvolvimento para o semi-árido que seja justo socialmente, viável economicamente, sustentável ecologicamente e respeitoso culturalmente. O evento foi também uma oportunidade para renovarmos nossas estratégias de ação frente às sérias ameaças à construção desse modelo.
O nosso evento é o coroamento de um processo de preparação que vem se desenvolvendo desde o último mês de março nas regiões do Cariri, do Seridó, do Alto Sertão, do Agreste, do Curimataú, do Médio Sertão, do Brejo e do Litoral da Paraíba, que mobilizou milhares de famílias articuladas à Rede de Bancos de Sementes Comunitários no Estado que, atualmente, é composta por 6.560 famílias associadas a 228 bancos que estão distribuídos em municípios de todas as regiões do Estado.
A articulação dessa rede se deu em resposta à constatação de que as famílias agricultoras vinham perdendo ano após ano as variedades locais de sementes do roçado que vêm sendo guardadas e aprimoradas por gerações. Além de serem sementes de variedades adaptadas às diferentes condições ambientais, atendem às preferências culturais das famílias agricultoras e se ajustam bem aos seus sistemas de produção. Além disso, são sementes que estão à disposição na hora exata do plantio, não ficando as famílias dependentes de programas de distribuição de sementes governamentais. As sementes da paixão são, portanto, um verdadeiro patrimônio genético da agricultura familiar e camponesa do estado. Elas não podem ser colocadas em risco em nenhuma hipótese, sob pena de tornar as famílias agricultoras atreladas aos interesses das multinacionais ou dependentes de ações de governo, tornando os seus sistemas de produção inviáveis técnica e economicamente e gerando, como conseqüência, insegurança alimentar para as famílias.
Também consideramos que as sementes de plantas nativas da caatinga e as raças das diferentes espécies de animais pertencem a esse patrimônio genético. Além de sermos detentores das sementes da paixão, dominamos como ninguém os conhecimentos sobre o uso delas. Esse patrimônio genético, portanto, é também um patrimônio cultural do qual não abrimos mão.
Manter as sementes da paixão em uso permanente e intercambiá-las entre as famílias e comunidades tem sido a principal forma como cuidamos e multiplicamos nosso patrimônio. Além de preservar as sementes da paixão, essa estratégia reforça laços de solidariedade em nossas comunidades e organizações.
Colhendo também
A nossa boa vontade
Agricultor ensinando
Sem cobrar isso é verdade
Trabalhando em mutirão
Irmão ensinando irmão
Isso é solidariedade
Embora estejamos certos de nossas estratégias de ação nas comunidades, também temos a certeza de que precisamos fortalecer nossa luta em defesa de políticas públicas que reforcem o caminho que estamos trilhando. Apesar de visualizarmos alguns pequenos avanços, infelizmente o que assistimos é o apoio irrestrito do Estado ao fortalecimento do modelo do agronegócio no semi-árido, inclusive nas políticas direcionadas à agricultura familiar.
O Pronaf, por exemplo, apesar de ter sido uma conquista dos/as trabalhadores/as, tem servido para atrelar os/as agricultores/as familiares às empresas produtoras de insumos e sementes e tem promovido sistemas de produção especializados, pouco diversificados, cumprindo o papel de fortalecer a lógica do agronegócio e enriquecer as empresas e fazendeiros, indo na contramão da proposta de uma agricultura familiar e camponesa diversificada, autônoma, baseada nos princípios da agroecologia.
Apesar desse cenário desfavorável, os agricultores e as agricultoras familiares têm lutado para garantir o uso de suas sementes da paixão e têm alcançado algumas vitórias: a Lei de Sementes de 2003 reconhece a legalidade das sementes da paixão e isto permitiu que a Conab financiasse a compra destas sementes. Fruto da mobilização das organizações sociais, o governo tomou medidas para que os projetos de crédito e o seguro da agricultura familiar reconhecessem o uso da semente da paixão e não as excluísse dessas políticas. No entanto, a vivência dos agricultores e das agricultoras mostra que estes avanços ainda não são suficientes e é preciso continuar na luta.
Apesar das aberturas conseguidas junto ao Pronaf, os bancos continuam rejeitando financiamentos para projetos que prevêem o uso de sementes da paixão. As recentes mudanças na diretoria da Conab também nos colocam em estado de grande apreensão quanto à continuidade de um de seus melhores programas, o Programa de Aquisição de Alimentos que, inclusive, vem viabilizando a aquisição das sementes da paixão para fortalecer as redes de bancos de sementes no estado.
O Ministério do Desenvolvimento Agrário se equivocou ao financiar um programa voltado à distribuição no semi-árido de sementes de milho e feijão da Embrapa. Este programa repete os erros de sempre: sementes de poucas variedades, pouco adaptadas às condições e necessidades dos agricultores, envenenadas, e com uma distribuição controlada pelos políticos locais.
O governo Lula cometeu um erro ainda mais grave ao ceder à pressão do agronegócio e forçar a liberação dos transgênicos no Brasil. Após a soja e o algodão, agora querem liberar o milho transgênico. Além dos riscos para a saúde dos consumidores, as plantas transgênicas, sobretudo o milho, contaminam as outras através de cruzamentos espontâneos. Se o milho transgênico for liberado, em poucos anos todas as variedades de milho estarão contaminadas.
Uma outra ameaça às sementes da paixão vem da política do governo federal de incentivo a produção de agrocombustíveis, principalmente a produção de mamona e da cana-de-açúcar para etanol. A produção da mamona se insere num modelo extremamente prejudicial para a agricultura familiar e camponesa, pois se baseia no monocultivo, gera dependência dos agricultores e das agricultoras em relação às empresas que compram a produção e não gera a renda prometida para as famílias. A política de expansão da produção de cana-de-açúcar para a fabricação do etanol, altamente apoiada pelo governo brasileiro, é ainda pior, uma vez que prevê a expansão do monocultivo de cana em grandes áreas, disputando território com a agricultura familiar e explorando de forma absurda e inaceitável o trabalho humano. Os nordestinos continuam servindo de mão-de-obra barata para o trabalho no corte da cana nas regiões sudeste e centro-oeste. Os agricultores e as agricultoras familiares estão muito ameaçados de perder suas terras para a expansão do agronegócio da cana, no litoral e no semi-árido, neste último caso articulada ao projeto de transposição do Rio São Francisco. Soma-se a isso as ameaças advindas da pesquisa com variedades transgênicas de cana.
Pelas razões expostas, manifestamos com firmeza os pontos abaixo, também constantes nas moções aprovadas na III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional realizada recentemente em Fortaleza:
1- Exigimos uma Conab comprometida com a agricultura familiar e camponesa;
2- Repudiamos a tentativa de violação dos direitos dos agricultores ao uso próprio das sementes;
3– Posicionamo-nos contra a liberação do milho transgênico;
4- Repudiamos a decisão do governo federal de levar a frente o projeto de transposição das águas do Rio São Francisco.
Nosso encontro é uma mostra do vigor de nossa luta.
Saímos dele fortalecidos para permanecer unidos em defesa de nossos direitos sobre a nossa agrobiodiversidade. Daremos continuidade ao nosso trabalho de base, associando um número crescente de grupos comunitários à rede de bancos de sementes no estado. A partir dela daremos continuidade aos esforços de resgate, intercâmbio e multiplicação da semente da paixão. Ficaremos ao mesmo tempo atentos às iniciativas do Estado. Manifestamos desde já o nosso total e irrestrito apoio ao Programa Nacional de Agrobiodiversidade que vem sendo construído pela Articulação Nacional de Agroecologia junto a diferentes organismos do Estado (ver moção de apoio à criação do Programa Nacional de Agrobiodiversidade, também aprovada na III Conferência Nacional de SAN).