Mais Médicos e a proposta de mais do mesmo
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- 28/08/2013
“Da Copa, da Copa, da Copa eu abro mão! Eu quero meu dinheiro pra saúde e educação!”, cantava o povo nas ruas de Brasília durante a onda de manifestações que atingiu o país no mês de junho de 2013 e que continua…
O acesso e a qualidade dos serviços de saúde estão entre as principais insatisfações do povo brasileiro há décadas. De fato, foi a luta deste povo que quebrou a inércia do governo petista e o obrigou a correr e apresentar medidas para esta e outras demandas populares. No entanto, se por um lado temos na movimentação do governo uma vitória, por outro, não podemos nos iludir: as medidas tomadas e declarações verbalizadas pelo governo são ruins.
Se acertam ao identificar a falta de acesso e a dificuldade de fixação de profissionais no interior como desafios essenciais a serem enfrentados, erram ao ignorar o foco da crítica à falta de financiamento e qualidade, culpabilizam o trabalhador e desresponsabilizam o atual governo e seus 11 anos, e cinco ministros da Saúde diferentes, pela insatisfação atual, além de restringir de forma equivocada a discussão à falta de médicos, elegendo isso como principal entrave para uma saúde de qualidade.
A proposta principal do programa Mais Médicos baseia-se em três eixos: 1) alongar a duração do já longo período de formação médica, acrescentando dois anos finais de estágio supervisionado pela universidade com registro provisório e recebimento de bolsa; 2) promover abertura de escolas médicas e ampliação de vagas; 3) promover a vinda temporária de médicos formados no exterior.
É equivocado nos seus três eixos, cada um a sua maneira. E não aponta para a lógica de qualificar o SUS. Pelo contrário, alonga de forma desnecessária e autoritária o tempo de formação médica, precariza ainda mais a relação de trabalho, incentiva privatização da formação em saúde e desqualifica as emergências e a Atenção Primária.
Segundo ciclo e serviço civil
Em primeiro lugar, porque institui um serviço civil obrigatório travestido de estágio supervisionado, com funções, responsabilidade e características de trabalho médico, com um registro de trabalho provisório que na prática permite a prescrição e o exercício da profissão nesses locais. Qual sua autonomia e responsabilidade no serviço? Não se sabe.
Porque a proposta também não garante na sua Medida Provisória o perfil da supervisão, nem sua qualidade. Nem a relação de supervisores/aluno. Cita que haverá pagamento de uma bolsa de estudo com padrões compatíveis com o mercado e deixa tudo a ser regulamentado e sob responsabilidade da Instituição de Ensino Supeior (IES).
Não há razão para acreditar na qualidade dessas regulamentações pendentes. Primeiro porque serão realizadas via Conselho Nacional de Educação (CNE), historicamente subserviente aos empresários do setor. Segundo porque nos 10 anos do governo atual, considerando nosso baixo orçamento em saúde e educação, além da contenção de gastos apresentada como primeiro dos cinco pontos no pacto da Dilma, a balança das regulamentações sempre pende para a privatização ou sucateamento do serviço público.
O fato é que esse estágio foi criado com o argumento de ser um espaço para aperfeiçoamento da prática médica. Faz referência a um modelo inglês de formação, mas aponta para o lado contrário (4). Ele infla o tempo do vínculo do estudante com a Universidade, onde na maioria das vezes tem uma formação completamente desconexa das necessidades do serviço e consequentemente das necessidades de saúde da população. É um erro e uma ação desnecessária aumentar ainda mais o ciclo de formação a partir dessa lógica e da limitação à graduação, desconsiderando que os conceitos mais eficazes de formação para o trabalho, como a Educação Permanente e a própria Residência, assim o são pois aproximam a formação da realidade e possibilitam um caráter multiprofissional, mais reflexivo e transformador da prática.
Um ano de trabalho supervisionado na atenção primária e outro na emergência não podem ser levados a sério como propostas para a qualificação do profissional ou, como foi dito, humanização de sua prática. A emergência é um setor de extrema importância e complexidade. Só a citação das aberrantes UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) na apresentação da Dilma dos Pactos Para a Saúde mostra o total descaminho do governo nesse setor. As UPAs foram criadas para reduzir filas, entretanto, não reduzem. São apenas um ente desconectado da rede de atenção à saúde, que gasta muito, com pouca resolutividade, além de estimular a medicalização excessiva para enfrentamento dos problemas de saúde. São uma péssima proposta para o setor, que precisa ter sua existência revista. Sem contar que seu projeto ainda acelera a privatização da saúde, já que a maioria destas unidades são administradas por Organizações Sociais. Será esse o local privilegiado para o estágio supervisionado em emergência?
Na Atenção Primária à Saúde (APS), porta de entrada do sistema, 80% dos problemas de saúde apresentados podem ser resolvidos, desde que haja acesso da população a outros direitos básicos (como educação, moradia, saneamento), estrutura para a rede de saúde (incluindo tanto estrutura física quanto a possibilidade real de acompanhamento, pela mesma equipe de saúde, de uma comunidade de forma longitudinal por longos períodos de tempo) e qualificação profissional para todos trabalhadores envolvidos.
Na APS, um estágio de um ano é tempo de menos para a qualificação do trabalho e tempo demais para um manter como médico um recém-formado sem qualificação e com supervisão precária. Um modo de fazer do provisório um potencial permanente, com poucos benefícios ao estudante e malefícios para a população e para o sistema de saúde. A qualificação para o trabalho no SUS e em particular na Atenção Primária precisa ser política séria, mestra para reordenação do sistema e feita a partir de residências profissionais que qualifiquem o profissional e o serviço.
Entretanto, o que os governos do PT fizeram foi aprofundar o caráter privatista da formação em saúde. Nas universidades, conseguiram implementar reformas que nem o governo tucano de Fernando Henrique havia conseguido, induzindo ainda mais as universidades a acompanharem e se adaptarem à reestruturação do modelo produtivo nacional. Lei de Inovação tecnológica, ENADE, PROUNI, Parcerias Públicos Privadas, REUNI são todas medidas para reforçar esse modelo mercantil de educação superior.
O fato é que hoje, mesmo com as Diretrizes Curriculares para os cursos de graduação em Medicina, que preconizam um médico “com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano” mantemos o modelo de formação hospitalocêntrico, baseado no consumo de consultas, insumos, medicações e procedimentos, sem (quase) nenhuma visão comunitária, que não consideram os determinantes sociais do processo saúde-doença. Ou quando o fazem, fazem de forma superficial, resultando em uma prática médica com resolutividade assustadoramente insuficiente. Essa formação resume o profissional de saúde e o médico em particular a um intermediário entre a grande indústria de produtos e serviços de saúde e a população, seu mercado consumidor.
Abertura de novas escolas
No seu segundo eixo, o programa Mais Médicos mantém a mesma lógica. Enfrenta o problema da baixa relação entre ingressantes por habitante, estimulando, através de editais e do chamamento público, ainda mais a abertura de escolas privadas. Ao não enfrentar mais uma vez o grande empresariado da saúde e da educação, o governo petista escolhe o seu lado. Do mesmo modo como tem sido em outros setores, quando não demarca terras indígenas e fica do lado do agronegócio, quando joga bombas em manifestantes e fica do lado da FIFA, quando leiloa o petróleo e fica do lado da indústria petroquímica e tantos outros exemplos.
Além disso, a abertura de novos cursos nas cidades sem uma discussão das formas de acesso não garante a entrada e permanência de estudantes e futuros médicos da própria localidade. O acesso de forma nacional, sem considerar as nuances regionais, através do ENEM, faz com que em vários estados, como Acre e Maranhão, grande parte dos estudantes das universidades federais seja originária de outros estados, diminuindo a possibilidade de que, quando formados, permaneçam na região.
Ainda sobre a participação do setor privado na formação para o SUS, no projeto para aumento de vagas em residências médicas, o programa fortalece a possibilidade de abertura de residências médicas em instituições privadas (7). As residências em instituições privadas distorcem o caráter essencial da formação em serviço e expõem o residente, cuja bolsa é financiada pelo Estado, ao trabalho como mão de obra qualificada em favor do lucro dos empresários da saúde.
Interiorização e precarização do trabalho
A terceira ação do “Mais Médicos”, inevitável, promove o “incentivo” à interiorização do médico brasileiro e a vinda dos médicos formados fora do país para suprir o vazio de nossa baixa relação médico/habitante, além de uma distribuição desigual que deixa um vazio assistencial no interior e em locais de difícil fixação, como as periferias das grandes cidades.
A despeito da reação xenófoba e com um grande viés de reserva de mercado, capitaneada pelas entidades médicas, ampliar o acesso e preencher esse vazio é de fato uma necessidade.
Mas não é uma necessidade enfrentar esse problema com uma estratégia que precariza ainda mais o vínculo trabalhista no SUS. Novamente sob a desculpa de estar provendo formação, nesse caso, como pós-graduação, é notório que se trata de um programa com foco principal em interiorizar o médico. Nessa estratégia o governo estabelece uma forma de contrato aviltante, temporário e precário. Exclui do trabalhador o direito a férias remuneradas, 13° salário, FGTS, adicional de insalubridade e estabilidade. Obriga os bolsistas a pagarem o INSS como contribuinte individual, sem que haja contribuição patronal (6). Em seu edital, estimula a contratação via EBSERH (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), a despeito de sua contestação pelo Conselho Nacional de Saúde e em todas as universidades públicas federais do país.
O governo PT mais uma vez deixa claras suas prioridades. Ao invés de instituir um plano de carreira para os profissionais da saúde, consequentemente fortalecendo o SUS, apresenta uma proposta onde a lógica do mercado adentra cada vez mais o Estado. Recentemente o governo já havia tentado resolver o problema com o PROVAB (Programa de Valorização da Atenção Básica) onde foi oferecida aos médicos a opção de um ano de trabalho na atenção básica, em troca de remuneração compatível com o mercado, com contratos precarizados onde os profissionais ganhariam pontuação extra em futuras provas seletivas de residência médica.
Por argumentos semelhantes aos que colocamos aqui no debate sobre o “Mais Médicos”, o PROVAB não conseguiu atrair médicos em número suficiente e nem interiorizá-los. Dos que foram atraídos, muitos desistiram. Se demonstrou um fracasso retumbante enquanto política pública, com impacto insignificante no acesso à saúde pela população. Está claro que as alternativas à carreira do SUS apresentadas pelos governos significam ainda maior precarização do SUS, limitação do acesso à saúde qualificada e o fortalecimento do setor privado.
É preciso destacar que enquanto o setor privado existir nesses moldes atuais de parasita do SUS (7), enquanto isto não for enfrentado de forma estrutural, seja com o fim do subfinanciamento do nosso sistema de saúde público, seja na disputa do perfil de formação dos trabalhadores da saúde, seja na regulação das especialidades e residências de acordo com as necessidades de saúde da população e não do mercado, seja na criação de estratégias de absorção desses profissionais pelo SUS público e não pela rede privada ou pública terceirizada, não haverá futuro para o SUS.
Retomando nossas origens, num passado recente, o movimento sanitário entendia que o modelo de assistência à saúde implementado no Brasil durante a ditadura militar – curativo, individual, assistencialista, médico-centrado, hospitalocêntrico, superespecializado, orientado para o lucro e favorecimento do complexo médico industrial – era altamente excludente, insustentável financeiramente e incapaz de dar resposta às necessidades de saúde da população. Como alternativa se propunha a reorientação desse modelo assistencial através da criação de um Sistema Único de Saúde estatal, orientado pela atenção básica e guiado por princípios como a universalidade, integralidade e equidade. Era a partir desses pressupostos essenciais que se via a possibilidade de superar a má distribuição regional e local de profissionais da saúde, e a concentração destes no setor privado.
Entretanto, após 25 anos de SUS e 11 anos de governo petistas, vemos que as opções políticas feitas, definitivamente, não levaram à superação do primeiro modelo. Ao contrário, ele convenientemente tem sido remodelado e adaptado às necessidades do complexo médico-industrial que, sem enfrentamento, continua mais forte, influente e poderoso do que nunca. Vemos no programa Mais Médicos nada além de mais um episódio dessa novela.
Neste cenário, não nos resta outra saída, a não ser continuarmos nas ruas. Não estamos satisfeitos. Continuaremos lutando contra a privatização do SUS e precarização do trabalho, fim do modelo centrado no hospital e pelo fortalecimento da atenção primária como reordenadora do sistema. Não aceitaremos mais do mesmo para resolver nossos problemas.
Referências e textos relacionados
1- MP – http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2013/Mpv/mpv621.htm
2- Edital e portaria - http://www.in.gov.br/imprensa/visualiza/index.jspjornal=3&pagina=125&data=09%2F07%2F2013, http://www.in.gov.br/imprensa/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=49&data=09%2F07%2F2013
3 – http://susbrasil.net/2013/07/18/a-saude-o-sus-e-o-programa-mais-medicos/
4 – http://www.northerndeanery.nhs.uk/NorthernDeanery – O modelo inglês de formação o egresso da graduação de 5 anos mais dois anos num ciclo (foundation 1 e 2) fica sob responsabilidade de um órgão formador do serviço de saúde (Deanery) de cada macroregião que é responsável tanto por esse estágio quanto pela residencia.
5 – http://www.psolsaude.com.br/46
7 – http://www.conass.org.br/conassinforma/anexo_1248_junho_13.pdf
Fonte: Setorial de Saúde do PSOL.