PEC 54/99 não é "trem da alegria"
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- 02/10/2007
Nem tudo é o que parece. O tratamento que boa
parte da imprensa, instituições da sociedade civil e alguns políticos vem dando
à PEC 54/99, projeto de Emenda Constitucional prestes a ser votado no Congresso
Nacional, tachando-a de "Trem da Alegria", é uma generalização
equivocada.
A PEC 54/99 e seus adendos abrangem diferentes situações de trabalhadores que
atuam no governo. Preferimos a expressão "trabalhador", em vez de
"funcionário público", porque nem todos os envolvidos são funcionários
públicos na acepção mais comum desse termo, isto é, nem todos têm estabilidade
no emprego nem receberão aposentadoria integral quando se aposentarem, como dá
a entender erroneamente o noticiário divulgado pela imprensa.
Nós, que assinamos esta carta aberta, constituímos uma dessas situações: a de
funcionários de empresas de economia mista, que sempre foram contratados pelo
regime da CLT, não têm aposentadoria integral e nem estão reclamando, antes ou
agora, estabilidade no emprego. Queremos apenas justiça. Nada mais. Não a
justiça baseada em tecnicismos legais, mas a justiça que emana do bom senso e
do respeito à pessoa.
Que fique bem claro: não estamos aqui defendendo a aprovação pura e simples da
PEC 54/99. O que queremos é que esse projeto de Emenda Constitucional seja
colocado de forma correta para a sociedade, em suas diferentes nuances. Que sua
proposta seja discutida de forma honesta e transparente. E não como está
acontecendo, isto é, um massacre prévio por hipoteticamente ser apenas mais uma
distribuição de privilégios, daquelas que já nos acostumamos a assistir neste
País.
Quando a nova Constituição foi promulgada, o Artigo 37, em seu Inciso II,
estabeleceu que "a investidura em cargo ou emprego público depende de
aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos,
ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre
nomeação e exoneração" (esse texto foi posteriormente modificado pela
Emenda Constitucional 19, de 1998). Já em seu Artigo 173, Parágrafo 1º, a nova Constituição
determinou que "a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras
entidades que explorem atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico
próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e
tributárias" (esse texto também foi depois alterado pela Emenda
Constitucional 19, de 1998).
À luz desses dois artigos da Constituição, surgiu uma dúvida. Mais do que isso,
criou-se uma polêmica: as empresas de economia mista, como diz o próprio nome,
híbridas em seu status jurídico, e citadas explicitamente no Artigo 173,
estariam sujeitas também ao disposto no Artigo 37? Uma controvérsia que levou
alguns anos para ser dirimida definitivamente por quem tinha poder para tanto.
Apenas em 23 de abril de 1993, em decisão proferida nos autos do Mandado de
Segurança nº 21322/DF, o Ministro-Relator Paulo Brossard, do Supremo Tribunal
Federal, tornava a questão ponto pacífico: as empresas públicas e sociedades de
economia mista também estavam sujeitas ao Artigo 37.
O caráter de divisor de águas dessa decisão é ressaltado, em 2004, por outro
Ministro-Relator do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que em seu voto no
Mandado de Segurança 22357/DF reconhece a intensa polêmica sobre o assunto
existente antes da decisão pioneira do Ministro Paulo Brossard, em razão da
aparente antinomia entre as disposições dos Artigos 37 e 173. Destaca, ainda,
que essa aparente antinomia havia sido reconhecida pelo próprio Tribunal de
Contas da União.
O fato é que durante a permanência da dúvida, muitas administrações pelo País,
nas diferentes esferas de governo, entenderam que empresas públicas e
sociedades de economia mista não estavam sujeitas ao Inciso II do Artigo 37. No
Estado de São Paulo, especificamente, as contratações seguiram decretos
estaduais vigentes à época (26924, de 20.03.87; 26948, de 08.04.87; 27113, de
24.06.87; e 31364, de 05.04.1990). Nossas contratações, conforme determinava
essa legislação, foram autorizadas pelo Governador e pelo Codec - Conselho de
Defesa dos Capitais do Estado, e realizadas mediante processo seletivo público.
Quase 20 anos depois, o Ministério Público do Trabalho do Estado de São Paulo,
para quem a Constituição parece se resumir ao Artigo 37, moveu uma ação contra
a empresa em que trabalhamos, obrigando-a a assinar um TAC (Termo de
Ajustamento de Conduta), pelo qual todos os 315 funcionários contratados sem
concurso, mas, destaque-se, mediante seleção pública e de acordo com a
legislação vigente, deverão ser desligados até 31 de dezembro de 2008.
Ora, o que fizemos de errado? Nós não fomos contratados como funcionários
temporários, terceirizados, cargos de confiança ou algo que o valha. Não fomos
contratados na calada da noite nem com carta de pistolão. Nós fomos admitidos
de acordo com a lei vigente no Estado de São Paulo, e com todos os direitos e
garantias da legislação trabalhista. O próprio Tribunal de Contas do Estado
julgou legal nossa contratação.
Depois de dedicarmos os melhores anos de nossas vidas à empresa, de termos
agregado valor aos serviços que ela presta ao cidadão e ao Estado, e, em muitos
casos, de termos perdido nossa saúde nesses anos todos, o Ministério Público
decidiu que devemos ser demitidos por nulidade de contrato de trabalho, o que
significa com a perda de nossos direitos trabalhistas. Vamos receber apenas o
saldo do FGTS, sem a multa de 40%. E nada mais.
Não sabemos de quem é a culpa. Dos constituintes que não foram capazes de ser
claros em suas intenções? Do Governo do Estado de São Paulo à época, por supostamente
seguir uma legislação inconstitucional? Mas de uma coisa estamos certos: a
culpa não é nossa, cidadãos que só queremos que nossos direitos sejam
respeitados, pois a Constituição vai muito além do Artigo 37.
Nada temos a ver com o imbróglio legal. Fomos contratados de boa-fé. Repetimos
mais uma vez: não como temporários, terceirizados, cargos de confiança ou coisa
do gênero, que agora querem pular de galho. Mas como funcionários efetivos, com
todos os seus deveres e direitos. Não buscamos estabilidade no emprego nem
aposentadoria integral. Pois sabemos que não temos direito a isso. Não somos
oportunistas nem vigaristas. Queremos continuar a ser regidos pela CLT, como
sempre o fomos. Não queremos o que não é nosso. Desejamos apenas dignidade e
respeito.
A prevalecer nossa demissão, estará perpetrada, a título de justiça, uma grande
injustiça, pois os únicos isentos de qualquer responsabilidade, nós, seremos
exatamente os únicos que serão penalizados. Por isso, estamos lutando no campo
político e na Justiça, que já nos deu uma primeira vitória ao suspender
temporariamente os efeitos do TAC.
E também por tudo isso, causa-nos estupefação a maneira generalizante como a
maior parte da imprensa, instituições da sociedade civil e alguns políticos
estão tratando a PEC 54/99. Se fazemos parte de algum trem, certamente ele não
é o da alegria. O nosso está mais para o trem da indignação, que só aqueles
profundamente lesados em seus direitos são capazes de demonstrar.
Fonte: Flávio (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.)