Correio da Cidadania

Caso Rafael Braga: e o tal Estado de Direito?

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Os protestos de 2013 e 2014 fizeram história no país e até hoje ainda não foram completamente compreendidos. Um dos ruídos que torna esta compreensão mais difícil é o fato de restarem poucos lampejos daquele momento pelas ruas do país. Aquela revolta que tomou o Brasil de assalto com ideias nada convencionais parece ter dado lugar a uma retomada da grosseira bipolaridade político-partidária que se expressa nas ruas através dos chiliques online e off-line, de “coxinhas” e “petralhas”, à época abraçados em nome da Copa do Mundo.

Entre todos os presos e perseguidos daqueles protestos, de diversas cores e condições sociais, apenas um permanece encarcerado – e mais recentemente, adoecido. Rafael Braga: negro e morador de rua.

Braga foi preso no Rio de Janeiro durante um protesto em 20 de junho de 2013 por um crime inexistente: portar Cândida e Pinho Sol. Na delegacia, os policiais apresentaram estas garrafas de plástico com alguns pedaços de pano e alegaram que Braga estaria preparando coquetéis molotov. O jovem sequer participava da manifestação e, mesmo que participasse, é importante dizer que coquetéis molotov não são feitos de garrafas de plástico, afinal, é a quebra da garrafa de vidro, espalhando o material inflamável que causa o efeito deste armamento caseiro. Até mesmo o laudo do esquadrão antibombas da Polícia Civil afirmou que eram “ínfimas” as possibilidades de se produzir um coquetel molotov com o que o jovem de então 25 anos portava. E desde então sua vida é marcada por idas e vindas do sistema penitenciário, armações e perseguições.

Condenado a cerca de 5 anos de prisão ainda em 2013, Braga teve seus recursos negados por diversas vezes, até que em outubro de 2014 conseguiu uma progressão para regime semiaberto e um emprego em escritório de advocacia, mas esta melhora de condição não durou muito. Após aparecer em uma foto na internet ao lado de uma pixação política, a justiça determinou que ele voltasse à prisão.

Em dezembro de 2015, Rafael Braga conquistou nova progressão para um regime aberto e foi morar com a mãe na região da Vila Cruzeiro, na capital fluminense. Novamente, durou pouco. No mês seguinte foi detido por policiais militares, que, segundo a defesa do jovem, o torturaram e até ameaçaram de estupro, para que ele se declarasse como traficante de drogas.

“Durante os meses de abril, maio e junho de 2016, ocorreu a Audiência de Instrução, dividida em três dias. Nesses dias foram ouvidos os PMs que abordaram o Rafael, testemunhas de defesa e o próprio Rafael. Durante os depoimentos, por diversas vezes os PMs entraram em contradição entre si e com o depoimento que haviam dado na delegacia no momento da prisão. O DDH pediu durante essas audiências 5 diligências: GPS da tornozeleira (que Rafael tinha de usar durante o regime aberto); nome do engenheiro e da empresa de engenharia aos quais, segundo os PMs, eles estavam fazendo escolta na favela no dia; imagens da câmera externa da viatura; imagens da câmera interna da viatura; e imagens da câmera da UPP. O juiz responsável negou todas as diligências e enviou o caso ao Ministério Público, onde o processo se encontrava aguardando as alegações finais de defesa e acusação”, relata a página Libertem Rafael Braga, administrada por simpatizantes de sua causa e defensores dos direitos humanos.

Pois bem, no dia 20 de abril deste ano, Rafael foi condenado a 11 anos e três meses de prisão pelo juiz Ricardo Coronha Pinheiro por tráfico de drogas e associação ao tráfico. Como “tráfico” entenda-se algumas gramas de cocaína e maconha meticulosamente encontradas com ele naquele infeliz 12 de janeiro na Vila Cruzeiro, um fato que gera enorme discussão, dado o histórico de montagens e armações nesta saga de criminalização do jovem.

Manifestação pela libertação de Rafael Braga

Em resposta a essa situação, quatro dias após a última condenação, alguns movimentos sociais, em especial setores do movimento negro de São Paulo e grupos que discutem questões relacionadas a segurança pública e sistema prisional, organizaram em São Paulo uma manifestação para pedir a libertação imediata de Rafael.

“Como podemos ver um avião com centenas de quilos de pasta base não ter dono e uma porçãozinha pequena de droga como a que implantaram no Rafael Braga fazer o juiz vê-lo como traficante? Só o racismo explica uma coisa dessa. Isso é inaceitável”, desabafou Débora Silva, militante das Mães de Maio – grupo de mães que reivindicam verdade e justiça para os casos dos seus filhos assassinados em 2006 por policiais militares em São Paulo, quando da eclosão do histórico confronto entre o PCC e o Estado.



Com cerca de 500 pessoas, os manifestantes marcharam naquela noite de abril do vão do MASP até o escritório da Presidência da República em SP – próximo da esquina da Avenida Paulista com a rua Augusta. A caminhada de poucas quadras levou cerca de duas horas e meia para ser realizada.

Luka Franca, da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, afirmou que a sentença de Rafael Braga foi um “baque gigantesco”. “O movimento já vinha acompanhando o caso do Rafael Braga desde 2013 e quando sai essa sentença e você olha para toda a história, pode ver o quanto isto é uma perseguição. Ele estava fora da cadeia, com um conselheiro, eles sabiam onde ele estava e montaram uma cilada para o Rafael. E nisso veio o juiz e lhe deu uma sentença de 11 anos sem lembrar que o crime que ele fora condenado pela primeira vez é um crime inexistente. Ou seja, é uma sequência de absurdos que só tem uma explicação: o sistema racista está nos dizendo aos negros onde é o nosso lugar se estivermos na hora errada no lugar errado ou se estivermos usando a nossa voz para falar alguma coisa que esse sistema não quer que seja dita”, declarou.

Genocídio e encarceramento em massa

Luka Franca explica que após este momento de soltura e domicílio junto da mãe, vieram “sucessivas armações”. Considera que há forte perseguição ao rapaz e ao povo negro de forma geral.

“Tem uma coisa simbólica aí. Nessa semana que saiu a sentença do Rafael fazem algumas semanas que tivemos três mortes de meninas negras e periféricas no Rio de Janeiro, atingidas por balas perdidas que saíram de armas policiais. Isso diz muito sobre o Brasil. O nosso país ainda não soube enfrentar com responsabilidade a questão do racismo, ficou refém do mito da democracia racial, e não vem enfrentando essa questão, apenas recrudescendo. É o plano da Casa Grande: nos prenderam e mataram lá atrás e continuam prendendo e matando hoje”, avalia Luka Franca.

Débora, das Mães de Maio, relata a atividade de sua organização em torno deste caso e as dificuldades de Adriana, mãe de Rafael.

“Conheço a mãe do Rafael através da campanha pela liberdade dele, desde que foi preso nas manifestações de 2013. Estivemos na Cinelândia no Rio de Janeiro com ela e a dissemos que estamos lado a lado nessa luta. O filho dela também é meu filho. Ela se emocionou com isso e o pessoal do Rio está fazendo uma campanha para arrecadar doações para ela, pois está numa situação muito ruim, não consegue nem trabalhar devido ao que está acontecendo com o filho. Adriana é como se fosse uma irmã pra mim, é mais uma mãe vítima desse sistema opressor que é o judiciário”, afirmou.

Débora Silva lamenta a condição de fé pública que gozam agentes da PM e avalia que apenas uma reforma no judiciário pode trazer alguma solução ao que hoje é de conhecimento público como encarceramento em massa da juventude negra e periférica. “Se o Judiciário tivesse um outro olhar e não aceitasse que a PM fosse testemunha de si mesma não teríamos tantas cadeias e cemitérios abarrotados de jovens. A postura do Judiciário precisa mudar, a reforma do judiciário é necessária para o bem da nação, pois o judiciário não está cumprindo seu papel, está fazendo apenas o peso da balança; e a balança só pende para um lado, que é contra os pobres e negros das favelas e periferias”, concluiu.



Segundo apuração dos jornalistas Flávio Costa e Paula Bianchi, para o portal UOL, há um “massacre silencioso” acontecendo nos presídios do estado do Rio. Isso porque entre primeiro de janeiro de 2015 e primeiro de agosto deste ano, morreram 517 presos vítimas de doenças tratáveis, enquanto um número 14 vezes menor, 37 presos, foram mortos dentro dos presídios em decorrência de violência física direta. O levantamento dá conta das 58 unidades prisionais presentes no Estado fluminense. A tuberculose e a AIDS, segundo a mesma apuração, são as principais doenças causadoras deste “massacre silencioso”.

E é neste contexto que recebemos a notícia de que Rafael Braga foi internado na última quinta-feira, 17 de agosto de 2017, com suspeita de tuberculose na Unidade de Pronto Atendimento de Bangu sem que sua defesa tenha tido, até agora, qualquer acesso ao laudo médico.

Neste momento, além de recorrer da sentença de 20 de abril, ratificada no último dia 8 de agosto pela Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) com a negação de um habeas corpus, a defesa de Braga ainda tenta uma transferência para um hospital onde possa ter acesso ao cliente e fazer com que o acesso de Braga aos devidos cuidados médicos seja garantido.

O caso de Rafael Braga é emblemático e coloca em dúvida a existência da democracia e do Estado de Direito – tão lembrados em certas ocasiões e esquecidos em outras – no Brasil. No momento em que pelo menos três senadores tiveram propriedades suas ligadas ao tráfico de grande escala e nada respondem na justiça, parece não restar dúvida sobre o “caráter” desta República e sua seletividade no cumprimento e na garantia de direitos supostamente universais.


Veja mais algumas fotos da manifestação de 24 de abril pela soltura imediata de Rafael Braga.







Atualização:

Enquanto publicávamos essa matéria, os advogados de Rafael Braga confirmaram à imprensa o quadro tuberculoso do jovem.


Raphael Sanz é jornalista e editor-adjunto do Correio da Cidadania

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