Correio da Cidadania

“Há muito pouca disposição do poder judiciário em tratar corretamente os presos na pandemia”

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Desde o início da quarentena, movimentos ligados aos direitos humanos alertam para o alto risco de mortes em grande escala no sistema penitenciário brasileiro por conta do coronavírus. De acordo com o Ministério da Justiça, são 37 mortes, 1189 casos confirmados, 959 suspeitos, 592 recuperados nos presídios brasileiros. Em linhas gerais, nenhuma mudança de postura das instituições brasileiras em relação aos presos. É sobre isso que o Correio entrevistou o historiador Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas.

“Em Salvador e Fortaleza, cresce o número de homicídios mesmo no momento de isolamento social, o que obviamente tem a ver com o tipo de política de segurança dos estados, focada na repressão ao comércio de drogas ilícitas e na guerra travada contra a população negra dentro de seus territórios. Outro impacto importante, como medimos ao longo dos dias, é a saúde da população em privação de liberdade, seja em prisões ou comunidades terapêuticas. São cada vez mais contaminados dentro do sistema carcerário”.

Além de pedir atenção ao sistema prisional durante a pandemia, Dudu falou da atuação da articulação da qual faz parte, que há 5 anos atua nos territórios majoritariamente habitados por pessoas negras, alvos de uma fracassada guerra às drogas que nem durante a quarentena é relaxada pelos governos. O que o faz reafirmar o racismo estrutural na direção do Estado brasileiro, tendo na pandemia apenas uma expressão um pouco mais dramática.

“O Estado deposita sua expressão máxima de violência contra os corpos e comunidades e suas famílias, a partir deste controle necropolítico de guerra às drogas, dentro ou fora do contexto de pandemia. Mesmo com a resolução 62 do CNJ, a orientar progressão de regime e possibilidades de redução da população carcerária, temos visto a inoperância da maioria dos TJ e muito pouca disposição do sistema judiciário de tratar essas pessoas corretamente”, lamentou.

A entrevista completa com Dudu Ribeiro pode ser lida a seguir.


Correio da Cidadania: Primeiramente, quais os objetivos que levaram à construção do site Drogas na Quarentena e os grupos que participaram de sua articulação?

Dudu Ribeiro: É uma construção da Iniciativa Negra por uma Nova Política Sobre Drogas com a Plataforma Brasileira de Política Sobre Drogas, para compartilhar iniciativas e informações a respeito dos diversos aspectos da política no setor, a partir do uso de substâncias, seu consumo em situação de isolamento social (sobre o qual trabalhamos no sentido da redução de danos) ou no monitoramento da situação prisional no país e sua população.

Este último aspecto corresponde a um dos efeitos mais nefastos da política de drogas: o superencarceramento. No momento, a pandemia também avança no sistema carcerário. Também trabalhamos em cima de outros regimes de privação de liberdade, como comunidades terapêuticas e unidades de hospital psiquiátrico.

Pretendemos monitorar o que está sendo feito, acionar órgãos para contribuir na campanha de fortalecimento do desencarceramento, como na campanha Liberdade é questão de saúde pública, na qual pressionamos órgãos e tribunais de justiça a aliviar a pressão no sistema carcerário.

Por fim, queremos disponibilizar para um amplo conjunto de pessoas iniciativas diversas dos nossos parceiros que enfrentam diariamente nos territórios as piores condições da pandemia, seja nas grandes cidades em locais onde há maior concentração de pessoas negras ou no interior.

Queremos concentrar um grande número de informações neste campo, permitir que o maior número de pessoas as acessem e colaborar com soluções e possibilidades de conexão dentro das nossas redes.

Correio da Cidadania: Qual o acúmulo de organização e incidência social desta articulação?

Dudu Ribeiro: A Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas chega a seu quinto de ano de existência, com diversas intervenções internacionais, como no âmbito do sistema ONU e suas assembleias, como na Rede Latino-Americana de Política de Drogas, contribuindo com possibilidades de saída de situações de violação de direito.

Também fazemos pesquisas a fim de compreender a complexa relação entre o racismo estrutural brasileiro e sua política de drogas, um dos mais eficazes instrumentos de sua reprodução neste sentido.

Uma das características principais da Iniciativa Negra é o trabalho em rede; buscamos incidir nos territórios a partir do fortalecimento das ações de resistência que estão em curso e dos parceiros que trabalham diariamente nas comunidades negras, sejam os quilombos, sejam as privadas de liberdade, a fim de reduzir os impactos gerados pelo covid-19.

Correio da Cidadania: Quais os impactos que a pandemia gerou, ou pode vir a gerar, na política de segurança relativa às drogas?

Dudu Ribeiro: É importante observar que em um dos monitoramentos que fazemos, a partir da nossa participação na Rede de Observatórios da Segurança, iniciativa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Faculdade Candido Mendes (CESeC-Rio), temos levantado números ligados à violência no contexto da pandemia. Alguns sinais são importantes de colocar como relativos à política de drogas.

Em Salvador e Fortaleza, cresce o número de homicídios mesmo no momento de isolamento social, o que obviamente tem a ver com o tipo de política de segurança dos estados, focada na repressão ao comércio de drogas ilícitas e na guerra travada contra a população negra dentro de seus territórios.

Outro impacto importante, como medimos ao longo dos dias, é a saúde da população em privação de liberdade, seja em prisões ou comunidades terapêuticas. São cada vez mais contaminados dentro do sistema carcerário, algo associado à inoperância do sistema judiciário em garantir a saúde de tais pessoas, inclusive a partir do distensionamento do superencarceramento, promovendo a saída das pessoas para melhores possibilidades de cuidado.

Outra questão é a própria circulação na cena urbana, que tem se demonstrado em diversos aspectos, como na repressão violenta em comunidades para tentar garantir o isolamento, sem a perspectiva da educação.

E há a violência contra a população de rua, também criminalizada pela política de guerra às drogas, reforçada no contexto da pandemia. Enquanto as pessoas são orientadas a ficar em casa, perguntamos: e quem não tem casa? Como vai se proteger?

A ausência tanto de instituições de Estado como de organizações da sociedade civil que trabalham com tal população, além das pessoas que de modo geral deixam de circular, aumenta a possibilidade de violência contra esta população.

Correio da Cidadania: Que impressões vocês têm a respeito das questões que envolvem a venda e consumo de substâncias ilícitas no Brasil neste período excepcional? Há dados sobre venda, consumo, operações de repressão?

Dudu Ribeiro: É importante compreender que ainda há poucos dados sobre a condição de consumo de substâncias neste período. Há redução de oferta em algumas regiões e precisamos saber se existe um sucesso na repressão. Mas temos o histórico de ver que o aumento da repressão nos territórios de comércio ou nos fluxos diretos de abastecimento só serve para permitir uma reorganização do modelo de comércio, a partir de seus agenciadores mais bem colocados na estrutura social e racial. Os financiadores e revendedores se reorganizam mesmo neste contexto aqui mencionado.

Podemos observar nos próximos dias, e já temos indícios, de que há um caminho onde as ações de repressão do varejo se encaixam como mais um elemento da atuação do Estado contra a população negra, coisa que já existe, apenas se reconfigura e aumenta o número de mortes. Isso no momento em que os meios jornalísticos, focados na pandemia, informam e olham menos para esta temática, o que pode agravar a situação, pois a violência pode se ampliar quando se tem menos monitoramento.

Temos observado aumento do consumo de substâncias lícitas, em particular o álcool. Pessoas que não têm hábito de beber cotidianamente começaram a fazê-lo, com impactos na saúde mental e física e no próprio regime de isolamento. É um desafio das organizações e das pessoas em geral, olhar com cuidado para estes casos e ajudar as pessoas a se manterem saudáveis e protegidas, ainda que optem pelo consumo de determinadas substâncias.

Correio da Cidadania: O que comentam da atuação do Estado brasileiro no âmbito do sistema carcerário durante a pandemia?

Dudu Ribeiro: É preocupante, pois é um ambiente em que a oferta de saúde é bastante reduzida e precarizada, reforçada pelo racismo estrutural que desumaniza as pessoas privadas de liberdade. O Estado deposita sua expressão máxima de violência contra os corpos e comunidades e suas famílias, a partir deste controle necropolítico de guerra às drogas, dentro ou fora do contexto de pandemia.

Mesmo com a resolução 62 do CNJ, a orientar progressão de regime e possibilidades de redução da população carcerária, temos visto a inoperância da maioria dos TJ e muito pouca disposição do sistema judiciário de tratar essas pessoas corretamente.

No momento em que o cenário aumenta as sensações de medo e insegurança, e também as fantasias narcísicas da branquitude sobre seu próprio comando do território e da vida das pessoas, existe um distanciamento ainda maior da humanização das pessoas privadas de liberdade, o que impacta significativamente na decisão dos brancos que comandam o sistema judiciário e deixam de fazer o processo de desencarceramento e cuidado da população que cumpre pena – sendo 40% desta população sequer julgada.

Correio da Cidadania: Parte da sociedade faz reflexões sobre o outro mundo que pode vir a existir depois da pandemia, a partir do redesenho de diversas relações sociais e econômicas. A pandemia tem potencial de gerar discussões semelhantes em relação aos temas aqui tratados?

Dudu Ribeiro: Sim, a própria ampliação da regulamentação de substâncias hoje ilícitas, como o caso da maconha, seja em ambientes já regulamentados ou proibicionistas, e a questão do acesso adulto a ela volta no atual cenário. Inclusive com debate sobre o próprio item como componente essencial da saúde e da vivência da pessoa, como nos EUA. Em outros cenários pensa-se na regulamentação como viabilidade de sustentação econômica.

Outra questão é a própria ampliação da ideia de cuidados dos direitos das pessoas em privação de liberdade, com previsão de catástrofe dentro deste sistema, o que nos leva a debates a respeito de responsabilização sobre tais pessoas e quebra da lógica desumanizadora hegemônica, com vistas a ampliar a possibilidade do desencarceramento nas políticas de segurança pública no Brasil e no mundo.

O uso e o consumo de substâncias neste cenário nos levam a pensar em questões de saúde, a partir da noção de que o impacto do consumo de substâncias lícitas é maior sobre o sistema de saúde, ainda mais num momento de aumento do consumo. Dentro disso, precisamos garantir que tais pessoas continuem tendo acesso à saúde. O que nos leva a fortalecer a ideia da importância da existência e fortalecimento do SUS, tanto no cenário pandêmico como de modo geral.

Correio da Cidadania: Como estabelecer o diálogo a respeito de todos estes temas num momento onde se vive não apenas sob grande instabilidade política e até institucional como ainda vivemos uma onda conservadorismo político que não se via desde a ditadura militar?

Dudu Ribeiro: Primeiro, temos de conseguir dar dimensão real às pessoas dos efeitos da guerra às drogas em suas vidas e dos sentidos que ela traz para a atuação do Estado. Precisamos demonstrar o papel fundamental no financiamento, organização e existência do comércio ilícito de drogas dos grandes grupos econômicos. Não existe tráfico internacional de drogas sem bancos, sem juízes, sem presidentes, sem governadores.

Portanto, é necessário informar melhor que o tráfico não é algo que se localiza nas comunidades criminalizadas. Ali só se realiza uma das modalidades de comércio e varejo, que é a forma criminalizada. Várias outras formas de comércio e varejo não são criminalizadas. É importante reforçar que o processo é mais amplo do que a mera ideia da repressão. É isso que vai dar noção às pessoas do impacto da guerra às drogas em suas vidas.

Não existe guerra às substâncias, nem no Brasil nem em nenhum lugar do mundo. Existe guerra a determinadas pessoas, que têm cor, origem, lugar na sociedade. E elas são desumanizadas a partir da relação ideologizada de alguns territórios com o mercado ilícito de substâncias. A partir daí, desumanizam-se aqueles territórios e corpos.

O diálogo pode vir da ideia de que é preciso ampliar o olhar sobre os efeitos e os mecanismos, nossa própria relação com as políticas de repressão para pensar saídas reparatórias do sofrimento já envolvido na guerra às drogas e envolvimento de instituições, que precisam assumir sua responsabilidade, a fim de promover maior qualidade de vida à população.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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