Marco Temporal: “O que vemos é uma narrativa de criminalização dos povos indígenas em prol do saque das suas terras”
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- Raphael Sanz, da Redação
- 18/10/2021
Após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes no último dia 15 de setembro, o julgamento da tese do marco temporal no STF, o mais aguardado desse segundo semestre, foi adiado pela quinta vez e ainda não tem data para ser realizado. A tese, defendida pela enorme articulação do agronegócio no Congresso Nacional, dá conta de que só é válida a ocupação indígena que estivesse comprovada em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, e foi posta em pauta por conta de uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, no nordeste do Estado. Para compreender a totalidade da questão entrevistamos Nuno Nunes, Indigenista, Bacharel em Filosofia, mestre em Educação e Comunicação pela UFSC e Doutorando em Planejamento Territorial pela UDESC.
“O que vemos é uma narrativa que vem criminalizando os indígenas por parte do próprio Estado de Santa Catarina desde 1850 quando descumpriu a Lei de Terras ao não reconhecer os aldeamentos e acobertar a ação de colonização da região que trouxe o desmatamento, ao que acusam os Xokleng justamente disso”, avaliou.
Nuno nos oferece uma verdadeira aula de história ao longo da entrevista, a começar pela famigerada Carta de Pero Vaz de Caminha, considerada por ele como ‘o primeiro documento de grilagem de terras do Brasil’, passando pelos períodos colonial e imperial, até chegar aos dias atuais em que vemos de um lado uma enorme mobilização dos povos indígenas contra a tese e, de outro, uma forte pressão dos setores ruralistas, das Forças Armadas e do governo Bolsonaro, que prometeu um país ainda mais caótico caso a decisão do STF pese contra o marco temporal.
“Quando vemos que existe uma mobilização pra derrubar o STF e seus ministros que estão pensando contrários aos interesses dos ruralistas e dos militares, como vimos na própria boca do presidente no último 7 de setembro, fica claro que os ‘verdadeiros patriotas’ são os indígenas que acima de tudo respeitam as regras do jogo impostas no Brasil, ao contrário desse governo, dos ruralistas e dos militares que querem atacar a Constituição e destruir direitos para garantir apenas os seus interesses particulares e setoriais”, analisou.
Leia a entrevista na íntegra a seguir.
Legenda: “Debaixo dessa bandeira há muito sangue indígena”, disseram jovens indígenas em São Paulo na manifestação pelo fim do governo Bolsonaro em 19 de junho de 2021. Créditos: Elaine Campos: https://www.instagram.com/elainecamposfotografia/
Correio da Cidadania: Em meio a mobilização dos povos indígenas em Brasília e da pressão dos setores ruralistas, o STF adiou o julgamento da ação sobre as demarcações indígenas que discute a tese do “Marco Temporal”, segundo a qual os indígenas só poderiam reivindicar terras em que estariam ocupando na data da promulgação da Constituição de 1988. Como você avalia esse contexto, essa tese e qual é a história por traz disso?
Nuno Nunes: O artigo 231 da Constituição Federal é nítido quando diz que é garantido e reconhecido aos indígenas a sua organização social. Com isso, houve uma vitória da Articulação Nacional dos Povos Indígenas (APIB) no STF.
Mesmo sem ter CNPJ, a APIB foi vitoriosa, porque é uma organização social reconhecida pelo artigo 231. Ou seja, o 231 reconhece aos indígenas essa organização social e todas as comunidades reconhecidas pela própria Constituição como uma entidade jurídica. Então também vai reconhecer os costumes, línguas e tradições, ou seja, os reconhecimentos do que é o indígena no Brasil são bastante amplos, e seguem as recomendações internacionais.
Na sequência do artigo 231 vem o reconhecimento aos direitos originários dos povos que viviam aqui antes da formação do Brasil, ou seja, antes da Carta de Pero Vaz de Caminha, que considero o primeiro documento de grilagem da nossa história. A partir dela tivemos todos os outros roubos de terras dos indígenas. Depois da Carta de Pero Vaz de Caminha, tivemos as capitanias hereditárias que separaram essas terras, e na sequência vieram as sesmarias, que iam distribuindo essas terras em lotes com a condição que a sexta parte da produção fosse para a família real portuguesa, para o Império.
Em 1548 as primeiras regras que o Império Português foi decretando pra organizar a colonização reconheciam os direitos originários e as áreas de aldeamento, ou seja, onde havia indígenas, lá permaneceriam, e as áreas consideradas vazias, sem atividade humana, seriam destinadas à exploração colonial, mas isso apenas na teoria.
Cerca de três séculos depois, em 1850 e já no período imperial, veio a Lei de Terras do Brasil, que então repassou às províncias as ordens de distribuição de terras, antes concentradas no imperador. De acordo com essa lei, deveria ser feito os Aldeamentos Indígenas, que hoje juridicamente se chamam Terras Indígenas, e, em segundo lugar, onde não havia indígenas, fariam as colônias.
As colônias seriam áreas demarcadas para colocar os estrangeiros que vinham chegando no Brasil. Tinham colônias em vários lugares do país e dentro delas eram repartidos os lotes para cada família. Ou seja, o direito originário que falamos é anterior a tudo isso e diz respeito a áreas que deviam ter sido demarcadas ainda no período colonial como aldeamentos indígenas.
Cortando para 1988, esse processo foi reconhecido na Constituição, e, reafirmado, dava ainda um prazo de cinco anos para a demarcação de uma série de terras indígenas. Por isso que o Collor foi o presidente que mais demarcou terras, porque ele assumiu em 1990 e tinha até 1993 para demarcar essas terras. E dentre todas as acusações que ele recebeu, uma delas foi justamente a de estar demarcando terras indígenas sob ordens e pressões dos “interesses escusos internacionais”. Ou seja, desde aquela época já existe essa conversa mole.
E esse argumento se arvora na teoria dos cenários de guerra dos militares. As FFAA têm como função, e são muito bem pagas pra isso, proteger o território brasileiro, portanto fazem formações nesse sentido, e uma delas é na AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras), o alto grau da formação dos militares. Nessas formações eles pensam possíveis cenários de guerras, buscando prever futuros conflitos. Nela fazem previsões de possíveis conflitos com Uruguai, Argentina, Bolívia e todos os países que fazem fronteira com o Brasil. Numa dessas formações, um dos cenários seria o de possíveis conflitos envolvendo Povos Indígenas, uma vez que se há a referência de uma região em Roraima, chamada Pirara, onde havia fronteira com a Guiana Inglesa e o Suriname.
Em 1904 os ingleses fizeram um referendo para ver se os indígenas da região queriam ficar com o Brasil ou com a Inglaterra, e os indígenas decidiram ficar ali como território inglês, em episódio que acabou conhecido como a Questão do Pirara. Esse fato histórico pairou como uma ameaça à integralidade do território brasileiro na ótica desses possíveis cenários futuros que os militares realizam, por ser um precedente a situações semelhantes a essa em outras partes do país. Ou seja, se os indígenas pegassem suas terras e entregassem a outros países, a unidade territorial brasileira estaria ameaçada. E é importante lembrar que esses cenários de guerra envolvem recursos de mineração, florestais, logística etc., do que está dentro das Terras Indígenas.
A partir daí, a paranoia militar pegou esse estudo e colocou para a sociedade como algo que já estivesse ocorrendo no país inteiro. O que não consta na realidade. Mas consta, sim, como uma estratégia dos militares em acusar que quando se demarca Terras Indígenas, retiraria-se o poder das FFAA de proteger esse território demarcado.
Esse tipo de comoção virou moda no Brasil, e na época do STF decidir o caso da TI Raposa Serra do Sol, em 2009, entre ser demarcada de forma contígua ou em pequenas ilhas (onde cada aldeia tivesse um pedaço de território), foi feito um estudo que identificou as aldeias, do qual os indígenas não aprovaram, e depois foi feito um outro estudo que identificou o território como um todo, aí sim aprovado e que hoje é a TI Raposa Serra do Sol. Nesse caso, o STF definiu que a TI seria contígua, assim como manda a Constituição que reconhece aos indígenas os direitos originários sobre as terras que ocupam.
Ainda naquela ocasião houve um debate no STF se o Estado de Roraima teria como argumentar contra a demarcação das terras sendo que antes de 1988 não existia Estado de Roraima, ali era um território federal, e as demarcações anteriores eram feitas pela FUNAI em nome da União e só depois de 88 que se criou o Estado de Roraima, suas instituições e o primeiro governador. Então ficou no ar essa ideia de que em 1988, com a promulgação da Constituição, seria a data que definiria a discussão da formação do território nacional como um todo e do Estado de Roraima em particular.
Essa tese foi sendo mais definida e articulada pelos interesses de proprietários, posseiros e grileiros, e seus advogados, que colocaram que a Constituição diz que os direitos originários valeriam sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Mas o verbo “ocupar” descrito na Constituição no presente gerou confusão, podendo ser entendido como uma terra ocupada hoje, ou desde sempre. Assim foi feita uma nova narrativa por parte dos interessados em desapropriar as terras dos povos tradicionais e colocarem-nas no mercado, o que fez com que esse “ocupam” fosse manobrado nessa narrativa para valer a partir de 5 de outubro de 1988. E é daí que vem a tese do marco temporal que foi sendo utilizada em vários processos.
Correio da Cidadania: O recente julgamento da tese do marco temporal chegou ao STF por meio de uma reintegração movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, a respeito da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem indígenas Guarani e Kaingang. Como você, que vive e atua no Estado, pode nos contar brevemente o histórico desse conflito?
Nuno Nunes: O Estado de Santa Catarina ingressou contra a demarcação da TI Laklãnõ-Xokleng, que conta com 37 mil hectares, porque a TI que antes se chamava “Posto Indígena Duque de Caxias” teria um histórico desde antes do contato dos Xokleng com os não indígenas, e o histórico dessa terra vem da instalação de colônias que não cumpriam a lei de 1850, segundo a qual só se poderia instalar colônias onde não houvesse ocupação indígena. E como a lei de 1850 decretou que os estados poderiam fazer a distribuição das terras, o Império decretou ali que se fizesse primeiro os aldeamentos e depois as colônias. O Estado de Santa Catarina, à época província, contratou os chamados bugreiros, com dinheiro público, a fim de expulsar os indígenas dessas terras e empurrá-los a outros lugares onde não estavam previstas colônias. O imperador na época, que tinha o poder de decretar colônias, fez alguns desses decretos, e outros foram feitos pela então província de Santa Catarina. Após a atuação dos bugreiros dizia-se que as terras estavam “limpas”, porque eles contratavam esses agentes de afastamento dos indígenas, pagos por diária para irem à frente, abrindo caminhos nas terras indígenas e que pasmem, eram pagos também por par de orelha cortada das cabeças dos indígenas assassinados.
Então, o que regia a lei de 1850 não foi cumprido, e acabou sendo escondido o direito dos indígenas. Com isso foram colocando as colônias. Em Santa Catarina havia 3 grupos Xokleng (veja o mapa a seguir). Uma ficava mais ao sul do Estado, que foi dizimada; havia outra que ficava na região de Águas Mornas e na Grande Florianópolis; e a terceira etnia que fugiu para a região das montanhas de José Boiteux, que eram áreas fora da colônia alemã entregue por parte do Império a empresa colonizadora Hamburgo.
A Hamburgo era dona de navios e ganhava com exportação de mão de obra, uma vez que na Europa ocorria a revolução industrial iniciada em nos anos 1800 e, com ela, muitas pessoas eram expulsas do campo e não encontravam trabalho nas cidades. Época também da unificação alemã, que priorizou a indústria e assim vendeu a países como o Brasil e a Argentina um contingente enorme de trabalhadores do campo, em especial agricultores, que não caberiam no novo projeto de país. Essas pessoas iam para a cidade de Hamburgo, que é no litoral alemão, e, de lá, eram encaminhadas para os países que quisessem comprar essa mão de obra. E a compra era feita através de promessas de que eles teriam terras, ferramentas, casais de porcos, galinhas etc., um mínimo de facilidades ali que hoje chamamos de “cotas para brancos”, desde que dessem uma parte dessa produção ao governo.
Depois de trazer as sobras populacionais alemãs para a região do Vale do Itajaí e também do Rio Itapucu, no nordeste de Santa Catarina, vamos observar o estabelecimento de uma série de colônias conforme disposto no mapa a seguir.
Um sujeito chamado Hermann Blumenau fundou ali uma colônia privada em 1850. Comprou uma área como investidor e tentou atrair a mão de obra alemã pra região, mas acabou falindo. Após o insucesso, convenceu o imperador a comprar aquelas áreas, onde foi mantida uma colônia imperial na qual ele foi o diretor durante 30 anos e, passado esse tempo, voltou para a Alemanha onde tocou sua vida até o final sem muitos problemas. A intenção dele era fazer um experimento social. Naquela época era muito comum fazer isso devido ao sucesso do livro do Charles Darwin, A evolução das espécies, e assim pesquisadores faziam esses experimentos a fim de ver se os humanos também apresentavam esses índices de evolução social.
Após o experimento do Hermann Blumenau fracassar e ele vender as terras para o império, a empresa Hamburgo se interessou pelas áreas acima de onde hoje é a cidade de Blumenau e então criou uma outra empresa de colonização chamada Hanseática - que pegou o nome emprestado do Mar Hanseático, que banha a cidade de Hamburgo. Com a criação desse “novo CNPJ” (entre aspas, pois na época não era exatamente esse o termo) continuaram trazendo os colonos para cada vez mais subir os rios Itajaí e Itapucu. Houveram também colônias onde hoje é Brusque, Águas Mornas, Pedras Grandes e mais uma série de outras colônias que se tornaram cidades e que foram feitas em áreas habitadas pelos Xokleng e não reconhecidas como Aldeamento indígena, conforme mandava a Lei de Terras de 1850.
No caso dos Xokleng da região de Ibirama-José Boiteux, o estado continuou financiando o assassinato dessas pessoas indígenas e o espaço que tinham era apenas o vale do rio que hoje se chama Hercílio, porque a colonização veio subindo o rio Itajaí por um lado, subindo o rio Itapucu por outro e, à oeste ainda havia a colonização por conta da ferrovia São Paulo - Rio Grande. E os Xokleng ficaram no meio de todo esse avanço da colonização. Vendo essa situação, já em 1910 decretou-se a paralisação da atividade dos bugreiros e foi pensada uma forma de fazer o mesmo processo de catequese que os Jesuítas haviam feito com os Guarani séculos antes, que buscava colocar entidades ali dentro que fizessem o contato com aquelas pessoas, reduzissem seu espaço e ensinassem profissões para que os indígenas fossem “pacificados”, sendo que quem deveriam ser pacificados eram os colonizadores que insistiam em descumprir a Lei e avançar sobre Aldeamento Indígena.
Nessa época, levavam para fora da colônia Hanseática as famílias dos colonos europeus, que vinham cada vez mais por conta do desterramento que sofriam na Europa causado pelo avanço do capitalismo industrial. E como vimos anteriormente, os colonos tinham de desmatar a terra e produzir ali para provar ao Estado que a terra era deles, e nessa corrida pelo desmatamento e produtividade os Xokleng viam suas terras sendo atacadas e então eles expulsavam esses invasores – ao mesmo tempo que o Estado pagava os assassinos bugreiros para atacar os Xokleng. Isso se transformou numa guerra de ocupação territorial. Até que fora da colônia Hanseática criou-se um consenso em reservar uma área de 60 mil hectares pra deixar os Laklãnõ-Xokleng vivendo ali, e a ideia era de que não se fizesse contato, que os deixasse em paz, assim como vinha sendo feito em outras regiões do Brasil.
Entretanto, a maior parte daquela região tinha sido decretada como propriedade da família imperial, eram áreas que o imperador já havia doado para suas irmãs antes da Lei de Terras de 1850. Havia essa discussão se a área era da colonização ou se era devoluta (ou seja, onde deveriam fazer os aldeamentos indígenas), e nessa discussão toda foi chamado o pessoal que vinha trabalhando com o Marechal Cândido Rondon que levava o cabo de comunicação via telégrafo das capitais para o interior do país, isso já nos primeiros anos do século XX, e contatavam indígenas tornando-se especialistas em Indigenismo Estatal, diferente do Indigenismo Religioso dos Jesuítas. Assim foi criado o Serviço Nacional de Proteção ao Índio (SPI) e a Atração dos Trabalhadores Nacionais (ATN), o que já indicava no nome a tentativa de cooptar os indígenas como trabalhadores nacionais, ou seja, um verdadeiro etnocídio que buscava tirá-los de sua condição tradicional para transformá-los em proletários. Foi colocado na região de Ibirama um Posto Indígena – o que hoje é chamado pelos Indigenistas de “Frente de Proteção”, mas à época era chamado de “Frente de Atração”, para contatar os Xokleng. Nesse Posto Indígena foi colocado um servidor público que determinou o fechamento dos acessos dos colonos à região Xokleng, ou seja, a partir de certo ponto, não podia passar ninguém, o que se chocou com os interesses da empresa Hanseática, que queriam avançar sobre aquelas terras. Mas esses servidores não permitiam a passagem, uma vez que daquele ponto em diante estaria sendo criada a Reserva Indígena de 60 mil hectares (mapa 1).
Um dos secretários do Estado de Santa Catarina à época, Adolfo Konder, passou pela região onde já tinha sido feito o contato com os Xokleng por esse pessoal do SPI. O secretário ficou muito preocupado com a situação, pois a promessa era que depois do contato haveria muitos recursos para fazer a proteção. Mas na realidade o que ocorreu foi que o servidor que estava ali impedindo a passagem dos colonos foi retirado e um novo servidor foi colocado no lugar, este chamado de Eduardo de Lima e Silva Hoerhann, que acabou obrigado a fazer o contato com os Xokleng em 22 de setembro de 1914, e estabelecer uma área onde eles iriam fazer uma comunidade para irem se integrando à sociedade nacional.
Ao mesmo tempo, havia famílias Kaingang (etnia próxima aos Xokleng) do Paraná, que já haviam sofrido com esse mesmo processo décadas antes, e desceram do Paraná para a região dos Xokleng a fim de ajudar na proteção dos mesmos. Dessa forma, o contato com os Xokleng foi feito por essas famílias Kaingang, que mediaram o contato estabelecido por Hoerhann do SPI.
Como era temido, após o contato as promessas de mais recursos foram esvaziadas e o sistema de proteção ficou sem investimentos, somando a isso a falta da demarcação dos 60 mil hectares como Reserva Indígena. Depois disso, o secretário Konder, que havia passado pela região, tornou-se governador e publicou em 03 de abril de 1926 o Decreto Estadual n°15 para enfim criar a Reserva Indígena, desta vez com 30 mil hectares, 12 anos depois do contato com os Xokleng, criando essa reserva para que houvesse uma posição mínima para que as colônias não continuassem avançando e matando os Xokleng que estivessem fora dela.
Contudo, o Decreto de 1926 nunca foi cumprido. Enquanto isso a ocupação e a invasão pelos colonos ia sendo feitas e ninguém tomava providências, até que em 1957 demarcou-se um pedaço minúsculo, de aproximadamente 10 mil hectares, que comportava as terras ao redor de onde estavam os Xokleng, entre os rios Platê e Hercílio. A base da FUNAI era ali no limite para que ninguém avançasse, porém começaram a ter muitas invasões ao redor que chegavam à parte alta, com as finalidades de grilagem de terra e retirada de madeira.
Em 1964, depois do golpe militar, os Xokleng já não tinham com quem contar dentro do Estado de Santa Catarina, que não cumpria as condições. Dizia-se que ali não era área do Estado, mas das colônias, então como o conflito nessa área não foi resolvido enquanto aldeamento indígena, conforme a lei de séculos atrás mandava, o nível federal não resolveu, o estadual tentou resolver e não conseguiu, e ficou a pressão política dos colonos que iam constituindo-se como força política na região para apropriarem-se das terras.
Na lógica dos colonos, a terra pertence a quem nela trabalha, só que esse regramento era só para os colonos estrangeiros; esta lógica não valia para os indígenas pois eles eram reconhecidos como verdadeiros donos das terras onde habitavam. Nesse contexto todo, somente na década de 2000 foi feito um Grupo de Trabalho, a pedido dos Xokleng, para então identificar qual era a área lhes era de direito e, então, chegou-se a 37 mil hectares.
Com isto, não se falava mais nas áreas ocupadas pelos Xokleng no sul do Estado de SC, ou na região de Florianópolis, ou ainda no vale dos rios Itajaí e Itapocu de onde foram expulsos e assassinados pelos bugreiros pagos pelo Estado de SC. E nem falava-se nos 60 mil hectares prometidos pelo governador após o contato com SPI. O espaço Xokleng já tinha sido barbaramente reduzido e a área tradicional já tinha sido toda desmatada pelas empresas de madeireiras dos colonos e, inclusive, o pequeno espaço que sobrava com floresta entre os rios Hercílio e Platê, a própria FUNAI fez acordos com as madeireiras, na década de 1960, para que explorassem madeira em troca da construção de casas para os indígenas. Só que a quantidade de madeira cortada foi o dobro da acordada entre madeireiras e Funai, e as casas não foram construídas com a madeira extraída dali, mas com tábuas de madeira de segunda vindas de outros lugares. Foi mais um roubo que os Xokleng viveram.
E pra somar às desgraças que os Xokleng vivem, na década de 70 começou a ser elaborado o projeto de instalação de barragens para evitar as cheias do rio Itajaí que afetavam as cidades de Itajaí e Blumenau. Foram construídas pelo poder federal, através do DNOS (Departamento Nacional de Obras e Saneamento), e uma dessas barragens, a Barragem Norte, fica dentro do território dos Xokleng no rio Hercílio e Platê. Daí, além de sofrerem com o roubo de suas terras, a insegurança jurídica e os assaltos das madeireiras, veio a construção dessa barragem iniciada em 1976. Em 1978 a obra já estava sobre o rio Hercílio e os Xokleng, morando nesse lugar entre os rios Platê e Hercílio, sofreram com uma enxurrada gigantesca, durante o período do El Niño, onde chove muito no sul do Brasil, e tiveram sua Aldeia levada pela enchente.
Área da TI Ibirama-Laklãnõ alagada. Imagem cedida pelo entrevistado.
O DNOS não tinha ciência desses ciclos naturais e havia previsto as chuvas só a partir do período La Niña, que é quando não chove muito, mas aí virou para o El Niño e choveu como os engenheiros não tinham previsto. Essa chuva chegou na barragem em construção, o rio encheu e levou todas aquelas casas, roças, animais e árvores que os Xokleng tinham feito desde a época do contato. Com isso, nas décadas de 70 e 80, com as grandes enchentes, foi sendo destruída a única parte do território dos Xokleng que eles conseguiam habitar, enquanto o outro lado das terras deles era ocupado pelos colonos e havia muita cobrança por parte desses colonos de Blumenau e Itajaí para que se concluísse logo a obra da barragem, pois estava alagando Blumenau. Foi nessa época, inclusive, que surgiu a famosa Oktober Fest, evento idealizado para a reconstrução de Blumenau após as enchentes.
A demarcação da terra exigida pelos Xokleng veio com muito atraso e em paralelo com uma série de desgraças e ataques sobre este Povo Indígena. O governo do Estado de Santa Catarina, diante desses ataques à região florestada, entre Ibirama e Vitor Meireles, para evitar assédio das madeireiras, criou as unidades de conservação dentro do território Xokleng, impedindo os verdadeiros donos de acessarem as florestas que vivaram de proteção integral.
Com a finalização do relatório de 37 mil hectares pela FUNAI e o Ministério Justiça, em 2003, o governo do Estado de Santa Catarina questionou com a argumentação de que as Unidades de Conservação para proteger a floresta não seriam parte do território Xokleng, inclusive acusando os Indígenas de serem os desmatadores, esquecendo-se de quem realizou o desmatamento foram as empresas colonizadoras, as madeireiras e a própria FUNAI.
O que vemos é uma narrativa que vem criminalizando os indígenas por parte do próprio Estado de Santa Catarina desde 1850 quando descumpriu a Lei de Terras, não reconheceu os aldeamentos, pagou para milicianos matarem e expulsarem os Xokleng de suas áreas, acobertou a colonização e trouxe o desmatamento.
Correio da Cidadania: Ainda sobre a questão do marco temporal, a deliberação não está definida no STF e provavelmente deve ser retomada só no ano que vem. Como acredita que deva se desenhar?
Nuno Nunes: Conversei recentemente com alguns Xokleng e eles irão se mobilizar para ir a Brasília assim que o STF anunciar a retomada do julgamento.
Vemos os Xokleng esperando o cumprimento dos direitos conforme está na Constituição Federal, com forte pressão contrária do próprio Estado de Santa Catarina. Aí olhamos para o extremo norte do Brasil e vemos o caso Raposa Serra do Sol que ficou muitos anos esperando sua decisão no STF, sendo que um dos questionadores era o próprio Estado de Roraima. O que podemos notar é que há casos similares aí.
Acontece que na fila dos julgamentos de Terra Indígena, o caso dos Xokleng passou na frente, mas temos também as terras dos Guarani Kayowá no Mato Grosso do Sul, e tem também o caso dos Guarani do litoral de Santa Catarina, na chamada Terra Indígena do Morro dos Cavalos, que também está no STF, além de várias outras TIs que estão na fila. Como o caso dos Xokleng era o mais antigo no processo do STF, o Estado usou esse argumento do marco temporal afirmando que os Xokleng não estavam ali quando foram feitas as unidades de conservação, afirmando que teriam laudos comprovando que os indígenas não estavam presentes no 5 de outubro de 1988 dentro da Unidade de Conservação (UC) - que por sua vez corresponde a um pedaço ínfimo da Terra Indígena de 37 mil hectares, além do fato de não ser toda a UC que está dentro da TI, e vice-versa. Podemos dizer que se trata de um pedaço que não chega nem a 2% da terra indígena. E com esse jogo de retórica jurídica, a gente afunila no momento em que o STF vai julgar a tese do marco temporal e com ela toda a pressão do atual governo que é composto em sua maioria no Congresso por partidos que representam o poder ruralista e exercem pressão sobre a pauta.
Essa pressão tem sido exercida desde antes do começo do governo Bolsonaro, nos governos anteriores de Temer, Dilma e Lula, quando já havia uma certa maioria ruralista no Congresso e nas bases de apoio dos governos. Acontece que agora estão em maioria ampla e vêm fazendo essa pressão, principalmente acusando de que os indígenas querem terras para deixá-las improdutivas. Ou seja, não respeitam o direito dos indígenas de viverem em suas terras conforme seus costumes e tradições, e tentam impor que os indígenas só poderiam ter direito às terras se nelas trabalharem, dentro do que consideram como “trabalho”. Estão praticamente equivalendo os povos indígenas aos colonos.
Junte isso com o argumento dos militares de que existe um cenário de guerra onde os indígenas seriam os cooptados por outros países que teriam interesse nas riquezas do subsolo das Tis, com os ruralistas fazendo pressão no Congresso e o governo Bolsonaro que está implantando esse ultraliberalismo onde qualquer representação coletiva é desqualificada. Nesse contexto ressuscitaram o PL 490, de 2007, que diz que para demarcar uma TI não pode haver uma decisão somente do Poder Executivo, mas deve passar por uma homologação presidencial após consultado o Congresso. Ou seja, muda completamente o que diz a Constituição, segundo a qual cabe à União demarcar e proteger as terras indígenas, passando essa responsabilidade para um Congresso Nacional que sabemos que é composto por maioria ruralista, justamente os interessados, esses sim, e comprovadamente, em negociar essas terras com o capital internacional, representado por empresas que estão ali plantando soja e milho transgênico, entre outras atividades de extração.
Fiz toda essa descrição para dizer que a pressão desses interesses proprietários vai chegar aos ministros do STF de uma maneira sofisticada porque a APIB foi aos países estrangeiros denunciar que as commodities são vendidas com sangue indígena e a pressão estrangeira nesse sentido obrigou os ruralistas a manobrarem seu discurso. Assim, a pressão sobre o STF no julgamento do Marco Temporal veio sob a forma de ameaças de impeachment de ministros, aquela conversa de não ter eleição caso o voto não seja impresso e outras que pudemos acompanhar nos meios de comunicação.
E a partir daí chegamos ao adiamento do julgamento no STF. Todos sabemos que se o STF aprovasse a tese do marco temporal teria de suspender a súmula do caso Raposa Serra do Sol onde diz que o caso não é vinculante às outras terras, então o Supremo teria que refazer uma decisão já tomada. E todos sabemos também que o STF vai julgar a favor dos indígenas e assim toda sorte de pressões dos ruralistas acaba por vir de todos os lados e modos para adiar esse julgamento, não no sentido de falar dos indígenas senão perdem as vendas internacionais, mas no sentido de acusar os indígenas de não serem mais indígenas, mas infiltrados de ONGs internacionais, dentro da lógica dos cenários de guerra das FFAA. Nesse meio tempo tentam aprovar no Congresso Nacional o PL 490 que passaria as demarcações de terra justamente pela mão dos representantes desses ruralistas que lá estão.
Correio da Cidadania: Como avalia as jornadas de manifestações que os indígenas têm feito em todo o país, sobretudo em Brasília onde havia muitas etnias acampadas entre agosto e setembro?
Nuno Nunes: São uma demonstração de paciência por parte dos indígenas porque estão demonstrando que ainda querem respeitar as regras e a constituição, mesmo que os processos de demarcação fiquem na mão de um presidente como o atual, que disse que não demarcaria nem um centímetro de TI.
Então os indígenas estão se mobilizando para que o processo de demarcação continue como está. Estão dando um voto de confiança ao sistema jurídico brasileiro. Tanto que entraram na defesa, com a APIB, contra a aprovação da tese do marco temporal e deixando claro que estão reivindicando esses direitos que são seus desde antes da instalação do Brasil, que é o direito originário.
As mobilizações já vêm ocorrendo faz mais de dez anos, com o acampamento terra livre, as reuniões em Brasília cada vez maiores, com apoiadores nacionais e internacionais, com denúncias na ONU, porque essa é a regra do Direito.
Por outro lado, quando vemos que existe uma mobilização pra derrubar o STF e seus ministros que estão pensando contrários aos interesses dos ruralistas e dos militares, como vimos na própria boca do presidente no último 7 de setembro, fica claro que os “verdadeiros patriotas” são os indígenas que acima de tudo respeitam as regras do jogo impostas no Brasil, ao contrário desse governo, dos ruralistas e dos militares que querem atacar a Constituição e destruir direitos para garantir apenas os seus interesses particulares e setoriais.
Correio da Cidadania: Aproveitando o gancho e toda essa aula sobre a história dos povos de Santa Catarina, o que comenta da demarcação da TI do Morro dos Cavalos, na Grande Florianópolis?
Nuno Nunes: Na TI Morro dos Cavalos e em algumas outras aqui em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, existe a acusação de que os povos não são indígenas, mas paraguaios. Novamente dentro da lógica dos cenários de guerra das FFAA, remetendo inclusive à Guerra do Paraguai, e dizendo que esses indígenas seriam inimigos trazidos por ONGs internacionais, o que culminou na CPI da FUNAI e do Incra, onde essas acusações foram discutidas e tentou-se colocar esses argumentos de uma forma lógica.
Inclusive eu fui um dos investigados nessa CPI. Trabalhei na FUNAI e fui um dos acusados de desviar recursos da compensação da BR-101, junto com outros indígenas e colegas da FUNAI. Mas os recursos foram todos executados, com aquisição de terras e construção de casas, e isso no final das contas não deu em nada. Mas a mentira prevaleceu ali por algum tempo e foi passado para a Polícia Federal investigar. Investigaram e não encontraram nada. Acontece que o estrago já estava feito, uma vez que muitas pessoas foram eleitas utilizando esse argumento de que os indígenas eram estrangeiros e estavam aqui para roubar as terras do litoral de Santa Catarina. Mas em meio a isso tudo os indígenas seguiram a mesma estratégia de confiar na Constituição e no sistema jurídico.
Ganharam em primeira instância. Depois os contrários recorreram e os indígenas ganharam novamente, e agora a decisão está no STF aguardando o julgamento da tese do marco temporal para ser decidida em última instância. Os indígenas do Morro dos Cavalos têm como primeiro registro de ocupação o ano de 1514 quando ali nem sequer existia a cidade de Florianópolis, antes até de a Ilha de Santa Catarina chamar-se Ilha do Desterro. Inclusive há diversos sítios arqueológicos que comprovam a presença Guarani ali. Porém uma das estratégias desses contrários é de dizer que antigamente viviam ali os Carijó, que seria outro povo uma vez que os Guarani seriam paraguaio, entretanto sabemos que Carijó era apenas mais um nome dado ao povo que viva aqui, que eram os Guarani – Xokleng também estavam na região, mas não tanto no litoral, viviam mais para o interior. Toda a região é indígena.
Eles estão também aguardando a decisão do STF e, no caso de desaprovada a tese do marco temporal, o governo do Estado terá derrotas diante dos Xokleng e dos Guarani, além das terras próximas a Joinville, Araquari e São Francisco do Sul onde também há registros desses indígenas em 1540 quando os franceses chegaram ali e levaram dois indígenas guarani para a França pela mão do Barão de Gonneville – outro interessado nas terras guarani. Registro não falta, lei não falta, mas o que sobra são as narrativas negacionistas que vão caindo com o tempo.
O problema é que muitos indígenas, pela sua paciência e pelos seus 500 anos de enfrentamento em um território onde vivem a mais de 10 mil anos, muitos anciões vão partindo, mas os jovens continuam na batalha pela demarcação das terras. Estou seguro que o Morro dos Cavalos será demarcado, é uma terra indígena de apenas 2 mil hectares, o que não representa nada perto de todo o território guarani, que vem desde o sul da Bahia até o Uruguai, e para oeste, chega ao Paraguai, um território que foi separado em vários países. Quando perguntamos a um Guarani se ele é brasileiro, uruguaio ou paraguaio, ele diz “eu sou Guarani e estou no meu território, vocês que o separaram”.
E ao contrário da Raposa Serra do Sol, os Guarani da região de Santa Catarina pedem demarcações em ilhas, ao contrário do que se diz no Congresso Nacional pelos ruralistas de que se liberar a demarcação de terras “daqui a pouco vão pegar Copacabana”. E deveriam, afinal também estavam em Copacabana eles estavam antes do Brasil ser Brasil. Mas nunca pediram demarcação contíguas e reivindicam a demarcação em ilhas, o que é inclusive um fato novo, pois na época em que começaram as demarcações após a Constituição, eles achavam essa ideia absurda, pois era inconcebível para os Guarani haver cercas separando uma terra que foi criada pelo Deus deles e não deveriam apresentar esse tipo de separação.
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Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania.