Correio da Cidadania

"O 7 de setembro continua no nosso horizonte como uma imensa ameaça"

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Na avaliação do historiador Valério Arcary, "o que há de mais significativo na carta é a defesa do sistema eleitoral, ou seja, o posicionamento intransigente de lisura das urnas eletrônicas e, portanto, daquilo que é a essência do regime liberal democrático: o direito à alternância de poder". Na entrevista a seguir, ele disse que o presidente e seu grupo político "estão dramaticamente apreensivos e inseguros" e "as ameaças de Bolsonaro são que ele ganha ou ganha as eleições; ele não pode perder. Se eventualmente for superado nas eleições pela candidatura Lula, ele não reconhecerá e vai denunciá-la como fraude, como uma conspiração e, portanto, posiciona a extrema-direita no lugar da desobediência civil".

Para Arcary, "o regime democrático eleitoral tal como se estabeleceu no Brasil desde o final dos anos 1980 está seriamente ameaçado por golpistas que respondem a uma estratégia política do bolsonarismo. Essa estratégia obedece a uma perspectiva, mas o tipo de ajuste econômico e social que o governo Bolsonaro persegue não é possível com a preservação intacta das liberdades democráticas e civis com as quais convivemos ao longo das últimas décadas".


Valério Arcary (Foto: Reprodução)

Valério Arcary é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo - USP. É professor aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo – IFSP e autor de Ninguém disse que seria fácil (São Paulo: Boitempo, 2022).

Confira a entrevista.

Qual sua análise quanto ao atual momento da democracia no Brasil? Como chegamos a esse quadro?

Valério Arcary: O regime democrático eleitoral tal como se estabeleceu no Brasil desde o final dos anos 1980 está seriamente ameaçado por golpistas que respondem a uma estratégia política do bolsonarismo. Essa estratégia obedece a uma perspectiva, mas o tipo de ajuste econômico e social que o governo Bolsonaro persegue não é possível com a preservação intacta das liberdades democráticas e civis com as quais convivemos ao longo das últimas décadas.

Chegamos a um ponto em que a divisão na classe dominante – e, especialmente, este núcleo mais concentrado da riqueza, os chamados donos do PIB – se colocou em movimento. Foi muito tardio. O Supremo Tribunal Federal – STF resistiu sozinho às ofensivas de Bolsonaro desde a pandemia. O Congresso permaneceu indiferente a todas as ameaças do governo Bolsonaro e quando o centrão se integrou como um componente assimilado dentro do governo, o Congresso foi anulado e, portanto, vivemos uma situação na qual o presidente esteve blindado apesar dos crimes de responsabilidade.

Ainda que tarde, é positivo que os pesos pesados do grande capital tenham acordado. Este movimento que se traduziu nas cartas é positivo e é um ponto de apoio para resistirmos às ameaças de 7 de setembro.

O que a ação da organização de uma carta pública em defesa da democracia revela? Por que esse movimento chegou a tal proporção com milhares de assinaturas?

Valério Arcary: Já são mais de um milhão de assinaturas, o que é uma adesão multitudinária, mas temos de ter senso de proporção. A carta é uma resposta defensiva diante de uma dinâmica ininterrupta de provocações do governo Bolsonaro. Ele convocou os embaixadores para um minicomício no Palácio da Alvorada em que anunciou abertamente a desconfiança pelo sistema eleitoral, pela lisura das urnas eletrônicas e tem feitos discursos para a sua base social predisposto a arriscar a sua vida em defesa do que ele interpreta que é a defesa da liberdade.

Agora, evidentemente, a carta empresarial da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo - Fiesp e da Federação Brasileira de Bancos - Febraban faz uma diferença e tem um impacto enorme porque estamos falando da fração mais poderosa da burguesia. Bolsonaro ainda mantém apoio na maioria da massa da burguesia quando pensamos em grande escala, ou seja, quando consideramos que há entre 2,5 e três milhões de empresários com negócios diferentes, mas as cartas são uma espécie de protesto claro em defesa do regime democrático eleitoral. Elas respondem à ansiedade que cresceu nas camadas médias da arte, da cultura, da universidade, mas, ainda assim, evidentemente, não anulam uma ameaça mais vigorosa contra o 7 de setembro.

Ou seja, o Rio de Janeiro será palco do 7 de setembro, de uma apoteose neofascista como foi o 7 de setembro do ano passado, em que, na Av. Paulista, na Av. Atlântica, em Copacabana, e na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, Bolsonaro colocou centenas de milhares de pessoas nas ruas. Ou seja, demonstrou que tem uma força social que o apoia em segmentos da pequena burguesia proprietária, e tem capilaridade dentro da oficialidade das Forças Armadas, das Polícias Militares, das Polícias Civis, e que exerce influência através de empresas e igrejas neopentecostais que manipulam o que são as inquietações culturais, sociais da base social mais vulnerável do país.

Portanto, o 7 de setembro continua no nosso horizonte como uma imensa ameaça e Bolsonaro não hesitará em se apoiar nesse movimento para se blindar diante de um processo de investigação, condenação e, eventualmente, prisão. Ele ainda disputa o primeiro turno e quer, evidentemente, a partir do 7 de setembro, ter um impulso para chegar ao segundo turno. Ele faz uma aposta de médio e longo prazo de que seja qual for o destino eleitoral, ele permanecerá blindado e intocável e não terá no Brasil o destino que está colocado diante de Trump nos EUA.

Quais os pontos mais significativos que destacas da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”?

Valério Arcary: O que há de mais significativo na carta é a defesa do sistema eleitoral, ou seja, o posicionamento intransigente de lisura das urnas eletrônicas e, portanto, daquilo que é a essência do regime liberal democrático, que é o direito à alternância de poder. Ou seja, as ameaças de Bolsonaro são que ele ganha ou ganha as eleições; ele não pode perder. Se eventualmente for superado nas eleições pela candidatura Lula, ele não reconhecerá e vai denunciá-la como fraude, como uma conspiração e, portanto, posiciona a extrema-direita no lugar da desobediência civil. Ele e seu grupo político estão dramaticamente apreensivos e inseguros de que os processos de denúncia darão lugar a investigações, condenações e prisões.

Enquanto acompanhamos todas essas manifestações pela democracia, há um Brasil que não chega a ler, assinar ou participar de debates como o proposto na carta. De que forma podemos envolver e levar essa lufada de ar impregnado de Estado Democrático de Direito a essas pessoas?

Valério Arcary: Os direitos democráticos foram uma conquista histórica da fase final da luta contra a ditadura militar e, portanto, as liberdades democráticas, civis e formais são de interesse estratégico do povo, mas não o comovem porque embora haja direito de organização sindical, não há direito de militância sindical dentro das empresas. Embora haja eleições regulares com alternância de governos, não chegamos, no Brasil, no patamar mínimo de democracia que poderíamos chamar de a democracia dos direitos, dos músculos, dos nervos, das condições de vida, do salário digno, do acesso ao trabalho, da universalização da educação, enfim, da seguridade social. E há uma ampla parte do povo que vive esmagada diante de condições materiais de sobrevivência que são indignas, inaceitáveis e inexplicáveis no início da terceira década do século XXI.

Bolsonaro abertamente faz a denúncia das conquistas democráticas e o discurso da direita bolsonarista é neofascista porque exalta a ditadura militar e, sistematicamente, denuncia que a democracia ficou cara demais, estendeu direitos demais, criou o SUS, que é caro demais, universalizou o acesso ao ensino fundamental, que é caro demais.

Portanto, Bolsonaro tem de insistir na ideia de que o povo tem de escolher: se quer emprego, não pode ter tantos direitos. Ele coloca no mesmo embrulho os direitos sociais conquistados a partir da Constituição de 88 e as liberdades democráticas. Creio que temos que responder à altura. Nós queremos defender as liberdades democráticas para transformar os direitos que estão na lei, que são formais, em direitos reais. Ou seja, o salário mínimo vital que ofereça condições de existência e por aí adiante.

Diante dos indicadores de insatisfação e desconfiança da população com o sistema político brasileiro, as atuais mobilizações pela manutenção do Estado Democrático de Direito são suficientes para evitar um golpe?

Valério Arcary: Declarações são importantes, mas são insuficientes para diminuirmos os riscos que estão colocados perante uma ofensiva de natureza golpista do governo Bolsonaro. Ele ameaça a lisura e a legitimidade do processo eleitoral e vai se apoiar em mobilizações de massa no dia 7 de setembro, quando pretende produzir uma arruaça fascista nas ruas para intimidar as instituições e amedrontar o povo de esquerda.

Temos de assumir plenas responsabilidades diante da gravidade que é o momento histórico que estamos vivendo. Isso significa que temos de responder nas ruas e construir mobilizações que sejam a expressão das liberdades democráticas e dos direitos que foram conquistados pela geração anterior. Isso significa preparar o 10 de setembro, mas, antes disso, saber que o terreno no qual a disputa está ocorrendo é o terreno eleitoral.

Acredito que estamos diante de um grande desafio da campanha Lula, que é o instrumento eleitoral que temos para derrotar Bolsonaro. Não sou petista, sou militante do PSOL, e estou no comando nacional do PSOL, mas compreendo que o apoio a Lula é o grande desafio.

Acredito que não basta romantizar o que foi a experiência dos governos petistas do passado e tampouco acho que seja um bom caminho assimilar as pressões que a classe dominante está fazendo sobre a campanha do Lula para ter garantias antecipadas de que o tripé econômico permanecerá intacto, de que não haverá revogação das contrarreformas dos últimos cinco anos.

Ao contrário, estou entre aqueles que fazem uma aposta na mobilização popular. O nosso papel é motivar, empolgar e encantar as novas gerações para que elas acreditem ser possível, através das ações coletivas, mudar as suas vidas; é possível e vale a pena apostar na mobilização.

Portanto, é necessário apostar na mobilização e incendiar a imaginação da juventude operária e popular, o movimento de mulheres, o movimento negro, os movimentos ambientalistas, os movimentos LGBTQIA+, os movimentos estudantis e sindicais. É preciso colocar o bloco na rua, na aposta de que é possível um outro Brasil, com direito ao trabalho, à escola, ao respeito, ou seja, é uma luta por um governo de esquerda.

Entrevista publicada em IHU.

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