Contra a Frente Ampla às avessas, única saída para Lula governar de fato é o enfrentamento
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- Gabriel Brito, da Redação
- 17/02/2023
O governo Lula sequer terminou sua organização administrativa, ainda estamos na fase de conclusão das nomeações de diversas funções-chaves do Estado brasileiro, mas, após a intentona fascista de 8 de janeiro, o tempo parece andar mais rápido e a expectativa por resultados é imensa. Se houve uma chamada Frente Ampla para vencer as eleições e tentar contornar a tragédia bolsonarista, aqueles que sustentaram Bolsonaro no poder também tem sua “Frente Ampla”. Trata-se do bloco ultraconservador formado por militares, grupos bolsonaristas ativos e o grande capital, representado mais especificamente pelo mercado financeiro. O Correio da Cidadania entrevistou o sociólogo Ricardo Musse para analisar este embate pelos destinos do Brasil.
Para início de qualquer conversa, Musse considera fundamental que Lula estabeleça a obediência das Forças Armadas a sua chefia, condição essencial para a realização de um governo representativo das bandeiras que venceram a eleição. Punir os golpistas é, em sua visão, decisivo para o futuro imediato da democracia no país. “Os militares também têm sido poupados, inclusive aqueles da reserva. Quanto ao ex-presidente e equipe de campanha eleitoral, ainda nada. O desafio, assim, é que essa punição exemplar não se limite aos que foram manipulados (mas exerceram suas liberdades individuais) e vandalizaram Brasília e a sede dos três poderes. A punição só será reconhecida como eficaz se chegar aos escalões superiores”.
Isto é, a despeito do cinismo de setores que se dizem comprometidos com o sistema democrático, mas querem, na essência, preservar os dogmas e contrarreformas impostas pelo período Temer e Bolsonaro, “a única saída possível, que o governo vem tentando, é o enfrentamento. Não fazer isso é aceitar um estado de não governo, de rainha da Inglaterra. Todas as forças econômicas, militares e bolsões bolsonaristas buscam impedir isso”, explicou Musse.
Na visão do coautor do livro China contemporânea: seis interpretações e editor do site A Terra é Redonda, a posição de Roberto Campos Neto é simbólica da atitude de setores derrotados na eleição que ainda trabalham ativamente para boicotar o novo governo e seus projetos. Convencer parlamentares e parte do próprio capital nacional a aceitar seu programa de governo é a grande obra a empreender. Paradoxalmente, o momento é impróprio para que o amplo espectro de apoiadores do novo governo canalize seus anseios em lutas abertas. O esforço de convencimento e engajamento em favor de politicas públicas progressistas exigirá paciência.
“É possível que haja movimentos para sinalizar uma posição da sociedade a fim de criar um fato público midiático, mas não é a forma de pressão correta. Se a esquerda envereda por este caminho, entramos numa situação em que as hostes bolsonaristas seriam legitimadas e teríamos batalhas campais, como vimos em países que tiveram a institucionalidade abalada, como a Venezuela depois da morte de Chávez. Não creio que este seja o caminho da esquerda brasileira. O caminho é a luta diária e cotidiana pelos seus interesses, o trabalho de formiguinha de conquistar adeptos, preparar quadros, o trabalho intelectual de oferecer alternativas à transformação do país”.
A entrevista completa com Ricardo Musse pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como observa o início do governo Lula, à luz de imensas demandas socioeconômicos, pressões neoliberais e uma tentativa de golpe de Estado? Qual o tamanho da engenharia que o terceiro mandato de um presidente marcado pela capacidade conciliatória deverá ser capaz de empreender para pacificar minimente o país?
Ricardo Musse: Os desafios do terceiro mandato de Lula são enormes. Eu diria que o principal é desbolsonarizar o aparelho de Estado. Trata-se de criar instrumentos para evitar o boicote, que tem dois braços: um na sociedade e outro dentro do Estado, mas que estão interligados e têm sua potência oriunda exatamente disso. Foi o que vimos nos acontecimentos de 8 de janeiro, um resultado do processo de radicalização que maturou na porta dos quarteis, sobretudo no quartel general do exército em Brasília. Não dá pra deixar de atribuir uma parte da responsabilidade ao exército. Há bolsões de militantes bolsonaristas, conhecidos ou anônimos, profissionalizados politicamente ou não, que só tiveram a capacidade de invadir os três poderes porque contaram com conivências das forças repressivas do Estado e do exército, que deixou tais movimentos se organizarem em seu território e adjacências; conivência da polícia militar do Distrito Federal, que foi omissa e até conivente; do batalhão da guarda presidencial e das forças que deveriam proteger o STF.
Some-se a atuação de Ibaneis Rocha, eleito com apoio e as benesses do ex-presidente Bolsonaro, que entregou o comando de sua estratégica secretaria de segurança pública ao ex-ministro da Justiça, Alexandre Torres, e deixou que toda a cúpula fosse por ele nomeada, ciente dos riscos que tal decisão implicava. O governador não pode dizer que não sabia da possibilidade, estampada em todos os jornais e redes sociais, de uma tentativa de ocupação da Esplanada dos Ministérios pela horda bolsonarista.
A outra frente dos ataques à democracia, ao resultado da eleição, ao direito do presidente Lula ocupar a presidência e governar, vem de fontes econômicas que constituíram um dos polos de apoio ao governo Bolsonaro. Trata-se dos milionários, CEOs, grandes empresas e bancos do mercado financeiro, tudo o que na linguagem marxista se resume no termo grande capital.
O grande capital tem vários braços entre os empresários menores, que são dependentes ou simplesmente admiram seu poder, e sobretudo na mídia corporativa, a grande imprensa, porta-voz de tais interesses, não só no jornalismo econômico, mas também no jornalismo político. Aqui também temos a mesma interconexão entre uma força opositora que se localiza na sociedade e um de seus braços dentro do aparelho de Estado, como ficou claro, que é o Banco Central.
Correio da Cidadania: Se de um lado falamos em Frente Ampla para definir o bloco que chegou ao governo, do outro lado também há uma Frente Ampla.
Ricardo Musse: A entrevista ao Roda Viva de Roberto Campos Neto, cujo avô foi figura proeminente da ditadura, deixou claro que ele é um bolsonarista raiz. Ele tem a mesma empáfia autoritária, a mesma certeza absoluta, o mesmo desprezo pelos outros, a mesma consideração pela democracia e pelos desaventurados economicamente, do presidente Jair Bolsonaro. São traços que encontramos num regime autoritário e na onda internacional da extrema-direita, que se caracteriza por uma nova rodada do neoliberalismo, uma versão que pode ser dita ultraneoliberal.
Pelo histórico e pela campanha, esperava-se que Lula usasse de sua capacidade de negociação, ou conciliação, para enfrentar os desafios do novo governo. Mas a virulência dos ataques de 8 de fevereiro, mas também declarações, notas, falas do presidente do BC, além de analistas, economistas e empregados deste mercado impediram essa via. Não que a conciliação tenha deixado de fazer parte de sua personalidade, destacável ao longo da vida, mas mostrou disposição para enfrentar com rigor tal combate.
Com apoio e ajuda do STF, em particular do ministro Alexandre de Moraes, encarregado da punição aos crimes de 8 de janeiro, Lula mostrou enorme disposição em punir os atos e seus participantes, pois a punição é a única forma de evitar não só que se repitam, mas cresçam, se renovem. É um evento necessário. E falou grosso, continua falando, acerca da imoral taxa de juros, mantida pelo BC e colocada como necessária por um longo tempo. Ele percebeu que a intenção dos condutores do BC é impedir uma política econômica com distribuição de renda e desenvolvimento social, bandeiras com as quais Lula foi eleito.
Um fato importante é que nos dois casos Lula não só fez declarações como mobilizou forças da frente que o elegeu, e até mesmo adversários, como governadores bolsonaristas e parcelas do congresso nacional para a defesa da democracia. Agora, mobiliza a população, sociedade, bancadas, centrais sindicais, chama o apoio da FIESP e dos grandes bancos em sua luta contra os juros altos.
Correio da Cidadania: O que pensa das prisões e processos sobre os participantes dos ataques de 8 de janeiro? É possível retomar patamares críveis de democracia sem punir enfaticamente o bolsonarismo?
Ricardo Musse: Vemos a culpabilização direta dos participantes e financiadores da horda, além de alguns agitadores de rede sociais, que de certa forma deram o comando ideológico do movimento. O primeiro grupo está nas penitenciárias de Brasília e os processos vão sendo individualizados com grande rapidez. O segundo grupo ainda está em identificação, ampliação, sobretudo a partir dos depoimentos dos presos. O terceiro grupo está sendo monitorado pela PGR, na tentativa de identificar os promotores da tentativa de golpe. São casos em que há uma linha tênue entre os que simplesmente não aceitaram o resultado da eleição e os que incentivaram a ação. O desafio é identificar e julgar todos esses cidadãos dentro dos princípios do estado democrático de direito, com direito à ampla defesa, contraditório, julgamento individualizado e isento. Isso parece estar sendo bem conduzido.
O delicado são os casos de figuras proeminentes que sabemos estar por trás do movimento e nem sempre assumiram explicitamente este fato. Parlamentares, membros dos altos escalões das forças armadas, o ex-presidente, seu vice e sua entourage. Portanto, a questão em aberto é até que ponto esses processos e seus desdobramentos poderão chegar até as verdadeiras cabeças do movimento. As prisões preventivas dos participantes diretos e financiadores menores já foram efetivadas. Mas sobre este grupo aqui descrito ainda não há sequer indiciamentos. Se isso será possível a partir dos processos e julgamentos é algo que ainda estamos por saber. O que nós percebemos é que o STF não irá direcionar a investigação para parlamentares, isso foi deixado ao próprio Congresso. E note-se que até agora, nem na Câmara dos Deputados nem no Senado, se abriu algum processo nas comissões de ética.
Os militares também têm sido poupados, inclusive aqueles da reserva. Quanto ao ex-presidente e equipe de campanha eleitoral, ainda nada. O desafio, assim, é que essa punição exemplar não se limite aos que foram manipulados (mas exerceram suas liberdades individuais) e vandalizaram Brasília e a sede dos três poderes. A punição só será reconhecida como eficaz se chegar aos escalões superiores.
Correio da Cidadania: Como fica a questão militar no meio disso?
Ricardo Musse: São muitos desafios. Max Weber já definiu o Estado como aquele capaz de deter a exclusividade das forças repressivas. Isso quer dizer o seguinte: Lula só será plenamente presidente se for pleno comandante das forças militares. Isso não é absoluto, mas a chefia do Estado supõe o domínio do aparato militar e dos altos escalões das Forças Armadas.
Em parte, tal questão se coloca porque desde a proclamação da República os militares se acham uma espécie de poder moderador, que em qualquer conflito ou circunstância mais complexa se veem no direito de intervir. Mas no caso atual há uma variável a mais: as FA não só se constituíram em braço do poder de Bolsonaro como também foram a instituição que desde 2014 o preparou para chegar à presidência. Uma vez instalado por lá, se cercou de aproximadamente 7000 militares que ocuparam cargos comissionados no aparato de Estado. Há uma simbiose aqui.
A insubordinação das FA no início do governo Lula, e mesmo na transição, tinha uma direção bastante significativa. Tratava-se de impedir Lula de governar, com a resistência das hordas bolsonaristas, dos mercados financeiros e dos militares em aceitar o comando do novo presidente. É significativo que alguns se recusaram a prestar continência ao novo presidente.
Uma questão que moveu comentaristas e suscitou muitas explicações diferentes foi o papel dos militares no dia 8 de janeiro. Ficou claro que a expectativa das hostes bolsonaristas, inclusive o governador do Distrito Federal, era de que os militares interviessem, por meio de Garantia de Lei e Ordem (GLO) ou iniciativa própria. Como a GLO não foi chamada, ficaram esperando uma unanimidade que não houve entre eles.
Assim, fica claro que os militares, assim como Bolsonaro, também se sentiram derrotados pelo resultado eleitoral. Isso suscitou divergências internas sobre como deveriam se comportar. Imagino que tais divergências passavam por quem não queria a transmissão do poder e pelos que pensavam ser um dever respeitar a Constituição e a normalidade democrática.
No entanto, prevaleceu o movimento que encontramos já no caso do Banco Central: tentar impedir o presidente de governar com seu programa, o que assumiu a forma de certa chantagem e monitoramento sobre o presidente. Situação no qual a espada estaria sempre próxima a sua cabeça.
A escolhe do ministro Mucio (Defesa) é indicação do conflito, pois foi mais indicado pelos militares do que escolhido pelo presidente. Ao demitir o comandante do exército, Lula deu uma resposta que não sabemos ainda se foi suficiente, se serão necessárias mais medidas para recompor o quadro das forças armadas, e não sabemos qual poder o presidente terá para definir promoções, punições a bolsonaristas que participaram dos atos, modificações dos currículos escolares da formação de quadros das FA. São pontos decisivos não só para este governo, como para a própria democracia brasileira.
Correio da Cidadania: Quais as saídas? Por onde Lula pode encontrar margem para operar uma política que ofereça resultados palpáveis à população?
Ricardo Musse: A única saída possível, que o governo vem tentando, é o enfrentamento. Não fazer isso é aceitar um estado de não governo, de rainha da Inglaterra. Lula tem afirmado desde a campanha eleitoral, desde antes até, que na sua idade não está preocupado com as regalias e benesses do cargo, mas encara isso como uma força motivacional, algo essencial à sua vontade de viver, o anseio de contribuir para a transformação da sociedade brasileira.
Todas as forças econômicas, militares e bolsões bolsonaristas buscam impedir isso. Obviamente, fica a noção de que as forças agrupadas em torno da campanha eleitoral, na transição e sobretudo as que têm conquistado resposta aos ataques de 8 de janeiro irão predominar, já que os adversários, sobretudo no terreno econômico, são muito poderosos. Aí a política do Lula é dupla, ao mesmo tempo de enfrentamento e atração. Um pouco do que vimos mais explicitamente em relação ao Congresso, em tese hostil, pois elegeu apenas 30% de deputados vinculados à sua coligação. Lula busca trazer para seu campo aqueles que em princípio não estão tão fechados com o bolsonarismo.
Há situações mais fáceis e outras complicadas. A defesa da integridade dos territórios indígenas, a expulsão do garimpo ilegal, incentivado pelo governo anterior, é tema no qual conta com apoios amplos, internacionais, na grande mídia, na maioria da população. Naturalmente, o mais difícil ponto é o embate com o Banco Central, porque aí o apoio da população é insuficiente. A essência sobre a qual se move o mercado financeiro, grande mídia, economistas patrocinados e os membros do conselho diretor do BC mostra-se totalmente infensa à vontade da população. Julgam que se trata de uma questão técnica, onde a opinião da população, dos eleitores, não é relevante.
Portanto, fica a dúvida como o presidente irá levar adiante tal embate, se chegará a um ponto em que será necessário demitir o presidente do BC, o que não seria ilegal, já que por dois anos o comitê dirigente do BC não efetuou sua obrigação, que era levar a inflação ao centro da meta. Eles deixaram os juros baixos para aumentar a popularidade de Bolsonaro e só subiram na véspera da eleição, já preparando um cenário posterior de recessão programada, independentemente de quem fosse o presidente.
Fica em aberto mais este ponto: Lula irá até o ponto de demitir o presidente do BC?
Correio da Cidadania: Por fim, as militâncias progressistas, movimentos sociais, esquerdas parecem viver um compasso de espera, ocupando as ruas somente como reação, não como proposição. Não é urgente reverter essa dinâmica?
Ricardo Musse: Elas não estão paralisadas. Elas mostraram uma potência e uma dinâmica que permitiram uma eleição contra um governo que usou de todos os meios e recursos possíveis, a maioria ilegal e ao arrepio da lei, para ser reeleito. Foram desobediências, usos autoritários, derrame de dinheiro público, gastanças em que qualquer prefeito do interior seria impedido de continuar candidato durante o próprio processo eleitoral.
Portanto, sindicatos, movimentos e grupos de esquerda foram fatores decisivos, tanto quanto a propalada Frente Amplíssima, iniciada com a escolha de Geraldo Alckmin para vice de Lula. Movimentos e sindicatos seguem mobilizados nos embates de início de governo, tanto no repúdio ao golpe como nas tentativas do mercado de ditar uma política econômica contrária ao que foi consagrado no voto.
Parte da esquerda reclama por não haver mobilizações de rua. Mas essas são um recurso da oposição em situações de governos democráticos. O governo Lula pretende recompor a institucionalidade e harmonia entre os três poderes, e mesmo subordinar a seu comando o aparato do Estado. Ele se move no marco estritamente legal da Constituição, referência de suas ações. Ela prevê várias formas de participação popular, o que o governo até se propõe a fazer, a exemplo das conferências nacionais. Mas não admite que de certa forma haja uma mobilização física no sentido de pressionar os poderes. Da mesma forma que se condena a ocupação do STF, não é possível dizer que a questão do BC se resolveria com uma concentração de pessoas na porta do seu prédio em Brasília ou sua sede em São Paulo.
É possível que haja movimentos para sinalizar a posição da sociedade a fim de criar um fato público midiático, mas não é a forma de pressão correta. Se a esquerda envereda por este caminho, entramos numa situação em que as hostes bolsonaristas seriam legitimadas e teríamos batalhas campais, como vimos em países que tiveram a institucionalidade abalada, como a Venezuela depois da morte de Chávez. Não creio que este seja o caminho da esquerda brasileira. O caminho é a luta diária e cotidiana pelos seus interesses, o trabalho de formiguinha de conquistar adeptos, preparar quadros, o trabalho intelectual de oferecer alternativas à transformação do país.
Gabriel Brito é jornalista, repórter do Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.
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