Correio da Cidadania

A herança de Lênin que aporta aos abismos do Brasil de hoje

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"É no manejo mágico de uma balança que está guardada toda a matemática dos sábios, num dos pratos a massa tosca, modelável, no outro, a quantidade de tempo a exigir de cada um o requinte do cálculo, o olhar pronto, a intervenção ágil ao mais sutil desnível". Raduan Nassar

“Entre fevereiro e outubro, houve abril”. Francisco de Oliveira


Chamo de abismos o que temos em volta e por diante: a consolidação e normalização das dissoluções socioterritoriais resultante da intensificação das dinâmicas capitalistas necrófagas de riquezas e saberes coletivos. Estas dinâmicas desconstituintes ganharam corpo a partir de 2011, com espasmos em 2013 e 2015, e chegaram à primazia entre 2016 e 2022, ficando em estado latente a partir de 2023.

A ascensão da extrema-direita no Brasil é causa e consequência dos processos de subjetivação política da burguesia brasileira financeirizada. Não é possível separar o neofascismo político (“bolsonarismo”) de um neofascismo de mercado: ambos se blindam em intercâmbio de butins, seja de ativos estatais seja de bens e direitos públicos, sociais e ecológicos. Encapsulado este “Governo de fato” em 2022, erigiu-se um tentativo “Governo de direito” ao qual foram concedidas margens de governabilidade estritas que cabem nas bordas destes abismos. Neste interstício em que se reacomodam posições reacionárias e centristas, um século depois de Lênin, cabe interpretar este diagrama de forças em precário equilíbrio.

Antes, sob a tela de projeção de inimigos inventados e inflados (comunistas, corruptos, desviantes), e com apoio uníssono da Faria Lima, foram autorizados assaltos em bloco de equipamentos públicos e direitos sociais. Depois, com a eleição e a posse de Lula, e na resposta à intentona de 8 de janeiro, conformou-se uma convergência institucional em torno da inadmissibilidade de golpismos similares. O Governo de frente ampla expressa, ao final, uma pactuação interclassista para fins de consolidação das ofensivas anteriores e para recolocação do país como global player nas arenas regional e global.

O agronegócio, a mineração e as finanças não mudaram nem de caráter nem de mãos neste rearranjo e a fronteira de commodities segue em marcha forçada. Se há relativa trégua na superfície das instituições, por outro lado, nos territórios, nas imensas faixas de Gaza internas, a guerra assimétrica continua e com aval das unidades federativas. Basta ver como se combinam ações diretas de milícias urbanas e rurais para a expulsão de comunidades territorializadas e iniciativas parlamentares federais e estaduais em defesa do império da propriedade e do privatismo.

Lideranças populares com maior poder de agregação e construção de unidade em suas comunidades são ceifadas para que se exponha o custo de ficar no caminho das incorporações privadas. A trama e execução de Mãe Bernardete explicitam o modus operandi da política de chacinas e de execuções seletivas adotada no Brasil, política descentralizada, terceirizada e autodissimuladora. Redundância literalmente forçada: quem matou Bernardete foram pistoleiros do tráfico, assim como quem matou Mariele foram milicianos. Neste dispositivo necropolítico, os prêmios se avolumam em rateio com empresas e grandes proprietários beneficiados com a “limpeza” feita, e assim a autoria do crime encerra-se na execução mesma. O braço paramilitar dos capitais assume o ônus à espera de novas encomendas com bônus crescente.

O cálculo aqui requerido, que vai na contramão deste cálculo regressivo, é o cálculo da contingência dos tempos e contratempos da dominação, que apreende os momentos de impasse e as fissuras para as quais devem se dirigir todas as energias sociais disponíveis. O “Momento Lênin”, epigrafado por Chico de Oliveira (2006), é aquele que mede até onde podem ser esgarçadas as formas institucionalizadas da democracia ou seja, até onde a violência do capital pode ser contida institucionalmente. Este seria o fulcro do pensamento/ação de Lênin: o esforço permanente em identificar como determinadas conjunturas, “entrariam em relação com a totalidade, com a totalidade do presente e com o problema central da evolução futura, e, portanto, com o próprio futuro” (LUKACS 1970, p. 92).

O aprendizado possível sobre os momentos decisivos para o deslocamento de forças se faz na generalização das lições extraídas de experiências revolucionárias sempre singulares. Generalizar a experiência mesma, sem a mediação das circunstâncias históricas e dos atores nelas enfronhados, significa outra forma de sepultar a memória. A herança de Lênin não pode ser petrificada ao custo de seu esvaimento.

A Revolução russa somente se tornou viável e postulável no contexto da Grande guerra (1914-1918) e em meio ao colapso da autocracia czarista. O acúmulo e a intensidade das contradições sociais e econômicas, que estão na origem da ruptura do chamado “elo mais frágil” da cadeia capitalista, eram fruto da singular condição russa que combinava atraso/avanço em máxima polaridade: economia semifeudal & capital monopolista; absolutismo monárquico & intelligentsia portadora de ambiciosa universalidade; imperialismo grão-russo & subordinação ao capital inglês e francês; campesinato recém-egresso da servidão & um jovem e combativo operariado concentrado em grandes fábricas.

Deposto o Czar pela frente única oposicionista liderada pelos Kadetes, o incipiente partido liberal-burguês russo, emerge em fevereiro de 1917 um Governo provisório a partir da Duma (o Parlamento, em que se transacionava uma nova aliança entre burguesia e autocracia). Ao mesmo tempo e de forma antagônica, reeditava-se a experiência da insurreição de 1905, a dos conselhos autogestionários de operários e soldados, os sovietes. A reivindicação primeira dos operários, camponeses e soldados (Paz, Pão e Terra), era a retirada unilateral da Guerra, enquanto isso os Kadetes não abriam mão dos acordos de guerra e render contas ao capital financeiro inglês e francês. Estava posta a dualidade de poderes e aberto o acesso ao seu desenlace

Após abril de 1917, o divisor de águas entre os grupos mencheviques alinhados aos velhos bolcheviques (entre eles Kamenev e Stalin) e a fração bolchevique ampliada, de Lenin e Trotsky, é que os primeiros não admitiam revolução burguesa sem uma burguesia do tipo ideal, enquanto os segundos anteviam a incapacidade da burguesia russa real de cumprir o que seriam suas “próprias” tarefas. Era chegado o momento de concentração da intervenção política sob direção declarada de uma “ditadura democrática de operários e camponeses”, para levar às últimas consequências a consigna de “Todo o poder aos sovietes”. O prosseguimento e a conclusão da revolução democrática só poderiam se dar sob controle de operários e camponeses, ou seja, de seus organismos de representação direta.

Outubro foi, portanto, um desvio vitorioso, desvio de Lênin em relação à doxa socialdemocracia russa da qual ele mesmo fora (e seguiria) pilar. Uma vitória da “revolução contra O Capital” como se referiu o jovem Gramsci à revolução russa logo depois de sua eclosão. “O Capital” subentendido aqui, por Gramsci, tal como o difundido nas lentes de Kautsky e Plekhanov, como se fora a teoria universal do desenvolvimento histórico; entendia assim O Capital como fruto de um esforço determinado de uma geração, representada por Marx, que viu um novo modo de produção e reprodução amadurecer e que precisava sistematizar e registrar a crítica que fosse mais total-totalizante a ele. O que Gramsci tentava dizer com seu aforisma é que a revolução russa seguia na contramão dos intérpretes oficiais do marxismo, o que dava a ela também o status de “revolução teórica”.

As organizações e intelectuais marxistas russos cedo perceberam que o fulcro do programa de transição revolucionário teria de incorporar tarefas de fases históricas distintas e com base em heteróclitas alianças tático-estratégicas. O contraponto ao populismo russo teria que necessariamente erguer-se sobre seus achados e superá-los. Frente à questão da temporalidade do processo de amadurecimento do capitalismo, que supõe uma sequência histórica em ritmo e escopo homogêneos, Lênin (1985, p. 244) rebatia dizendo ser “incomparavelmente mais importante perguntar: de que modo, bem como, de que ponto?”

Recolocar as mesmas questões na atualidade da contrarrevolução burguesa no Brasil depende da superação do crônico lamento da “falta que faz” ao país um sujeito capitalista ideal. Esta deslocada credulidade supõe a possiblidade de existência de um capitalismo mais autóctone, justo e progressivo no Brasil. Como se houvesse, de um lado, um capital modernizante e nacional bloqueado e, de outro lado, um outro capital, arcaico e entreguista. Seria então dever dos cidadãos cerrar fileiras com o primeiro contra o segundo e aguardar os desdobramentos? Sem embargo, como se viu e como se vê, foram os capitais de distintas origens que cerraram fileiras entre si e se desdobraram para fazer avançar suas margens de rentabilidade à revelia de pactos e limitações legais previamente definidas.

As novas realidades constituídas pelo interflúvio entre Estado e mercado, após a reestruturação dos capitalismos centrais nos anos 1970 e 1980 e na periferia e semiperiferia do capitalismo nos anos 1990, 2000, 2010, requerem saltos políticos e teóricos proporcionais.

Primeiro é preciso compreender que as tarefas da revolução burguesa no Brasil foram cumpridas ao seu modo, nos marcos de ordens de exceção, e com papel subordinado na divisão internacional do trabalho. Frente à profusão de uma retórica civilizadora-inovadora, sustentável e inclusiva, é preciso ressaltar que continuam predominando encaixes e acoplamentos interburgueses que converteram o Estado, especialmente suas agências econômicas e setoriais, em espaços de facilitação e de generalização da forma-mercadoria, alheias a qualquer meritocracia - e considerando bastante suficiente alcançar credibilidade frente aos investidores financeiros, legitimações outras, à parte.

Segundo, é preciso extrair os significados da esquerda institucional ter se convertido hoje no bastião da democracia liberal no Brasil e do fato de o Governo Lula buscar legitimidade alçando-se como um substitutivo histórico de uma desencarnada burguesia industrial/nacional.

Indo com Lênin e além dele, cabe então indagar onde estão as saídas diante de um emparedamento que é simultaneamente neoliberal e neofascista, perguntar como ativamos forças sociais, com que pontos de partida e com que espaços organizativos. É indispensável decifrar o presente-futuro do país já precificado, identificar os pontos de unidade burguesa e pró-burguesa forjada em torno da estratégia de “mais capitalismo” para todos os subsumidos, ou em vias de subsunção, e descortinar brechas para a reinvenção política e social.

Bibliografia

LENIN, V. I. O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

LUKACS, G. Lenin: La coherencia de su pensamento. Grijalbo, México D. F., 1970.

OLIVEIRA, Francisco. Momento Lênin. In: OLIVEIRA, Francisco e RIZEK, Cibele Sailiba. A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 257-288

Luis Fernando Novoa Garzon, sociólogo, professor da Universidade Federal de Rondônia,
Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. 

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