Correio da Cidadania

Reforma agrária: ineficiência do Estado fomenta disputas entre trabalhadores no sul da Bahia

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Acampamento do MLT na Baixa Verde. Segundo o movimento, essa é a área onde ocorreu ataque a tiros em 17 de julho de 2024. Créditos: Google Maps.

A história que se lerá a seguir é mais uma sobre o estancamento da reforma agrária no Brasil. Um tema que aparentemente perdeu apelo no debate público nas últimas décadas ao passo que o agronegócio ganhou força e adquiriu papel hegemônico em diversas esferas. Quem perde, invariavelmente, são os trabalhadores pobres do campo.

Na longa reportagem que segue, veremos como a morosidade do governo do estado da Bahia em mediar acordos para a regularização de um enorme território, oriundo de terra devoluta grilada por empresa de celulose, tem gerado uma onda de disputas entre dois grupos diferentes de trabalhadores rurais, com relatos de episódios violentos e acusações trocadas. Um grupo é ligado ao MLT (Movimento de Luta pela Terra) e o outro a um sindicato local da Fetag-BA (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores Familiares da Bahia).

O Assentamento Baixa Verde está a noroeste de Eunápolis, município de 113 mil habitantes de acordo com o último censo do IBGE, localizado no sul da Bahia e longe da costa. Com acesso por meio de uma estrada rural que sai do centro da cidadezinha, falamos de um território que pode ser considerado um representante do “interior do interior” do Brasil. Porto Seguro, a cidade mais famosa da região, está a cerca de 100 km dali.

Recebemos a denúncia do MLT, feita através do site da Teia dos Povos, e conversamos com um dos moradores do seu acampamento. Também conversamos com um dirigente sindical local da Fetag-BA para saber sua posição – as versões aparecerão nessa ordem. Ainda enviamos questionamentos à Secretaria de Desenvolvimento Agrário do Estado da Bahia, mas não fomos respondidos.

A denúncia do MLT

Em 7 de agosto uma adolescente de apenas 14 anos, moradora do Assentamento Baixa Verde - do Movimento de Luta pela Terra (MLT) ligado à Teia dos Povos - enviou uma mensagem em áudio para o grupo de WhatsApp da comunidade em que descreveu o terror que vivenciou próximo ao acampamento. Intercalando o choro com a própria narração do episódio, a menina contou que estava acompanhada de uma colega quando chegou a uma área coletiva chamada de Viveiro, onde havia três homens estranhos à comunidade. Um de camisa vermelha, outro de branco e um terceiro de preto vestia algo que, para ela, parecia um colete à prova de bala. Os três estavam “aparentemente abaixados, escondidos numa moita”, relatou.

“Na hora que estávamos perto eles levantaram, estavam com uma arma e não era pequena”, disse a adolescente no áudio. A certa distância dos homens, ela explica na mensagem que tentou seguir seu caminho, mesmo com a presença dos estranhos, tomando cuidado para que não vissem seu rosto. De longe, viu o momento em que os homens efetuaram dois disparos e abordaram um carro branco que passou pela estrada de acesso.

O veículo chamou a atenção dos homens, que se movimentaram em sua direção. Um deles correu para um canavial próximo à porteira de acesso da área coletiva dos acampados, saindo do campo de visão do carro e de seus ocupantes. O carro tem modelo e cor similar ao de uma das lideranças da comunidade, que desenvolve periodicamente atividades no Viveiro, fazendo com que os membros da mesma suspeitem que pudesse ter sido uma tentativa de emboscada para atingi-los.
Área conhecida como Viveiro do Assentamento Baixa Verde, onde as adolescentes relatam ter testemunhado os tiros. Reprodução: Google Maps

De cabeça baixa, as jovens então decidiram retornar para a comunidade. Guardaram suas ferramentas de lavoura e, ao se dirigirem a um local do Viveiro para lavarem as mãos, deram de cara com um dos homens, ajoelhado, apontando-lhes a grande arma.

“A única coisa que passava na nossa cabeça era que a gente ia morrer. A única coisa. A colega falava ‘eu vou morrer, eu vou morrer’. Eu tava assustada também, só que eu falava pra ela não se desesperar. Na hora que nós estávamos lavando a mão, eles deram mais dois tiros, aí na hora eu vi o cara mirando a arma para a gente. Eles já tinham dado dois tiros. Nós continuamos andando, fomos pela estrada como se não tivesse acontecido nada, e do nada eles começaram a gritar: ‘Ei! Ei’. Minha perna começou a falhar, eu não estava conseguindo andar direito com uma perna e pedi a colega para esperar. E o tempo todo eles gritando: “Ei! Ei”. Eu tava com medo de morrer naquele momento ali com um tiro nas costas, mas conseguimos sair de lá”, relata a jovem aos prantos. O áudio foi transcrito na íntegra em nota publicada no site da Teia dos Povos.


Área conhecida como Viveiro do Assentamento Baixa Verde, onde as adolescentes relatam ter testemunhado os tiros. Reprodução: Google Maps

Mas segundo a denúncia, esse foi só mais uma episódio de uma longa história de animosidades. “Diversas situações similares foram sistematicamente denunciadas a diversos órgãos competentes, sem que houvesse nenhuma prisão. Casas queimadas, cercas e roças destruídas”, diz a nota.

Um mês antes, diz a denúncia, adolescentes da Baixa Verde voltavam da escola quando foram acossadas por um membro da comunidade invasora conhecido por suas condutas violentas. Ele abordou os jovens sobre uma moto. “Questionou quem eram, para onde iam, entre outras perguntas, alegando que não era para as crianças estarem andando ali ‘na quebrada dele’, fazendo menção a facções criminosas que atuam na região”, diz a denúncia.

Desesperados, os jovens adentraram a área de outro assentado do MLT para cortar caminho e desviar a rota. Chegaram em casa assustados e contaram o ocorrido aos parentes.

Dias depois, em 17 de julho, dois homens numa moto teriam invadido o acampamento do MLT no período noturno e efetuado uma série de disparos de armas de fogo. De manhã, membros da comunidade recolheram e fotografaram as cápsulas. A ação foi testemunhada por uma anciã da comunidade e não há relatos de feridos.


Cartuchos recolhidos pela comunidade. Créditos: Acervo/MLT.

O MLT atribui os ataques a um segundo grupo de trabalhadores rurais e aponta a existência de “centenas de boletins de ocorrência” sobre os ataques. Alega que acionou, além da Polícia Civil de Eunápolis, a Polícia Federal, Polícia Militar, a Secretaria Nacional de Justiça e o Ministério Público Estadual. Diz que em todos os casos protocolou denúncias, as quais desconfia que não estejam sendo investigadas.

“Nenhuma ação efetiva foi tomada por nenhum setor para garantir a vida, saúde e segurança alimentar dos membros do MLT na área. A área faz parte do Mapa Nacional de Conflitos Agrários e diversos membros do MLT fazem parte de programas de proteção por conta da periculosidade explícita dos invasores”, finaliza a nota da Teia.

O Assentamento Baixa Verde e o MLT

Conversamos com um morador do Assentamento Baixa Verde que explicou melhor a história, e pediu para não ter seu nome revelado por razões de segurança. Ele disse que o Viveiro é uma área coletiva que faz parte de um projeto mais amplo desenvolvido pelo MLT desde a ocupação em 2008. Esse projeto consiste na recuperação da mata nativa – ali é uma área de Mata Atlântica.

Explica que quando ocuparam a área tinham diversos projetos produtivos, sociais e culturais em andamento, oriundos de iniciativas dos próprios membros da comunidade. O principal objetivos deles enquanto movimento é fomentar a vida comunitária de cara ao mundo em que lutam para viver. Anos mais tarde, com a participação do MLT, viria a articulação em torno dessas ideias e práticas que daria luz à Teia dos Povos, conta o morador.

Entre esses projetos está a recuperação ambiental e a própria organização do trabalho e da terra de modo a garantir glebas individuais aos assentados em paralelo com áreas comuns, que teriam importância tanto na produção agrícola como na reprodução social da comunidade – uma marca do trabalho da Teia dos Povos, da qual o MLT é um dos elos. Em termos de produtividade, o MLT buscava viabilizar renda de um a três salários mínimos por família através da produção rural coletiva e individual – e frisa que registrou essa projeção nos processos jurídicos que envolvem o caso.

“A perspectiva do trabalho coletivo sempre foi um fundamento da nossa luta. Então no nosso assentamento tem áreas individuais e coletivas... E em uma dessas áreas coletivas a gente construiu um viveiro de mudas, que estamos usando para reflorestar a margem do rio e outras áreas degradadas. Aqui era uma área de monocultura de eucalipto, então tem muita degradação ambiental e estamos recuperando esse território”, disse o morador.


Área do acampamento do MLT no Assentamento Baixa Verde. O acampamento está parcialmente abandonado. Entre as 61 famílias, só seguem ocupando o local aquelas impedidas de acessar seus lotes. Créditos:  Acervo/MLT

A comunidade vive um processo de transição entre a condição de acampamento e a de assentamento, após mais de 14 anos de luta incessante contra o Estado da Bahia e o capital privado, e há mais de 10 anos em disputa agressiva pelo território com um segundo grupo de trabalhadores rurais, supostamente ligado à Fetag (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores Familiares da Bahia), o qual acusa de cometer uma série de atos de violência como o relatado pela adolescente.

“Perceberam que as lideranças estavam indo fazer as atividades no Viveiro e se entocaram lá. Ficaram esperando, só que quem chegou foram duas crianças. Duas adolescentes que são de um projeto aqui da comunidade, que atua na formação da juventude local. As crianças entraram para fazer um trabalho ligado ao projeto e viram os caras armados. E eles dispararam. O carro de uma das lideranças é branco. E no momento desse encontro deles com as meninas veio um carro do mesmo modelo. Abordaram o veículo e quando perceberam que quem estava no carro não era a liderança, mudaram a postura. Ficaram tranquilos, o carro passou e eles voltaram pra dentro da área. Foi aí que fizeram disparos de arma de fogo”, disse o morador.


Área do acampamento do MLT no Assentamento Baixa Verde. O acampamento está parcialmente abandonado. Entre as 61 famílias, só seguem ocupando o local aquelas impedidas de acessar seus lotes. Créditos:  Acervo/MLT

Terra pública ocupada pela indústria da celulose

O MLT iniciou a partir de 2006 uma pesquisa cartorial nos imóveis da região para identificar indícios de terras públicas griladas que poderiam ser revertidas para a reforma agrária. A área do Assentamento Baixa Verde foi indicada por um morador da região, e após a pesquisa cartorial, a suspeita se confirmou, baseada em indícios de alteração nos tamanhos das propriedades. Esse morador havia presenciado todo o movimento de grilagem e derrubada da mata nativa ao longo de décadas. Naquele momento, a área estava nas mãos da Veracel Celulose.

“Ocupamos em 2008 e a empresa entrou com reintegração de posse. A gente sofreu o primeiro despejo e depois pressionamos o Estado a realizar uma Ação Discriminatória no território inteiro. Foram identificadas aqui três fazendas que a Veracel alegava ser dona. Mas das três, só tinha documento de duas: a fazenda São Caetano estava alocada completamente em terras públicas. A gente foi com essa novidade da Ação Discriminatória, e ocupou de novo o imóvel. A empresa disse que não reconhecia e tentou entrar novamente com a reintegração de posse, mas a gente se articulou pra derrubar”, conta o morador.

O MLT se articulou dentro do próprio Estado, que acionou o judiciário para inverter a acusação, retirando o processo da vara cível (que via a ação do movimento como crime), para a vara da Fazenda Pública, que trata de posses do Estado. Agora, ao invés do movimento ser acusado de invadir uma área privada, a empresa era exposta, como uma entidade que tentava se apropriar de terras públicas. O MLT então conseguiu um mandado de manutenção de posse do imóvel válido até 2010 e reocupou a área de mais de 1300 hectares. A empresa tentou novo recurso e foi derrotada.

“Mas quando a gente achou que fosse ter paz para poder trabalhar na área porque já tínhamos ganho esse processo, a área foi invadida por esse grupo. Fizemos investigações e identificamos a ação da própria Veracel para descaracterizar nossa luta no território, incentivando que o outro grupo invadisse nossa área. Em 2016, já com o conflito instalado por esses invasores, a empresa assume para o Estado que já não tem mais interesse no imóvel, que vai abrir mão do mesmo para que o Estado assista às famílias ligadas ao MLT”, narra o morador.

Problemas com o outro grupo

“A gente fez diversas denúncias dessa invasão, de que o grupo que invadiu não tinha perfil de reforma agrária e que a Veracel se aproveitou de um grupque já tinha um histórico de violência no campo aqui da região. É um grupo ligado ao movimento sindical, não são fazendeiros. São pessoas que dizem fazer parte do movimento social, então por isso a gente tem muita dificuldade para contar para fora o que está acontecendo. Esse grupo se afirma enquanto um grupo de esquerda e um dirigente desse movimento afirmou em audiência pública realizada com a Ouvidoria Agrária Nacional para tratar do conflito, que a empresa ofereceu a área para eles em 2010, sendo que desde de 2008 o MLT já havia iniciado o processo formal de reconquista do território. Foi o momento que a gente teve a confirmação de que a empresa estava por trás da invasão. Tempos depois, numa ação de mobilização em que paralisamos o maquinário da empresa, sugerimos que a mesma fizesse uma nota pública, se excluindo do conflito e declarando não ter apoiado o grupo invasor. A empresa se recusou”, relata o morador.

Esse grupo teria chegado ao local em 2010 e espalhado na região o boato de que a área havia sido liberada e que o MLT estava atrasando o processo de assentamento. Em seguida começou a chegar gente. “Caravanas e mais caravanas de pessoas”, diz o entrevistado. “Não estamos em conflito com eles. Somos vítimas de uma invasão ligada à empresa. Somos de paz e optamos por não atacar desde o início, quando começaram a roubar gado, quebrar cerca, ameaçar e jogar carro em cima dos nossos companheiros. Nunca fizemos nada parecido com nenhum deles”, completa.


Área do acampamento do MLT-Teia dos Povos no Assentamento Baixa Verde. Créditos:  Acervo/MLT.

A partir de 2019 o Estado começa a sugerir que a área fosse dividida, para que com isso o conflito fosse finalizado. O MLT inicialmente recusou a proposta. Mas desgastados por 10 anos de hostilidades, a partir de 2020 o movimento aceita a divisão do imóvel e o Estado dá continuidade ao processo de assentamento.

Na sequência, quando é feita a divisão do território, algumas dessas famílias do grupo antagonista já estavam ocupando regiões destinadas ao MLT, o que fez com que a partir de 2021 o Estado começasse um processo de retirada dessas pessoas, com o objetivo de realocá-las nas áreas de direito.

“Só que as lideranças do movimento deles não têm interesse no desenvolvimento da região, querem mais que a área sirva a interesses personalistas. Eles então instruíram as pessoas a venderem, ou eles próprios, os dirigentes do movimento, venderam essas áreas. Comercializaram, arrendaram, fizeram várias coisas com as áreas que seriam nossas, ocupando ilegalmente nosso território. Tem anúncio de terreno até no Facebook. E assim, temos vivido esse forte conflito nos últimos anos. Ficamos expostos a essa violência”, concluiu o morador.

Desfecho à vista? Pra quando?

Ordens de reintegração de posse contra o grupo apontado como invasor já foram emitidas semanas atrás. Enquanto não são cumpridas, o MLT teme o crescimento das tensões e a escalada de episódios de violência. O grupo rival, apoiado pela Defensoria Pública, paralisou as ordens de reintegração de posse nos últimos dias de agosto e agora a disputa não tem mais data para ganhar um desfecho.

“Estamos numa situação que não sabemos mais o que fazer. A reintegração de posse dos invasores está para ser executada e vários setores do Estado estão nessa demora para fazer o que o juiz determinou. Enquanto isso as famílias estão correndo perigo. Passa a semana e o Estado sem notificar, sem aparecer, deixando a gente no escuro”, desabafou o morador entrevistado.

A impressão do movimento é que a liberação desses terrenos prometidos no acordo derradeiro encerraria a fase mais crítica da luta pela terra e permitiria o desenvolvimento das atividades no território já regularizado.


Protesto das famílias do MLT em Salvador, pedindo agilidade do Estado da Bahia na resolução do processo de assentamento da Baixa Verde. Créditos:  Acervo/MLT

“O Estado poderia despejar os invasores que estavam no nosso território, alguns iam ser despejados definitivamente porque não faziam parte do processo e outros iam só ser realocados para seus lotes de direito. Mas enquanto o Estado não executa essa reintegração de posse, nossas famílias ficam à mercê da violência, da insegurança alimentar, da falta de moradia e de trabalho. Não existe conflito aqui. Existe um grupo que demandou uma área ao Estado para assentar suas famílias em 2008 e teve sua área invadida em 2010. Nós nunca fizemos nada com eles, nunca. Depois que dividiram a área, até área nossa com documento eles invadiram. Não existe conflito, existe um grupo atacando sistematicamente. O MLT é vítima da invasão e o Estado se esconde atrás do discurso de conflito entre movimentos pra não atuar, e isso tem gerado mais violência contra o povo do MLT”, protesta o morador.

Em reunião com o MLT, a Superintendência de Desenvolvimento Agrário (SDA) teria expressado que não tem interesse de executar a decisão judicial, o que foi interpretado pelo movimento como a suspeita de que podem existir forças dentro do Estado favoráveis aos chamados invasores. “Governador, cadê o assentamento das 61 famílias do MLT?”, diz um cartaz levado pelo movimento a uma manifestação em Salvador durante uma das reuniões. Para o entrevistado, essa é “a pergunta que não quer calar”.

Ele explica: “Ocupamos a terra primeiro, provamos que ela devia ser destinada à reforma agrária, fizemos a demanda seguindo todo o rito jurídico, ganhamos e ainda não fomos assentados”.


Protesto das famílias do MLT em Salvador. Famílias perguntam ao governador: “Cadê o assentamento?”. Créditos:  Acervo/MLT

“As acusações são infundadas”, diz o STTR-Fetag

Aílton Lisboa, conhecido como Tico, é secretário de finanças e patrimônio do STTR(Sindicato dos Trabalhadores e Florestais) de Eunápolis, ligado à Fetag-BA. Ele reuniu dois homens – Mauri de Fátima Valter, o Mauro, que fez parte do MLT, e Berg Silva Santos - ambos oriundos da primeira ocupação do local. Juntos, responderam aos questionamentos da reportagem.

Lisboa nega as denúncias acerca dos episódios de violência. Diz que os tiros podem ser os próprios membros do MLT fazendo caçadas e que só a polícia pode confirmar tais episódios – também afirma que há histórico de porte de armas e contravenções no acampamento do movimento que os acusa. “Eu desconheço, para mim é novidade”, disse. Mauro, por sua vez, diz que entre as famílias do MLT há dois CACs e que o grupo costuma “acusar os outros daquilo que faz”.

A seguir, o dirigente explica a ocupação do território pelo seu movimento. Ele diz que a área não foi originalmente ocupada pelo MLT, mas indicada pela própria Fetag. Lisboa diz que o MPE descobriu que a área era devoluta do Estado e que a partir daí, com a chegada do desembargador agrário em Eunápolis, os movimentos sociais foram envolvidos na disputa: STTR-Fetag, MLT e MST.

“A área foi ocupada a partir de uma reintegração de posse de área urbana da Veracel que foi ocupada por movimento sem-teto. Com o despejo o povo foi para essa área rural, sem bandeira nenhuma. Na época, o presidente do STTR não tinha interesse em acompanhar aquela ocupação, senão teria tido a bandeira da Fetag. O MLT entrou depois”, afirma Lisboa, que completa a seguir.

“Não existe essa história de ocupação irregular e de pessoas da Fetag invadindo o local. Quem está lá, sempre esteve lá. O problema é que a liderança do MLT acha que é dona do território. Quando alguém rompe com eles, fazem uma suposta assembleia, com uma suposta maioria, e tentam decidir a vida das pessoas de forma sumária, sem dar direito à ampla defesa, e isso já gerou muitas ações judiciais”.

O sindicalista nega que a chegada dos trabalhadores tenha sido influenciada pela Veracel. “Isso não tem lógica, nem fundamento”, afirma. “A área coletiva deles, e aproveito para fazer uma denúncia também, é usada por terceiros. É arrendada por fazendeiros da região, que pagaram o arrendamento ao líder do MLT, que sobrevive disso. Além disso, duas áreas que o governo do Estado retirou famílias da Fetag e assentou as do MLT estão lá cercadas e, ao invés de produzir culturas de ciclo curto, hoje tem gado. Porque está arrendada a donos de gado da região”, afirma Tico Lisboa, que qualifica as acusações do MLT como “uma versão fantasiosa e cinematográfica”.

“Tem dono de loja de móveis que tem lote lá para passar final de semana, tem três lotes contínuos que são de uma família da agroindústria. O filho de uma liderança também vendeu lote”, completa.

Aílton também falou sobre os acordos para apaziguar a região, que nunca teriam ocorrido. Segundo a sua versão foi o próprio STTR quem fez a proposição, por volta de 2015, a fim de dividir o terreno proporcionalmente às famílias. Ele afirma que naquele momento o MLT ocupava apenas de 30% a 40% da área. “O MLT não aceitou, então não teve acordo”.

“A intenção deles era assentar só as famílias do MLT, fazendo manipulação junto com governo do Estado e deixar as famílias da Fetag fora. E quando alguém rompia com eles, tentavam tirar essa pessoa da lista”, completa.

Ele afirma que cerca de 70% das famílias que estão hoje com a Fetag já estiveram com o MLT e própria presença de Mauro servirá como uma comprovação daquilo que diz. O trabalhador narra como foi seu rompimento com o MLT. Insatisfeito que o movimento estaria arrendando parte das terras e associando a questão do trabalho coletivo com possível oportunismo das lideranças, ele saiu do movimento, foi para um canto da fazenda, e reuniu outras famílias insatisfeitas. Montada a dissidência, assumiram a bandeira da Fetag posteriormente por terem recebido o apoio da organização. “Não via retorno nisso de trabalhar no lote coletivo”, explicou Mauro. “Estou lá desde 2008 e quem botou eles lá fui eu”, completou.

Tico Lisboa também acusa o MLT de ter promovido a degradação ambiental, matando nascentes com a criação de gado e a extração de cascalho. Pondera que a antiga indústria da celulose desmatava muito, mas acusa o movimento de ter sido aprovado num edital de recuperação ambiental com o qual não avançou em termos práticos. Por isso, teria se aproximado da Teia dos Povos. Berg então entra na conversa afirmando que os agricultores do MLT não estariam interessados no projeto de recuperação de nascentes, o que fez o movimento transformá-lo num programa direcionados a jovens e adolescentes. 

E a reforma agrária?

Lisboa fez mais acusações sobre pessoas sem perfil para reforma agrária que estariam de posse de lotes oriundos do MLT. Mas para além do desentendimento, MLT e STTR-Fetag concordam com uma coisa, cada um à sua maneira: a raiz dos problemas está na inoperância do Estado da Bahia em trabalhar em prol de um acordo que consiga colocar um ponto final às tensões na região e assentar todas as famílias. Terras não faltam.

“Eu só lamento que setores do governo do Estado da Bahia, que é um governo do PT, nosso, que ajudamos a eleger, tenha lideranças que são verdadeiros lobos em pele de cordeiro. Lá em Brasília dão discursos hipócritas e assinam documentos e projetos defendendo o Despejo Zero, enquanto aqui na Bahia, entram com ação, através do governo, o que é uma vergonha, para dar despejo em pais de família, em pessoas que estão trabalhando na terra. Inclusive, semanas atrás morreu uma senhora lá de câncer e, por isso, as reintegrações de posse foram paralisadas. A Justiça entendeu que isso seria uma injustiça e a Defensoria Pública do Estado em Eunápolis tomou a dianteira do processo, desmoralizando o governo do Estado. Fui eleito no sindicato para defender os trabalhadores, não o governo”, finaliza Lisboa.

Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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