Correio da Cidadania

Porto Alegre entre as enchentes e as eleições: “há uma disputa pelo modelo de reconstrução”

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Karen Santos - YouTube
“Capitalismo de desastre”. A expressão já foi utilizada em outros momentos mundo afora, em especial em contextos de guerra ou catástrofes climáticas, como a que se abateu sobre a capital gaúcha. Para a vereadora Karen Santos (PSOL), que tenta renovar seu mandato em outubro após ter sido a mais votada em 2020, a cidade está diante de uma disputa em torno de duas possibilidades de se reconstruir: uma pautada nos dogmas liberais e os conluios de sua classe política com empresários; a outra através do prestígio a instituições públicas e seu pessoal com formação adequada a cada área.

“Utilizar a mesma assessoria que deu suporte na tragédia do Katrina nos EUA é sinal de que há um setor do capital que olha para essas situações também quanto uma forma de disputar mercado, um capitalismo de desastre. E dentro desta lógica de prestígio do capital privado, de tratar tudo como mercadoria e em nome do lucro, fazem parcerias de reconstrução com poderes públicos”, critica.

Sua análise vai de encontro à do engenheiro Vicente Rauber, ex-diretor do Departamento de Esgotos Pluviais, que considerou praticamente um deboche da prefeitura de Sebastião Melo a contratação de consultoria holandesa, que chegou à conclusão de que a cidade deve usar diques para conter as águas, solução há décadas implantada pelo poder público local e sugerida por especialistas diversos, inclusive da Universidade.

Para Karen Santos, fica patente que mesmo diante de tamanho desastre o foco de gestores como Sebastião Melo é favorecer aliados e, consequentemente, colher vantagens políticas. “Nessa lógica de mercado que gere a coisa pública, dentro do Estado neoliberal, Estado de negócios, faz muito mais sentido fazer a contratação dessas consultorias privadas. O dinheiro circula entre os mesmos e se fortalece esse campo também político, que olha para a cidade enquanto uma mercadoria. Não é para garantir a resolução dos problemas de forma justa e eficaz”.

Além disso, o próprio ritmo de trabalho e solução das sequelas da enchente é motivo para críticas. Presente em diversos protestos e ativismos comunitários, Karen Santos é testemunha privilegiada dos resultados concretos da gestão de Sebastião Melo. “É uma reconstrução focada nos problemas pontuais e muito burocratizada. A política de abrigagem é de terceirização de serviços para empresas sem know-how na sua execução, e temos muita denúncia em relação à qualidade da alimentação, ao frio, à falta de calefação”.

Em suas propostas, a jovem vereadora defende a retomada do papel do estado e seus recursos na reorganização da administração pública e enfoque direto em dramas sociais, como a questão da moradia, ampliada pela catástrofe. Ela alerta que tais ideias não podem ser propagandeadas apenas em período eleitoral, mas as eleições municipais são oportunidade de começar a reconstruir as bases de um estado de bem estar social em contexto de emergência climática. Até porque nada indica que novos desastres não ocorrerão.

“A situação expôs a realidade de políticas neoliberais, mas o governo e em especial essa lógica não vão cair de maduro. A burguesia sempre pode conseguir novas opções políticas. O quadro é incerto e temos oportunidade de fazer uma política diferente, realmente convocar o povo para transformar a cidade”.

Confira a entrevista completa com Karen Santos.


Correio da Cidadania: O que você espera das eleições municipais desse ano? Como é que é o clima da cidade diante de tudo que aconteceu?

Karen Santos: O clima na cidade não é de eleição. As pessoas estão de luto, em especial na parte da cidade que sofreu diretamente os impactos. Outra parte da cidade que não sofreu diretamente os impactos vive um clima de tentativa de volta à normalidade, porém, uma normalidade ainda mais precária, porque as pessoas estão sem acesso ao metrô, quem mora na região metropolitana enfrenta o sucateamento do transporte coletivo por ônibus...

Há uma indignação e uma revolta grande da população, ao mesmo tempo em que não há alternativas em relação a grandes manifestações que ajudem a colocar em xeque tais políticas. As manifestações são muito localizadas. Penso que todo esse clima de desesperança vai influenciar nas eleições, pois já vem influenciando negativamente a atual prefeitura. O governo Melo era bem avaliado até o momento de calamidade, onde ficaram explícitas as decisões e as opções de gestão, não só de Melo, mas nos últimos 20 anos. As apostas que foram feitas numa gestão de Estado, hoje inoperante para essas grandes demandas, se expressa num derretimento da gestão Melo. Ao mesmo tempo, não dá para dizer que há um encantamento em relação à chapa de esquerda que está sendo apresentada pelo nosso pessoal em composição com o PT.

É uma velha discussão, a campanha não é só em período eleitoral. Devemos mostrar como a esquerda é útil para as pessoas, porque as pessoas sabem dos seus problemas, não precisam da esquerda para fazer as suas mobilizações. Elas precisam da esquerda para ajudar a desenvolver essa mobilização e uma consciência política, para depois impor derrotas à burguesia local, que está muito bem localizada dentro do governo e vê os direitos enquanto uma mercadoria.

Correio da Cidadania: Que novidades você espera ver aparecendo nas possibilidades de governos e seus programas, a exemplo da sua candidatura à vereadora?

Karen Santos: A luta é muito nítida, está tudo explícito: estamos entre a garantia de direitos e a mercadorização da vida. Ao mesmo tempo, isso não é debatido, não há uma politização no sentido da fundamentação da tragédia que vivemos.

É uma campanha difícil de sair desse lugar eleitoreiro, não cair no lugar das promessas vazias, porque vai demandar muita luta política e pressão para conseguir fazer as mudanças estruturais que queremos e a população demanda. Vai ter reação dos setores da burguesia, devemos entender o que é toda esta crise e sua expressão através da luta de classes. Eu acredito que seja essa a tarefa do próximo período.

A situação expôs a realidade de políticas neoliberais, mas o governo e em especial essa lógica não vão cair de maduro. A burguesia sempre pode conseguir novas opções políticas. O quadro é incerto e temos oportunidade de fazer uma política diferente, realmente convocar o povo para transformar a cidade.

Correio da Cidadania: O que sua candidatura defende de mais essencial na gestão da cidade, inclusive no sentido de gerar esse mencionado encantamento pela participação política?

Karen Santos: Defendo emprego digno, salários justos, educação, saúde e transporte públicos e de qualidade, tarifa zero no transporte já! Defendo o DMAE (Departamento Municipal de Águas do Esgoto) público e de qualidade. Que todos tenham direito a uma moradia digna, e nesse sentido deve se destinar os imóveis vazios de Porto Alegre e retirar imediatamente as pessoas da rua, dos abrigos, e das casas de familiares. Batalho por respeito, igualdade e oportunidades. Combato o racismo, o machismo, a LGBTfobia, a violência e a intolerância. Sem falsas promessas, me coloco sempre no apoio às comunidades, fortalecendo a união e a luta popular. O povo tem a força.

Correio da Cidadania: Como está Porto Alegre quatro meses após a catástrofe das chuvas de final de abril? Que balanço se pode fazer desta primeira fase da reconstrução?

Karen Santos: Todos os problemas que já denunciávamos antes da situação das enchentes se potencializaram. Os problemas na rede de educação, a falta de atendimento, a demora de marcação de consultas médicas na saúde, o transporte coletivo por ônibus. Temos uma média de seis veículos que estragam por dia. Agora, problemas novos oriundos da enchente, que é a necessidade de política de habitação, de abrigamento, a manutenção dos sistemas de drenagem, de diques, que já se acumulavam no período anterior.

É uma reconstrução focada nos problemas pontuais e muito burocratizada. A política de abrigagem é de terceirização de serviços para empresas sem know-how na sua execução, e temos muita denúncia em relação à qualidade da alimentação, ao frio, à falta de calefação. Fui em um abrigo constituído pelo governo estadual em conjunto com a Fecomércio, que tem parceria com a ONU, justamente por uma denúncia de muitos abrigados em relação às condições de temperatura, de abrigagem, de espaço.

Portanto, a política de assistência social também é um reflexo de uma política neoliberal, de terceirização. Porto Alegre é uma capital que diminuiu sua população desde o último censo e teve um boom na expansão da especulação imobiliária, de construção de unidades domiciliares (casa e principalmente condomínios), e ao mesmo tempo viu sua população de rua aumentar.

Temos 110 mil imóveis vazios na nossa cidade e, ao mesmo tempo, pessoas que ainda estão morando na BR, a exemplo de parte da população das ilhas, pessoas ainda abrigadas em estadia solidária, em casa de amigos, em casa de parentes e um setor mais empobrecido que se submete aos abrigos.

A política de habitação nesse período pós-enchentes ainda é uma incógnita, tanto por responsabilidade do município como do estado e também do governo federal.

Além disso, é importante a discussão em relação à manutenção dos diques e do sistema de drenagem da nossa cidade. O DMAE, que incorporou as funções do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), segue com uma grande modificação no sentido da sua gestão original. Não houve um chamado, uma convocação para reestruturação do departamento, responsável pela manutenção das águas e saneamento. Houve as manutenções, mas uma reversão na precarização e no sucateamento do serviço.

Correio da Cidadania: Como avalia o desempenho da prefeitura no processo de desalagamento, que segundo especialistas poderia ter sido realizado muito mais rapidamente a partir da intervenção com mergulhadores e equipamentos das bombas que escoam as águas da cidade instaladas há cerca de 50 anos?

Karen Santos: É uma prefeitura que tem compromisso com o Estado mínimo, de modo que qualquer tipo de investimento, como o DMAE, acaba entrando em contradição com o sentido de gestão que Sebastião Melo expressa.

Há muita demora, há muita paralisia, há muita concentração de informação e de poder de decisão. Nós vereadores usamos mecanismos de emendas impositivas para fazer a gestão da crise. É um governo de forte compromisso com a ideia de água enquanto uma commodity, o sistema de drenagem e saneamento como um braço de alguma empresa receptora da concessão do serviço, um governo que tem um compromisso tão forte com essa pequena burguesia local que eles não conseguem ter uma ação política rápida sequer em tais momentos.

A cidade demanda contratação, demanda licitação, e para isso é necessária uma máquina pública. E percebo que não existe dentro da máquina pública do município de Porto Alegre corpo técnico suficiente para dar conta dessas operações com transparência, dentro da lei, para que não aconteça como ocorreu com a Secretaria de Educação, que abriu mão de licitação e houve toda uma operação conjunta de corrupção que culminou na prisão da secretária.

Para se ter processos legais, burocráticos, no sentido da transparência, da eficiência, do controle público, precisamos de uma máquina pública atuante. E não tem. É uma máquina pública composta por cargos comissionados, enxuta e sucateada. Nesses momentos, me lembro de janeiro, quando o prefeito Melo solicitou, via Twitter, ajuda a pessoas que tivessem motosserra na manutenção da cidade depois de um ciclone que destruiu várias árvores, que por sua vez caíram em cima da rede de energia elétrica e geraram vários apagões. Demorou mais de dez dias para voltar a energia elétrica para alguns bairros. Isso mostra uma falência do município e do Estado enquanto coisa pública, um Estado incapaz de lidar com uma crise climática cada vez mais aguda e de eventos extremos mais frequentes.

Correio da Cidadania: Diversos bairros reclamam ausência do poder público em questões como coleta de lixo e saneamento. Como tem sido essa retomada da vida nos bairros?

Karen Santos: Trata-se de outra expressão política de abandono. Nosso mandato atuou para encaminhar a contratação de equipes especializadas nas limpezas, com materiais e equipamentos para ajudar a população na retomada da vida em bairros como Vila Farrapos, Vila Liberdade, Nova Brasília, bairros da zona sul, como Guarujá, com muita dificuldade de se reerguer pelas suas próprias mãos.

Não à toa apareceu a palavra de ordem “povo pelo povo”, para mostrar a negligência e abandono do poder público. Obviamente, o empresariado também se utilizou do mote para se autopromover. Porém, sabemos bem os limites do capital privado nessas operações, que são caras e não dão lucro imediato.

Correio da Cidadania: E tampouco a prefeitura, dominada por ideologia empresarial, move recursos para agilizar a retomada da vida normal.

Karen Santos: Não houve contratação de frentes de trabalho que seriam necessárias para fazer a zeladoria da cidade e facilitar a vida das pessoas nos seus bairros. Famílias tiveram de voltar inúmeras vezes para casa a fim de começar a higienização dos seus territórios. Falo de mães, mulheres solteiras, pessoas idosas, pessoas com deficiências... Já os bairros que tiveram alguma capacidade de organização e de mobilização estão conseguindo avançar nas suas pautas. Eu digo isso porque, por exemplo, no bairro Guarujá, estive numa comissão da Câmara que foi dentro do território e um dos relatos da moradora foi que depois do protesto houve uma agenda direta com a prefeitura, que fez uma contratação de uma equipe para dar conta do apoio e suporte das empresas nas casas. É uma pauta que deveria ser uma política pública mais ampla.

As comunidades vão adquirindo consciência do seu protagonismo político na mobilização, na cobrança. Também acompanho a rotina de moradores das ilhas, que já viveram três alagamentos desde setembro de 2023. Muitas pessoas querem sair daquele lugar por ser uma área de risco e de preservação ambiental e agora estão se mobilizando. Houve protestos e trancamento da BR-116, o que ampliou a visibilidade do abandono de uma das áreas mais empobrecidas da cidade, onde mora uma população que tem ali uma demanda urgente e distinta. As ilhas, diferentemente dos outros bairros onde houve colapso do sistema de drenagem, inundam com uma chuva de menor densidade daquela do final de abril. São áreas de risco e há urgência de reforma urbana em favor de seus moradores.

Correio da Cidadania: Você criticou a contratação de consultoria holandesa para definir ações nas ilhas de Porto Alegre, o que conflui com outras críticas, inclusive ao governo estadual, no mesmo sentido. Há um desprestígio tácito às instituições públicas da cidade e do estado? Por quê?

Karen Santos: Há um interesse privado na reconstrução de cidades que passaram por tragédias como a nossa. E, como eu coloquei, tragédias inerentes de uma crise climática, expressão também da crise do capitalismo, e que estão se dando de uma forma mais incidente, mais potente, mais aguda.

Por exemplo, utilizar a mesma assessoria que deu suporte na tragédia do Katrina nos EUA é sinal de que há um setor do capital que olha para essas situações também quanto uma forma de disputar mercado, um capitalismo de desastre. E dentro desta lógica de prestígio do capital privado, de tratar tudo como mercadoria e em nome do lucro, fazem parcerias de reconstrução com poderes públicos.

Nessa lógica de mercado que gere a coisa pública, dentro do Estado neoliberal, Estado de negócios, faz muito mais sentido fazer a contratação dessas consultorias privadas. O dinheiro circula entre os mesmos e se fortalece esse campo também político, que olha para a cidade enquanto uma mercadoria. Não é para garantir a resolução dos problemas de forma justa e eficaz.

Por exemplo, os imóveis vazios que estão hoje à disposição do município, imóveis públicos, não vou nem dizer dos privados, pelo Estatuto da Cidade e a Constituição deveriam prioritariamente ser destinados à moradia. Mas simplesmente não se pensa nesses imóveis enquanto principal política de inclusão de pessoas impactadas por um modelo de cidade que as impede de morar no centro e em estruturas adequadas. E não falo de estruturas pobres para os pobres, como criticamos muitas vezes nos programas de habitação populares que são feitos na periferia, com material mais barato e toda uma embocadura que contribui para a segregação da nossa cidade.

Porto Alegre é a cidade mais segregada racialmente do Brasil e isso é fruto dessas políticas, desde a última enchente, em 1941, que vem retirando o povo pobre, por consequência o povo preto, de áreas privilegiadas da cidade. Essas consultorias vêm com uma visão de mundo que corrobora a segregação e olha a cidade também como um espaço de investimento de capitais. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que tem know-how, bons pesquisadores, cientistas, técnicos, profissionais que pensam a cidade numa lógica inclusiva, pensam o acesso à cidade enquanto um direito, acabam fora da reconstrução em razão de toda essa perspectiva aqui exposta.

Portanto, estamos diante de uma disputa da concepção da reconstrução.

Correio da Cidadania: Outro tema recente da cidade é a CPI da Equatorial, instalada antes das chuvas. Por que houve essa investigação e qual seu balanço final?

Karen Santos: A CPI na Câmara foi utilizada muito mais enquanto um instrumento de abafamento, e também de coesão da base do governo para evitar que houvesse uma real investigação, que levasse à punição e responsabilização daqueles que se beneficiaram do desmonte da empresa e não atuaram nas panes de janeiro.

Foi uma CPI dirigida pelas representações do governo municipal. A empresa foi negligente, não se apresentava aos convites e convocações feitas pela Câmara. Uma CPI chapa branca, que não conseguiu apontar profundamente uma alternativa para o desmonte que a empresa sofreu no período pré-privatização. Agora, privatizada pela Equatorial, temos uma das empresas fornecedoras de energia elétrica com uma das piores avaliações no ranking da ANEEL.

De toda forma, não conseguimos ter força para fazer da CPI um instrumento de denúncia e fiscalização, e assim não se conseguiu cumprir um papel de apontar um plano de reorganização da empresa com prazos. Porto Alegre é a principal cliente da empresa e deveria ter imposto um pacote de ações com prazos a serem cumpridos pela empresa, em conformidade com demandas apresentadas por bairros e movimentos comunitários, sob pena de cassação da concessão.

Com a atual composição da câmara municipal, e mais as enchentes a partir de abril e maio, não foi possível dar outro caráter à CPI.


Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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