Correio da Cidadania

“O século 21 será revolucionário, para bem ou mal”

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O Brasil chega ao fim do ano ainda a carregar dilemas, contradições e enigmas acumulados nos últimos anos, onde o golpismo oligárquico não sai de cena. Antes do atentado do bolsonarista que cometeu suicídio na frente do STF, um clima de cerco ao governo se formava, inclusive com indícios de que uma anistia era fervida em fogo baixo. Eleições municipais que afirmaram uma política institucional dominada pelo chamado centrão e uma guerra ideológica pelo orçamento de 2025 são outros fatores a tensionar uma sociedade que, paradoxalmente, surfa em melhores números econômicos.

No entanto, como se busca refletir na longa entrevista do sociólogo e ex-parlamentar Renato Cinco, há um profundo desconforto nas bases sociais e é evidente sua conexão com a crise estrutural do capital, que implode as bases do bem estar social que caracterizaram as democracias mais bem sucedidas no século 20. Acima de tudo isso, paira o inexorável espectro do colapso ambiental.

“O capital não vai poder resolver a sua crise estrutural de hoje como resolveu a do pré-guerras, que se resolveu exatamente através das guerras. A Primeira e Segunda Guerra Mundial pavimentaram o caminho para a Era de Ouro. E veja só, no final dos anos 60, no início dos anos 70, já estava entrando em crise de novo. Olha o que precisou ser feito no século 20 para tirar o capital da crise. Aquela barbárie toda, no final das contas, garantiu menos de 30 anos de Era de Ouro para o capitalismo. E o capital não pode mais dar essa resposta. Um dos aspectos que explica a escalada bélica do planeta é esta crise estrutural”.

No plano brasileiro, tal polarização, que não se dá entre petistas e bolsonaristas, se manifesta de forma clara na disputa pelos rumos do país. Uma polarização que objetivamente opõe capital e trabalho. E tem a natureza no meio. Para Renato Cinco, o tempo das conciliações possíveis está por um fio. “Certamente o PT gostaria de governar diferente. O problema é que o programa político que eles construíram ao longo das décadas é inexequível. A ideia de domesticar o capitalismo na periferia do sistema nunca foi viável. E conforme avançamos na crise estrutural do capital, agora cada vez mais clara por estar acompanhada de um colapso ambiental, a margem de manobra fica menor. Não é uma opção política administrar o capitalismo fora do neoliberalismo, e de um neoliberalismo cada vez mais radical”, analisou.

Na longa conversa com nossa reportagem, Renato Cinco não se ocupa em acusar limites ideológicos de uma esquerda que governa “dentro da ordem”, pois a seu ver a esquerda dita fora da ordem também perdeu o compasso. “O mais importante do ponto de vista programático, de um ponto de vista radical e não reformista, é reconhecer que hoje não temos um programa para nos contrapor ao atual estágio de desenvolvimento capitalista”.

Isso também explica a onda de popularidade de ideias de direita, que no fim das contas quando postas em prática – a exemplo de governos como Trump em sua primeira presidência, Bolsonaro e Milei – ampliam as mazelas sociais e a violência da sociabilidade regida pelo capitalismo. Assim, paga-se caro pelo vazio ideológico dos setores que se pretendem antagônicos ao capital, que não perde tempo em financiar suas ideias “disruptivas”, que nada mais são do que ensaios de ditaduras de novo tipo.

“As ideias precisam de sustentação material para circular na sociedade. A extrema-direita tem uma parcela do grande capital, que já há algum tempo não aposta mais no modelo de dominação estabelecido no pós-guerra. Aposta na ruptura total de compromissos, direitos e limites. E financia coisas como o Brasil Paralelo, que tem uma produção de alto nível, de alta qualidade do ponto de vista técnico, de alta sofisticação na construção dos argumentos”.

Em resumo, no século 21, o colapso ambiental se soma às guerras imperialistas como “parteira da história”. “As instituições e a sociedade, como funcionam hoje, não vão durar. Porém, século revolucionário não significa revolução utópica. Ela pode ser distópica. Seria a tentativa de manter as desigualdades e os privilégios numa sociedade pós-capitalista, porque a economia de mercado, a extração da mais-valia a partir da circulação de mercadorias não vai funcionar no meio do colapso. Assim, só posso imaginar um futuro com algum tipo de neoescravismo, neosservidão, um tipo de exploração do excedente dos sobreviventes, que não seja sequer capitalista”, elabora.

Confira a entrevista completa a seguir.

Correio da Cidadania: De forma que talvez seja paradoxal, mas talvez nem tanto, houve certo refluxo tanto do que se entende por lulismo, ou da esquerda que paira em torno do Lula e do PT, e de outro lado do bolsonarismo e daquelas candidaturas e personalidades que tentaram se colar mais na figura do ex-presidente de extrema direita nas últimas eleições municipais. Nesse sentido, como você observa o quadro político brasileiro, marcado por uma ampla vitória das direitas e mais especificamente do Centrão, em dinâmica diretamente relacionada ao financiamento de emendas parlamentares direto de Brasília, arranjo já verificado nas eleições de 2022?

Renato Cinco: Sobre a eleição, é importante mencionar o aumento das abstenções. O Centrão cresceu, a extrema direita não cresceu como previa, mas cresceu também, e o PT teve uma recuperação em número de prefeituras, mas um decréscimo em relação a 2016. As abstenções, os nulos e os brancos ultrapassaram 30% dos votos em várias cidades do país, um crescimento considerável em relação aos períodos anteriores, em que ficavam em torno de 20%. O dado representa o grande desafio da esquerda, principalmente aquela que se pretenda “fora da ordem” e ausente da Frente Ampla que elegeu o governo. A esquerda da ordem está no jogo eleitoral, tem tempo de TV, fundo partidário para fazer campanha, toda uma estrutura, é hegemônica nos movimentos sociais e populares. A esquerda contra a ordem, apesar de alguns partidos lançarem candidatos e tentarem fazer o mínimo de debate político durante as eleições, está fora do jogo, sem dinheiro, tempo de televisão, fundo partidário.

É muito difícil avaliar, dentro dessa divisão entre esquerdas, a ressonância das pautas e teses da esquerda radical quando ela não consegue se colocar e está incapacitada de se apresentar minimamente para a sociedade. Já o grande problema da esquerda da ordem é justamente o fato de, provavelmente, esse ser o pior momento em muito tempo para se defender a ordem - no Brasil ou em vários outros lugares do mundo. Há uma crise de legitimidade dos regimes, dos Estados, que essa esquerda pós-União Soviética, hegemonizada pelo abandono das teses revolucionárias e pela ideia de reforma, de domesticação do capitalismo, não consegue dialogar com o forte sentimento contra a ordem e o sistema que cresce na população. E como muita gente já percebeu, quem consegue capturar esse sentimento, além das abstenções, é a extrema-direita.

Ainda sobre as eleições, eu tenho dúvidas de qual foi o perfil ideológico desse Centrão. O Centrão é visto como um bloco de partidos fisiológicos e não ideológicos, uma direita pragmática, mas neste pragmatismo também está incluído fazer o discurso de acordo com as demandas, analisar o que a população está pensando, sentindo e tentar reverberar eleitoralmente. Para afinar a análise, devemos ter uma compreensão melhor do quanto o discurso eleitoral do Centrão foi claramente reacionário, conservador ou de extrema-direita nesse último período eleitoral.

De toda forma, a impressão geral que eu tenho é de que essas eleições confirmam a tendência de crise de legitimidade do regime e de ineficácia de uma política de frente ampla para conter o avanço da extrema-direita, seja ela organizada nos seus partidos, seja ela absorvida pelo discurso dos eleitos pelo Centrão. Tenho a impressão de que, no final das contas, pra usar um termo em alta, não há muitas “entregas” do governo à população para estancar o processo de crise de legitimidade.

Quem mora na favela, continua na favela, sem as condições mínimas de moradia digna. Quem tinha emprego precarizado, continua com emprego precarizado. Muitas pessoas que não tinham emprego precarizado, pois ainda contavam com direitos, agora têm emprego precarizado. Aqui, cabe analisar a queda do desemprego e sua relação com a qualidade dos empregos gerados.

Houve um crescimento do emprego, mas com queda da qualidade, crescimento da precarização, do desemprego e da informalidade. Eu acho que essas questões objetivas da qualidade de vida da população incidem muito no espaço que o discurso antissistema tem na sociedade. Uma população feliz, satisfeita, seja em governo de direita ou de esquerda, deixa a oposição diluída. Acredito passar por aí a explicação do estado do bem-estar social nos países da Europa Ocidental, como estratégia de tampão para o crescimento da União Soviética. “Não vai ter revolução aqui, porque está todo mundo bem. Por que vai ter crise? Aqui, a classe trabalhadora vive como nunca viveu na história do capitalismo”.

Correio da Cidadania: O que nunca foi a realidade brasileira.

Renato Cinco: A realidade é que, no auge do lulismo, tivemos aumento no consumo, algum ganho do salário mínimo, mas nunca mudanças substanciais. O cara conseguia comprar a geladeira, mas saía de casa e a vala negra na rua continuava ali. Comprava um ar-condicionado, mas a milícia ou alguma facção do tráfico de drogas tomava o território onde ele mora. Toda essa, vamos dizer assim, decadência, estagnação, incapacidade do país em avançar e, depois, todo o processo de ataque a direitos dos trabalhadores e precarização, que vem pelo menos desde Fernando Henrique, não mudou substancialmente.

Correio da Cidadania: E, mesmo sem fazer as mencionadas entregas e sob avanço do centrão e das oligarquias políticas locais, o governo de Frente Ampla segue a dar sinais de compromisso com os chamados mercados, em notório choque com quaisquer políticas de bem estar social. De certa forma, chega a parecer suicida para o próprio sistema e suas lideranças, porque, de acordo com seu exemplo europeu, não se criam condições reais de pacificação do mal estar nas massas precarizadas e desempregadas.

Renato Cinco: Tenho a impressão de que o Lula gostaria de governar diferente. Certamente o PT gostaria de governar diferente. O problema é que o programa político que eles construíram ao longo das décadas, o que ainda acalenta os sonhos de muitos petistas, é inexequível. A ideia de domesticar o capitalismo na periferia do sistema nunca foi viável. É um equívoco histórico. E conforme avançamos na crise estrutural do capital, agora cada vez mais clara por estar acompanhada de um colapso ambiental, a margem de manobra fica menor.

Não é uma opção política administrar o capitalismo fora do neoliberalismo, e de um neoliberalismo cada vez mais radical. O capital vive uma crise estrutural de tendência à queda da taxa de lucros desde os anos 70, isto é, a recuperação de um ciclo não retorna ao patamar anterior de crescimento da economia. No mundo todo é assim. É como se o capital conseguisse resolver uma crise para imediatamente cair em outra crise ainda pior, sem ter conseguido se recuperar completamente da anterior.

Para responder a isso, o capital precisa ampliar a exploração da força de trabalho e da natureza, o que agrava a questão ambiental. Ele não pode receber menos, precisa de mais. Daí a disputa pelo fundo público entre o capital e o trabalho, o capital não está disposto, como esteve no período áureo dos anos 50, 60, a repetir aquelas fórmulas de conciliação entre as classes. Ele não tem essa capacidade e possibilidade. No final das contas, é o que ocorre globalmente.

Administrar o capitalismo é administrar o neoliberalismo. Aquela ideia de “vamos disputar por dentro o capitalismo para reformá-lo”, hoje se resume a disputar por dentro o neoliberalismo, disputar qual é a dosagem da pílula. Na questão ambiental, a mesma coisa. O capital não pode abrir mão da obsolescência programada da mercadoria, o capital não pode abrir mão de tacar fogo na Amazônia, o capital não pode abrir mão de continuar a explorar combustíveis fósseis.

Diante de toda a crise que nós vivemos, imagina retirar só a obsolescência programada, fazer com que as pessoas troquem de celular a cada 15 anos e não a cada ano e meio. O capital não tem condições de aceitar esses termos. Não é possível administrar um país de economia dependente de um capitalismo em crise econômica estrutural e colapso ambiental. Como se foge de um processo sistemático e crescente de ataque aos direitos dos trabalhadores e da natureza? Não se foge.

Correio da Cidadania: E neste momento pós-eleitoral, o governo não indica mudanças de rumo, o que culminou no anúncio do pacote fiscal feito por Fernando Haddad em 27 de novembro, uma boa representação dessa conciliação que você afirma ser inviável. Tenta taxar ricos e isentar impostos para uma faixa média da população, mas mantém a lógica de austeridade que castiga o andar de baixo. Em suma, mais ataques aos direitos, pioras da qualidade de vida de muita gente, o que parece a senha para se criar mais sentimentos populares “contra o sistema”. Sentimentos que de forma paradoxal estão se convertendo em apoio popular a políticas ainda mais radicalmente capitalistas, que têm tudo para aprofundar as contradições sociais, pois aqueles que supostamente enxergariam o mundo para além do capitalismo não têm propostas de transformação deste mesmo sistema.

Renato Cinco: Sim, diante de uma crise de legitimidade, quem apresenta uma outra ordem hoje? Quem tem tido a capacidade de apresentar um discurso contra a ordem? É justamente quem defende uma ordem capitalista sem limites, sem nenhum tipo de direitos e garantias. Não podemos imaginar, eu pelo menos não imagino, a circulação de ideias como uma coisa que acontece no éter, no ar. As ideias precisam de sustentação material para circular na sociedade. A extrema-direita tem uma parcela do grande capital, que já há algum tempo não aposta mais no modelo de dominação estabelecido no pós-guerra. Aposta na ruptura total de compromissos, direitos e limites. E financia coisas como o Brasil Paralelo, que tem uma produção de alto nível, de alta qualidade do ponto de vista técnico, de alta sofisticação na construção dos argumentos.

Ali, temos uma política quase gramsciana de direita aplicada, a fazer a disputa cultural e ideológica. E é só um exemplo no Brasil e no mundo do quanto esse discurso contra a ordem pela direita tem instrumentos materiais para ser distribuído à população. Enquanto isso, o discurso contra a ordem pela esquerda, além de não ter, evidentemente, o financiamento do capital, não tem também o mesmo acesso aos fundos públicos utilizados na política, fundo eleitoral, fundo partidário, tempo de TV, etc. É meio perverso analisar por quais ideias a população realmente se sente atraída ou não quando não existe paridade de armas na disputa dessas ideias.

E não ter essa paridade de armas me parece que foi uma das preocupações centrais do capital no mundo inteiro ao longo do século 20. Desequilibrar cada vez mais. O czar da Rússia dependia de uma série de oradores, de pessoas que iam fazer pessoalmente a disputa ideológica na sociedade, como padres, professores, juízes etc. Tinha um jornal impresso de baixa qualidade para distribuir para uma população quase toda analfabeta. O Estado não era tão potente, assim como os aparelhos ideológicos da burguesia, inclusive privados. De lá para cá, olha o quanto se sofisticou. No caso da rádio e da televisão, é mais fácil perceber o monopólio do discurso. A própria imprensa escrita passou a ter mais significado porque as populações passaram a ser mais alfabetizadas. Tal disparidade de armas cresceu ao longo do século 20 e passou a ser avassaladora com a capitulação da esquerda no pós-União Soviética.

Lembro de discussões dos anos 90 sobre o domínio do pensamento único neoliberal. E o que representava o domínio desse pensamento único não era a dominação pelos partidos neoliberais. Já se tinha tido Reagan nos Estados Unidos, Pinochet no Chile, Margaret Thatcher na Inglaterra, mas o pensamento único fica evidente quando as oposições à esquerda assumem e mantêm o mesmo discurso neoliberal. É quando Bill Clinton substitui o Bush, é quando Tony Blair substitui a Margaret Thatcher, é quando a Bachelet substitui senão o Pinochet, o Piñera, primeiro presidente eleito do Chile pós-ditadura, e tudo segue igual

Nesse momento passamos a ficar sem sequer um discurso socialdemocrata de fato. E, no Brasil, é a partir do governo Lula, que seria um projeto político de administração do capital pela esquerda, um projeto socialdemocrata, que se abraça o neoliberalismo e passamos de vez ao domínio do pensamento único.

Correio da Cidadania: Isso não promove um perigoso rebaixamento ideológico?

Renato Cinco: Algumas coisas são muito difíceis do ponto de vista conceitual. Por exemplo, muita gente defende os governos do PT falando em Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida. Dá trabalho explicar que são duas políticas neoliberais. São políticas assistenciais, do jeito que o neoliberalismo formata, de assistência pontual para os mais pobres. O programa socialdemocrata nunca foi esse. O programa socialdemocrata sempre foi a universalização de direitos, financiados por tributação progressiva. O Brasil mantém a tributação regressiva e coloca ali um percentual pequeno do orçamento, bem pequeno, para fazer tais políticas.

No caso do Minha Casa Minha Vida é ainda mais grave, porque é um programa de construção de imóveis que interessa muito mais aos empreiteiros que querem construir imóveis do que as pessoas que não têm moradia, já que há mais imóveis fechados no país do que moradia a construir para cobrir o déficit habitacional. Bastava o governo aplicar a lei sobre a função social da propriedade que resolveria a questão da moradia, ao invés de fingir que está resolvendo, porque não resolveu e, no final das contas, está financiando as empreiteiras.

Correio da Cidadania: Como sair dessa disjuntiva onde a esquerda não tem mais imaginário sequer socialdemocrata, trocou a própria Constituição de 88, aqui no caso do Brasil, pela política focalizada, assistencial, que de certa forma está sendo dramaticamente radicalizada pela própria direita e pelo centrão através do mecanismo das emendas, que fortalece muito suas vantagens políticas e a mencionada disparidade de armas (isso ao passo em que nem a esquerda fora da ordem articula um discurso mais coeso de crítica ao capital e seu metabolismo, conforme descrito aqui)? Como fazer isso num mundo cujas relações sociais e suas dinâmicas reprodutivas parecem ter se acelerado com a dinâmica das redes sociais digitais, um fluxo mais frenético e caótico de informações e discursos, talvez a ampliar a sensação de ansiedade e mal estar nas pessoas?

Renato Cinco: Com certeza é urgente voltar a falar em projetos com sentido socialista e anticapitalista, a despeito de toda a conjuntura descrita na pergunta. O Luiz Marques, autor de Capitalismo e Colapso Ambiental, em algum momento do livro diz que a Revolução saiu pela porta dos fundos da história no final do século 20, com a queda do leste europeu. Mas vai retornar pela porta da frente por conta do colapso ambiental. O século 21 será um século revolucionário. Como a camarada Plínio de Arruda Sampaio Júnior sempre repete, política é programa. Precisamos pensar em termos programáticos. O mais importante do ponto de vista programático, de um ponto de vista radical e não reformista, é reconhecer que hoje não temos um programa para nos contrapor ao atual estágio de desenvolvimento capitalista. Digo do ponto de vista de uma esquerda revolucionária porque penso que os supostos socialdemocratas e reformistas não têm mais nada para fazer exceto acumular mais derrotas históricas, ainda que diluídas em algumas vitórias eleitorais.

Dito isso, não temos programa. Não temos programa porque é uma fase que tem algo de inédito e de absolutamente impactante: o colapso ambiental. Penso que, do ponto de vista programático, o primeiro desafio é entender o colapso ambiental e seus significados. Para onde está caminhando a humanidade? É muito grave. Acho engraçado que a extrema-direita fica atacando a ONU ou ONGs, como se elas estivessem inventando o problema ambiental. A crítica que devemos fazer à ONU ou ONGs é que elas amenizam este problema. Tentam contribuir com o capital para dar a impressão à sociedade de que o programa do capital ainda é minimamente viável.

Qual o programa do capital para o colapso ambiental? É um programa, na verdade, para salvar o capitalismo, na melhor das hipóteses, não as vidas das pessoas. Como tomar medidas ambientais compatíveis com o desenvolvimento, o crescimento e a preservação ambiental? Inventam crédito de carbono, transição energética, ideias de economia circular, um monte de medidas para criar a ilusão de que é possível o capitalismo verde.

Eduardo Sá Barreto, em texto de 2023, afirmou que ficou muito evidente que as coisas estavam acontecendo de maneira diferente do previsto quando o mundo ultrapassou 1,5 grau de aumento da temperatura desde a revolução industrial. Pode ser que essa ultrapassagem não seja definitiva, mas já são 17 meses seguidos com 1,5 grau acima da média pré-industrial. Se entrar no site da ONU agora, veremos os desafios para conseguir evitar 1,5 grau em 2050. É um negócio indescritível. Os grandes climatologistas do planeta estão dizendo que já é impossível evitar 3 graus em 2050. E aí entramos no aspecto do diagnóstico, fundamental para avaliar qualquer coisa. Para evitar o aquecimento de dois graus, a atmosfera teria que ter, no máximo, 405 partículas por milhão (ppm) de CO2. A partir de 405 ppm, depois de alguns anos ela vai aquecer e chegar a dois graus. Ano passado, em 2023, a gente alcançou 421 ppm. O James Henson, que é um dos maiores climatologistas do planeta, publicou, no final do ano passado, uma projeção de 2 graus até 2034. Ele fala que já encomendamos 3 graus até 2050. Isso é de uma gravidade inominável.

De certa maneira, confirma as últimas projeções do Limite do Crescimento, projeto iniciado em 1972. De lá para cá, a cada cinco, sete anos, eles fazem atualizações partindo do seguinte princípio, que também é muito importante: nenhum organismo pode crescer infinitamente se a base material que o sustenta é finita. A discussão nunca foi se o capitalismo vai entrar em colapso. É quando o capitalismo vai entrar em colapso. Para a realização dos lucros, que é o objetivo do investimento do capital, é necessária uma economia que cresça permanentemente, infinitamente. O nosso planeta é finito. Ele não vai poder sustentar o crescimento do capitalismo eternamente. Lá em 1972, eles eram otimistas, de certa maneira. Tinham aquela visão de que a humanidade poderia controlar a natureza, queriam dar os alertas para que o capitalismo conseguisse se adaptar e evitar o colapso ou a sociedade pudesse adaptar o capitalismo.

A última atualização do Limite do Crescimento, do ano passado, indica que veremos o início do colapso da agropecuária, uma queda vertiginosa e quase ininterrupta até o final do século da nossa capacidade de produção, que começa em 2024. Na avaliação deles, isso já começou. Para 2025, 2026, vem o início do colapso da produção industrial. Mantidas as tendências demográficas atuais (com leves variações), teríamos mais ou menos 11 bilhões de habitantes em 2100. A projeção do limite do crescimento é de chegar em 2100 com 3 bilhões de habitantes. Estão faltando 8 bilhões de pessoas aí. O que aconteceu? Uma parte dessas pessoas morreu precocemente, outra parte deixou de nascer. Corrobora a tese de que as zonas tropicais do planeta vão ficar inabitáveis.

Correio da Cidadania: E não há nenhuma esquerda, dentro ou fora da ordem, a apresentar um projeto político que aborde tudo isso de forma enfática.

Renato Cinco: O nosso programa político, para essa fase do capital, tem de incorporar catástrofes, pois já passamos da possibilidade de evitar 2 graus, provavelmente de evitar 3 graus. Ninguém pode afirmar que já não é o suficiente para a extinção da humanidade, para não ser mais possível fazer nada. Mas isso não interessa. Temos de lutar para tentar salvar a humanidade, não importa se tem chance ou não, porque na verdade não temos a resposta. Não existe uma capacidade de previsão, pelo menos nesse momento, tão precisa que possa dizer se tem ou não tem mais jeito. Simplesmente não sabemos e vivemos no meio da incerteza.

O que já sabemos é que será uma catástrofe. Uma catástrofe inédita. Uma catástrofe que não tem paralelo na história, só tem paralelo na pré-história, como a era do gelo etc. Desde o início da agricultura a temperatura tinha subido 0,8 graus e já tinha baixado. Estava em uma tendência de queda em relação a esse período mais alto. Quando começou a Revolução Industrial, a temperatura do planeta era praticamente a mesma de quando começou a agricultura, depois de um período de subida e uma queda. Bolsonaristas falaram que era o ciclo natural do planeta. Mas o ciclo era de queda. A partir da revolução industrial a subida é de foguete, uma reta de 90 graus em um esquema de gráfico. Fora de todo o padrão desde o nascimento da Terra.

Correio da Cidadania: Do outro lado, as soluções do capital parecem uma espécie de guerra total a tudo e todos.

Renato Cinco: O capital não vai poder resolver a sua crise estrutural de hoje como resolveu a do pré-guerras, que se resolveu exatamente através das guerras. Destruiu capital para caramba, matou população. A Primeira e Segunda Guerra Mundial pavimentaram o caminho para a Era de Ouro. E veja só, no final dos anos 60, no início dos anos 70, já estava entrando em crise de novo. Olha o que precisou ser feito no século 20 para tirar o capital da crise. Aquela barbárie toda, no final das contas, garantiu menos de 30 anos de Era de Ouro para o capitalismo. E o capital não pode mais dar essa resposta.

Um dos aspectos que explica a escalada bélica do planeta é esta crise estrutural. Neste caso, não é só a crise estrutural. É a crise estrutural e também a perda de hegemonia econômica e política dos Estados Unidos, que não perdeu a sua hegemonia bélica e, irresponsavelmente, tenta evitar uma nova configuração da ordem mundial. Eu sou daqueles que não acredita nem um pouquinho que exista uma divergência, uma crise, entre a Casa Branca e o Netanyahu. Gaza é a Guernica dos Estados Unidos. “Não vamos aceitar perder a hegemonia. Vamos segurar o Oriente Médio à bala”. Ao mesmo tempo, estabelecer o novo padrão de dominação, que passa por liquidar, desconsiderar completamente, qualquer ordenamento jurídico internacional que surgiu depois das guerras do século 20.

Trata-se de restabelecer a normalidade da barbárie. Porque acho que eles sabem muito bem que vão depender cada vez mais da violência política para manter o controle sobre as populações e evitar a perda definitiva da hegemonia do planeta. Acrescente-se a questão da necessidade econômica da guerra, para tentar sair dessa crise cada vez mais difícil de ser resolvida.

Correio da Cidadania: E para responder a isso qualquer programa político hoje transformador, no sentido de uma emancipação coletiva, tem de começar pelo meio ambiente?

Renato Cinco: Uma das questões fundamentais que todas as organizações interessadas em mudar a realidade devem entender é: o século 21 é um século revolucionário. As instituições e a sociedade, como funcionam hoje, não vão durar. Porém, século revolucionário não significa revolução utópica. Ela pode ser distópica. Hoje, a tendência, aliás, é que seja distópica, porque os “revolucionários da contrarrevolução”, como disse o Hobsbawn, são os fascistas, a extrema-direita, e estão mais organizados, mais preparados e mais conscientes de que o momento é revolucionário.

O que seria uma revolução distópica, no caso? Seria a tentativa de manter as desigualdades e os privilégios numa sociedade pós-capitalista, porque a economia de mercado, a extração da mais-valia a partir da circulação de mercadorias não vai funcionar no meio do colapso. Assim, só posso imaginar um futuro com algum tipo de neoescravismo, neosservidão, um tipo de exploração do excedente dos sobreviventes, que não seja sequer capitalista. Pode ser que a perversidade humana invente outras formas de exploração. Aqui, tenho como referência histórica para pensar na distopia a escravidão e a servidão.

É fundamental entender o caráter revolucionário do século 21 para o bem ou para o mal. O que ele não vai ser é “normal”. Aliás, odeio o termo “novo normal” para a situação. Não tem novo normal. Porque a situação vai piorar ano a ano. Já lançamos gases na atmosfera o suficiente para garantir que até 2050 não tem como melhorar. Talvez até depois. Não tem como melhorar. É um ano pior do que o outro, talvez com um ou outro ano de refresco, mas a tendência é um ano pior do que o outro, sem retorno. É fundamental entender isso.

Correio da Cidadania: E se é tão difícil formular um programa para tamanho desafio, não está na hora de se iniciar debates e construções com esse sentido e entender o que está em jogo?

Renato Cinco: Eu não tenho programa. Até porque isso é um desafio para as classes trabalhadoras ou como queiram definir a esmagadora maioria da humanidade. Não é um programa que nenhum iluminado vai produzir. Vamos lembrar que nem o nosso programa fundamental, o Manifesto Comunista, saiu só da cabeça do Marx e do Engels. Nenhuma revolução teve o seu programa completo e totalmente preconcebido e realizado conforme previsto. Mas eu buscaria as referências elaboradas por Luiz Marques em seu livro “O Decênio Decisivo - Propostas para uma Política de Sobrevivência”. Ele traz oito pontos fundamentais, que demonstram a radicalidade das mudanças necessárias no mundo.

São eles:

1) redução radical e emergencial das diversas desigualdades entre os membros da espécie humana;

2) diminuição do consumo humano de materiais e de energia (percebe que não é a “transição energética?”);

3) extensão da ideia de sujeito de direitos às demais espécies, à biosfera e às paisagens naturais (isso é uma revolução filosófica. Basicamente, abolir o antropocentrismo, algo incrustado na humanidade há milênios);

4) restauração e ampliação das reservas naturais a serem consideradas como santuários inacessíveis aos mercados globais (É, Lula, queremos a Amazônia como um santuário intocável. Queremos e precisamos. Não é para desenvolver a Amazônia. É para deixar as comunidades tradicionais desenvolverem seu modo de vida na Amazônia, sem capitalismo);

5) desmantelamento da economia global e transição para uma civilização descarbonizada (isso não é pouca coisa);

6) desglobalização do sistema alimentar e sua transição para uma alimentação baseada em nutrientes vegetais (carnivorismo só para as populações tradicionais que caçam ou criam na própria área. A indústria da carne é insustentável);

7) o arcabouço jurídico internacional vigente deve superar o axioma da soberania nacional absoluta em benefício de uma soberania nacional relativa. Isto é, uma governança global radicalmente democrática e com o poder de obrigar os países a seguirem as diretrizes e medidas necessárias para conter o colapso ambiental. Muita gente acha que isso é acabar com a soberania nacional. Como se o Brasil ou a grande maioria dos países do mundo fosse soberano. Isso é uma invenção da teoria política, pelo menos a partir do imperialismo. Todos os países, exceto os EUA, já estão em fase de soberania relativa);

8) acelerar a transição demográfica, pois aumenta as chances de sucesso das rupturas enumeradas (esse ponto é importante para rebater argumento em certa medida cômodo de que o problema não é o tamanho da população, e sim o consumo. Não é verdade).

O livro coloca uma equação que apresenta o impacto ambiental através da interação de população, uso de recursos naturais e também tecnológicos. Quer dizer o seguinte: o impacto ambiental é uma equação que leva em consideração o tamanho da população, a afluência dos recursos utilizados por aquela população e a capacidade destrutiva da tecnologia. São três elementos. Assim, pode-se ter uma população maior com uma pegada ambiental menor do que uma população menor. E vice-versa. Agora, se você tem uma população menor, o desafio para resolver, para diminuir o impacto, é menor.

Uma coisa é colocar na equação 8 bilhões de pessoas, 11 bilhões de pessoas ou 2 bilhões de pessoas, população de uns 100 anos atrás. Nesse aspecto, não se trata de uma proposta reacionária de controle de natalidade. Ao contrário. O caminho é reconhecer os direitos reprodutivos das mulheres. Empoderar o feminismo é o caminho para a questão demográfica. Combater os fundamentalismos religiosos que atacam as políticas de planejamento familiar, de contracepção, legalização do aborto são caminhos. É dessa maneira que a gente avança na solução. Porque, no final das contas, esse crescimento infinito e permanente da população, assim como o capitalismo, também é insustentável. Podemos reduzir a população não por meios trágicos, e sim com planejamento e educação sexual.

Correio da Cidadania: Ou seja, falar na superação objetiva das injustiças e desigualdades ainda é o método para estancar os devaneios que as extremas-direitas colocam na mesa como antissistema, mas que nada mais são do que o aprofundamento do sistema.

Renato Cinco: Sim, e outro ponto fundamental é a socialização das decisões sobre a produção. Para cumprir um programa de saída do colapso ambiental essencialmente anticapitalista as decisões sobre a produção e, em consequência, sobre o consumo precisam ser tomadas levando em consideração a questão ambiental acima de tudo. Repita-se: acima de tudo. E a decisão sobre a produção no capitalismo leva em consideração o lucro. O objetivo é o lucro. Assim, eu incluiria um nono ponto aqui, que é a abolição da propriedade privada dos meios de produção, a construção de uma economia socialista, ecológica e planejada de forma radicalmente democrática.

Eu não defendo a repetição de nenhum tipo de stalinismo e suas variáveis. Isso aí, no final das contas, é colocar a burocracia no poder para resolver as coisas de forma vertical e similar a qualquer democracia capitalista atual. Não é uma reprodução das coletivizações comandadas pelo Estado em outras experiências. É preciso recriar formas de autogestão que superem a forma estatal e também o atual capitalismo, que produz e acelera variados desastres e, como já mostrou a experiência de Nova Orleans, reaparece depois do desastre para lucrar com reconstruções, o que parece já se desenhar no Rio Grande do Sul.

Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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