Correio da Cidadania

Reforma agrária é demanda atual e exige a massificação da luta popular

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Qual o sentido das mobilizações do MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, nesses últimos meses, com novas ocupações de terras ao longo de todo o país?

 

Estaríamos mesmo diante de bandalheiros, que ano após ano vêm badernando como crianças mal criadas, quando não criminosas, conforme nos faz crer uma mídia que, quase em coro, deprecia das formas mais sorrateiras a atuação dos movimentos sociais?

 

Ou estaríamos frente a uma luta anacrônica, de utópicos e ingênuos militantes, que ainda acreditam existir uma questão agrária a resolver em nosso país, mesmo que diante dos altos índices de produtividade agrícola e da conclusão da urbanização, conforme enunciado em estudos recentes de intelectuais do ramo?

 

O militante do MST José Batista faz frente a essas apreciações, com a visão, argumentos e justificativas de quem vive e estuda, desde dentro, a realidade agrária do país.

 

Confira abaixo.

 

***

 

Correio da Cidadania: O MST intensificou, nos últimos meses, suas ações pelo país. Qual o sentido e o significado de tais ações?

 

José Batista: É uma luta do movimento em função de que a reforma agrária no Brasil está paralisada. As manifestações que ocorreram com os assentados são uma demonstração real, em torno de 150 mil famílias país afora estão há muito tempo - algumas cinco, seis ou sete anos - aguardando o assentamento. As ações que o movimento organizou são muito mais em função dessa demanda acumulada, relacionada à reforma agrária. Não está em curso nenhum plano sobre a proposta que defendemos há algum tempo e na qual várias pessoas se envolveram, intelectuais inclusive, relativa à intervenção do governo para resolver a questão da demanda. Essa jornada ocorre justamente em função desta demanda acumulada.

 

CC: O que significa uma reforma agrária efetiva hoje em nosso país? Qual a importância de sua realização?

 

JB: Os movimentos sociais entendem a reforma agrária como uma forma de geração de empregos no campo, que passa por distribuição de terra, de condições de produção, educação e moradia digna. É uma estratégia para resolver os problemas de milhares de famílias que querem produzir no campo.

 

Por outro lado, temos muitas terras disponíveis, improdutivas, terras públicas, e temos um número grande de famílias que os movimentos sociais organizam. No caso do MST, são 150 mil famílias, e ao todo são 230 mil famílias no Brasil que lutam pela reforma agrária.

 

E essa reforma agrária só tem sentido se pensarmos outro modelo para o campo brasileiro, que tem um papel a cumprir. Esse papel é a produção de alimentos, a preservação ambiental, levar a educação e a cultura para o campo. Inclusive, isso é contra o modelo que está em curso, que é o da concentração da terra - defendemos a "desconcentração" da terra e a destinação das terras improdutivas e públicas para as famílias que vão produzir alimento -, de monoculturas em grande extensão - em um período próximo, corremos o risco de destruição ambiental. Esse modelo da grande monocultura hegemonizada pelo velho latifúndio, com o apelido de agronegócio, não tem perspectiva nem de geração de empregos e nem de produção de alimentos. Mesmo o trabalho que gera é de total exploração, como no caso do corte da cana. Isso sem falar na degradação ambiental.

 

O destino desses produtos, dessas matérias-primas, não é resolver o problema do povo brasileiro. É pagar os juros, garantir o lucro de meia dúzia de banqueiros, garantir o superávit primário. Quem mais lucra nesse país é o capital especulativo e os bancos, duas ou três multinacionais que controlam o mercado de máquinas e de insumos e, inclusive, a comercialização desses produtos.

 

Para nós, a reforma agrária é pensar um outro modelo, um outro papel para a agricultura. É pensar uma outra maneira de ver o campo. A nossa matriz é a do velho latifúndio; queremos inverter essa lógica, levando muitas famílias para viver no campo, com condições de educação, de infra-estrutura, de moradia, de cultura, e produzindo alimentos. Resolve-se, assim, o problema do povo brasileiro, e não o problema do mercado, do pagamento de juros, de meia dúzia de multinacionais que destroem o meio ambiente.

 

CC: Qual seria a estratégia para essa efetiva distribuição de terras no atual momento histórico?

 

JB: A estratégia é deflagrar o enfrentamento entre estes dois projetos: o modelo para o povo brasileiro, para a agricultura e para o conjunto da sociedade, contra esse modelo que está sendo implementado e que agora, com a popularidade do etanol, se intensifica ainda mais. A luta que promovemos em março, em abril e agora em maio faz parte dessa estratégia.

 

A reforma agrária, estando nesse patamar de enfrentamento de modelos, passa por um processo profundo de transformações, e deve portanto contar com a participação de outras forças políticas. Só o enfrentamento, só a luta concreta é que pode levar à alteração dessa correlação de forças.

 

CC: Como você enxerga a relação do governo com esse modelo que está a cada dia mais patente, especialmente no que concerne à sua ligação com o agronegócio e com os biocombustíveis?

 

JB: É uma prova concreta de que não há vontade de mudanças, de que não está em curso nenhum processo de mudança estrutural no país, não está em curso a reforma agrária, não está em curso a inversão da lógica que levaria a pensar o país a partir das necessidades do povo brasileiro. A questão dos biocombustíveis prova que, na agricultura, a prioridade é para o grande capital, principalmente o capital internacional. Pensamos em produzir etanol não para colocá-lo no tanque dos ônibus para melhorar a condição do transporte coletivo - até porque o álcool é um combustível fraco, que não move ônibus. É um combustível de consumo da classe média, que não resolve os problemas coletivos do povo.

 

Se fosse para resolver as necessidades energéticas do povo brasileiro, não haveria por que multiplicar por cinco, por dez, a produção da monocultura de cana. Estamos condenando a terra brasileira a produzir álcool ao invés de produzir alimento, destruindo o meio ambiente e colocando a vida de trabalhadores em jogo para produzir litros e litros de álcool para a exportação, para manter uma sociedade de consumo ao estilo norte-americano. Trata-se de manter um padrão de consumo movido a carros individuais - um modelo de sociedade em crise. Trata-se de incentivar a produção do álcool para alimentar os carros de quem tem o seu próprio veículo. Esse modelo não serve para nós brasileiros.

 

Estamos, ademais, diante do incentivo a uma monocultura que se constitui em uma matéria-prima para a exportação, como é o caso do eucalipto, da soja, e que ainda destroem o cerrado e a Amazônia brasileira.

 

Está evidenciado, portanto, que estamos frente a dois modelos em disputa, e não há sinalizações do governo federal em priorizar aquele que é o mais condizente com o país e com o seu povo. A panacéia do etanol constitui clara sinalização do aprofundamento do modelo do agronegócio. Se não conseguirmos barrá-lo, restará uma tragédia para a humanidade, para o povo brasileiro, para a biodiversidade e para os recursos naturais. O que está em jogo para esse modelo não é a vida do povo, do trabalhador do corte da cana. O que lhe interessa é o lucro de algumas poucas empresas brasileiras e de um grande número de empresas multinacionais.

 

CC: O MST esteve próximo do governo durante o primeiro mandato de Lula, até mesmo pelo seu histórico próximo ao PT. Como o movimento se posicionará nesse segundo mandato em face desse diagnóstico, do qual se deduz uma clara priorização do agronegócio pelo governo? Há como lutar e levar adiante suas estratégias sem um enfrentamento maior?

 

JB: Um dos maiores princípios do MST nos seus 23 anos de existência é a sua autonomia política, que mantemos com qualquer que seja o governo. No primeiro mandato de Lula, não fizemos parte do governo e não houve nenhum combinado de não fazer luta. Ao contrário, todo o nosso esforço, desde o período de FHC - cujo modelo não mudou -, é para o enfrentamento. Isso não será diferente nesse período, independente, enfatizo, de qual seja o governo. O capital tem as suas formas de se institucionalizar, e lutamos contra o capital, contra a sua forma de exploração da agricultura. Se qualquer governo se identifica mais com esse projeto do que com o nosso, a luta não é com ele, mas sim contra o modelo. Governos de plantão estão a serviço da hegemonia, e quem hegemoniza atualmente é o capital.

 

Hoje, a tarefa do movimento continua ser manter a sua autonomia e ajudar a organizar e participar de todas as lutas, seja dos sem-terra ou de outras categorias, e trabalhar a unidade com outros movimentos, para ampliar a capacidade de luta, quem sabe massificá-la. Assim poderemos ter bandeiras maiores, em função de uma outra concepção de sociedade, com mudanças mais profundas.


CC: Mas essa luta é possível sem ruptura com o governo Lula?

 

JB: Ruptura não haverá, pois não existe acordo nenhum. O governo tem o seu caminho a escolher; nós escolhemos o caminho da luta e do enfrentamento a esse modelo. Esse é o desafio que está colocado para o movimento, e só no dia em que tivermos grandes mobilizações das grandes massas é que teremos força. Não vai ser uma posição mais radical ou menos radical que irá resolver a situação; precisamos priorizar o trabalho de base, principalmente com a juventude que está sem perspectivas nas periferias dos grandes centros, com os desempregados. Estamos com essa disposição, para que, quando houver um nível de consciência na classe trabalhadora que capacite a mobilização, possamos, independentemente de qualquer governo, propor essas mudanças e imprimi-las. Esse é o principal desafio.


CC: A massificação da luta é, portanto, uma condição hoje essencial para que se reverta a correlação de forças de modo favorável aos trabalhadores.

 

JB: Sim, e a reforma agrária passa a ser uma luta do conjunto da classe trabalhadora, assim como a luta pelos direitos dos trabalhadores. O MST se inclui na luta pelos direitos trabalhistas, contra a reforma da Previdência e contra a proibição de greve. Há uma luta maior a ser travada, e a bandeira da reforma agrária deve estar nesse contexto. Não queremos resolver o problema somente dos sem-terra, a reforma agrária passa por um projeto de sociedade, de mudar o modelo de sociedade - inclusive de como se relacionar com a natureza, de como garantir a preservação ambiental, a preservação da água, de como garantir a soberania alimentar. E, por que não, a soberania energética. Ao invés de vender a nossa matéria-prima, explorar os trabalhadores e a natureza para vender biocombustível - que de bio não tem nada, na verdade é a agroenergia, energia que provém da agricultura -, precisamos pensar em energia para o povo brasileiro.

 

CC: E essa massificação da luta passa também essencialmente pelo desenvolvimento da percepção de que a questão agrária continua atual e pendente, e de forma ainda mais forte, em face do evidente aguçamento da oposição entre dois modelos para o campo, um voltado para o capital e outro para o povo - ao contrário do que alguns intelectuais estão dizendo.

 

JB: Chico Graziano diz que a reforma agrária é o problema de um movimento ideologizado, que não há mais sem-terras no Brasil, que não há mais latifúndio. Porém, estamos tropeçando todos os dias em latifúndios improdutivos, em terras públicas sendo apropriadas indevidamente por grileiros, estamos vendo a destruição da Amazônia brasileira em função da monocultura.

 

Para resolver essa questão agrária, são necessárias medidas contundentes - por exemplo, está na mesa do presidente da República, desde 1975, a mudança do índice de produtividade. Desde então, está sem atualização.

 

Se esses intelectuais estão realmente convencidos, conforme seus discursos, de que estão sendo resolvidos os problemas no campo e na produção, qual o medo de mudar o índice? Se está tudo resolvido, qual o problema? A realidade é que houve muitos avanços nas técnicas produtivas agrícolas no Brasil, sem dúvida alguma, mas os índices continuam os mesmos de 32 anos atrás, quando meio boi por hectar era considerado produtivo.

 

CC: Trata-se então de um discurso produzido para avalizar o capital?

 

JB: Claro, e manter a economia no campo com base no latifúndio, que é a nossa ferida histórica. O latifúndio é algo atrasado, que reproduz a cultura do atraso. E agora propõem que tudo continue como há 500 anos, com a monocultura voltada à exportação.

 

Não há nada de novo no campo brasileiro, é o velho latifúndio que reproduz as mesmas formas de exploração - inclusive o trabalho escravo, o trabalho infantil, e a uma velocidade muito grande de destruição do meio ambiente. Quando exportamos soja e eucalipto, álcool e açúcar, estamos exportando a nossa água doce.


CC: Insistindo um pouco nessa relação com o governo, a partir dos olhares externos, enquanto setores mais à esquerda notam um distanciamento do governo em relação às demandas do sem-terra, os críticos mais à direita - e aqui em função do próprio histórico de lutas do MST e do PT - chegam mesmo a fazer acusações de que o MST se utiliza de recursos públicos para simular ataques às políticas federais. O que você diria frente a tais argumentos?

 

JB: Como disse, o MST mantém a sua autonomia, inclusive em relação a recursos provenientes do governo. Os recursos do governo que chegam aos assentamentos são recursos oficiais, pois o assentamento é um espaço oficial de atuação do governo. Os parcos recursos que o governo disponibiliza são aplicados na educação e capacitação nos assentamentos, em condições ainda precárias. O MST se dispõe a cumprir um papel no campo que é o da preparação, da educação e da organização dos assentados, funções que o próprio Estado não desempenha. Os recursos para os assentamentos são insuficientes para a organização de escolas, de moradia, de estradas, de cultura e lazer de qualidade.

 

CC: Quais são os desafios imediatos que estão colocados e as ações programadas?

JB: Vamos realizar, em junho, o Congresso Nacional do MST, e estamos priorizando a unidade de todas as forças populares no Brasil para fazer essa grande mobilização, esse processo de preparação da consciência dos trabalhadores, para entendermos o caráter do enfrentamento com o capital que estamos vivendo e o papel dos movimentos.

 

O fundamental agora é evitar sectarismos e ver o que é possível construir conjuntamente, com a perspectiva de uma luta maior, por mudanças na sociedade, para a construção do socialismo no Brasil - socializar a terra, os meios de produção, pensar o Brasil para o povo brasileiro, e não para resolver o problema de uma sociedade internacional que está em crise. Não temos que produzir matéria-prima para resolver o problema de um país como os EUA, que quer ser o império do mundo, mas sim pensar num projeto que tenha a cara do povo brasileiro. Essa é a crise que vivemos; o Brasil não tem soberania, está totalmente dependente do capital internacional.

 

Colaborou Mateus Alves.

 

 

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