Correio da Cidadania

Sem regulamentação na Constituição, autonomia universitária continuará refém dos Executivos

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Em busca de reafirmar a autonomia da Universidade de São Paulo (USP), ameaçada pelo Executivo paulista por meio de decretos do governador José Serra - considerados inconstitucionais por juristas como Dalmo Dallari -, estudantes ocuparam a reitoria da universidade como forma de demonstrar seu descontentamento e docentes e funcionários tampouco se mantiveram calados, mobilizando-se e anunciando uma greve que ainda perdura.

 

Apesar de lentamente as manifestações causarem avanços rumo a resultados favoráveis, como demonstrado na recente alteração do conteúdo dos decretos pelo governador paulista, ainda é incerta a profundidade de tais conquistas e de que maneira a vida acadêmica no país será afetada, uma vez que as reivindicações de estudantes, docentes e funcionários do ensino público superior paulista já transcendem a questão da autonomia universitária e tocam em outras mazelas do setor, que há anos vêm se aprofundando.

 

Para comentar a situação calamitosa do ensino superior em São Paulo e no Brasil, o Correio da Cidadania entrevista Roberto Romano, professor de filosofia na Unicamp. Romano comenta as razões que, ao longo dos anos, levaram à crise na disputa pela autonomia universitária e analisa as atuações dos governos federal e estadual, dos movimentos estudantis e dos docentes das universidades paulistas durante o desenrolar da crise.

 

***

 

Correio da Cidadania: Qual é a real extensão da crise da autonomia das universidades públicas que aflige o estado de São Paulo e o Brasil hoje em dia?

Roberto Romano: Desde 1988 é colocada a exigência da automia universitária na Constituição Federal. Isso ocorreu devido ao professor Florestan Fernandes, que estava muito preocupado em preservar as fundações de pesquisa e todas as outras autonomias do setor. A partir de então, nada foi feito para regulamentar esse princípio - que existe, mas, tanto nas universidades federais quanto em outras universidades, não se observa uma norma geral que determine como é que esse preceito constitucional será aplicado.

Isso se deve a muitas culpas: primeiramente, dos sucessivos governos federais - menos o governo de Itamar Franco, que teve o ministro Murilo Hingel e seu plano muito bem fundamentado de reforma universitária, que moralizou o ensino universitário, inclusive fechando o Conselho Federal de Educação devido à corrupção existente -, que não conseguiram levar adiante um plano para adequar esse preceito à realidade universitária do Brasil. Sempre tiveram uma visão do assunto que colidia com a visão de muitos educadores, estudantes e a do movimento docente.

Quando veio o governo Lula, a coisa ficou ainda mais complicada. Cristóvam Buarque, quando esteve à frente do Ministério da Educação (MEC), quase nada conseguiu fazer pois foi muito boicotado. Tarso Genro, quando assumiu a pasta, realizou um monte de pirotecnias, mas nada mais sólido apareceu. Pode ser que agora, com Fernando Haddad, algo mais estabelecido surja; porém, não nego e nem afirmo que deverá haver algo mais profundo.

Além disso, o movimento docente não conseguiu se unificar e apresentar projetos para a autonomia universitária. Os administradores das universidades também não tinham e não têm nenhum interesse na autonomia, pois para eles é muito mais rendoso ficarem presos aos compromissos de pedir e conseguir verbas do MEC - a famosa troca de recursos em forma de apoio, que resultou, inclusive, no apoio coletivo à reeleição de Lula, contra qualquer perspectiva a respeito da autonomia universitária.

Os partidos políticos também não estão isentos de culpa. O PT, que gritou tanto em favor da autonomia, nunca encaminhou um projeto coerente. O PSDB também não. Nunca houve um partido que tivesse apresentado uma plano sério e estável para a garantia da autonomia das universidades.

A única coisa que tivemos, no estado de São Paulo, foram os decretos do ex-governador Orestes Quércia. Esses decretos não possuem, porém, força. Estão suspensos no vazio, pois, não existindo a qualificação da autonomia universitária na Constituição Federal, tudo o que for feito em níveis inferiores, estaduais e municipais, fica dependendo dessa determinação inexistente. É isso que faz com que, no caso que hoje vemos, o governo do estado tenha ido além do que lhe é concedido por direito; o governo paulista tenta colocar qualificações à autonomia universitária quando elas não existem.

CC: Essas qualificações, por meio dos decretos do governador José Serra, parecem ter sido o estopim da recente crise em São Paulo. O que estava contido neles que causou a indignação dos setores acadêmicos do estado?

RR: Os vários decretos foram maculando a autonomia universitária. Primeiro, havia a criação da Secretaria de Ensino Universitário e a colocação do secretário como presidente do CRUESP (Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas), retirando o mandato da reitora da USP. Depois, a exigência de que os recursos da universidade não poderiam ser manejados por elas para a contratação de docentes, aumentos de salário etc. E há a questão da prestação diária de contas no SIAFEM (Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios do Estado de São Paulo). Enfim, é um conjunto de vários decretos que, diz o governo, foram mal interpretados - e juristas, como Dalmo Dallari, dizem ser um atentado contra a autonomia universitária.

No entanto, estamos brigando por algo que não foi estabelecido. Se a autonomia universitária estivesse definida na Constituição, não haveria por que brigar; inclusive, o governo estadual não teria nem motivos e nem maneira de tentar aprovar tais decretos.

Trata-se de uma cobrança que pode ser feita para todos: docentes, movimentos estudantis, partidos políticos, administrações federais. É uma situação que foi bom ter estourado, pois pode fazer as pessoas pensarem melhor.

CC: Há um apoio generalizado dos docentes de São Paulo no combate aos recentes ataques à autonomia das universidades do estado?

RR: Muitos docentes são contra o governo, mas não apóiam atos como a ocupação da reitoria. Na Unicamp, a maioria absoluta dos diretores está contra o governo e demonstram isso publicamente; no caso da USP e da Unesp, isso não ocorre bem assim.
A estrutura do Estado brasileiro, tanto o federal como o estadual e o municipal, privilegiando o Poder Executivo, faz com que esse mesmo Poder aja quase sempre de uma forma voluntariosa, sem ouvir os outros Poderes, a sociedade etc. O Executivo nacional costuma fazer e depois pedir desculpas, não há consultas, diálogo, nada. Esse caso foi típico: José Serra assumiu e logo foi fazendo os decretos sem consultar ninguém. Os reitores, os docentes, ninguém foi consultado.

Fundamentam-se no fato de que o secretário Pinotti foi reitor da USP, que se trata de um governo composto quase que totalmente por universitários - Serra também é professor da USP. No entanto, ser do meio universitário não quer dizer que representa o pensamento da universidade.

Estamos diante de mais uma lição dessa excessiva predominância do Executivo no Brasil; é um defeito do nosso modo de trabalhar.

CC: Você acredita que a ocupação da reitoria da USP é o indício de um novo movimento estudantil no Brasil?

RR: Não. Essa tática da ocupação já foi utilizada muitas vezes na Unicamp, por exemplo. Ocupar a reitoria é uma técnica antiga - lembro-me de uma há 12 anos atrás, onde estive presente para dialogar.

O que acontece é que essa invasão reagiu a esse costume do Executivo de atuar de modo truculento. Assim, seu impacto foi bem maior.

CC: Mesmo em relação à organização política dos estudantes você acredita não haver novidade alguma?

RR: Tenho algumas dúvidas quanto a isso, especialmente quanto ao fato de a UNE (União Nacional dos Estudantes) estar dizendo que vai sair por aí ocupando reitorias. Pessoalmente, questiono a independência e a orientação política da UNE, pois são muito próximos ao governo Lula.

Se descobriram agora que alguma coisa está errada no sistema de ensino superior no país, descobriram muito tarde; a UNE passou integralmente o primeiro mandato de Lula sem colocar qualquer empecilho ou qualquer crítica mais profunda em relação a suas políticas para o setor, pelo contrário. Gustavo Petta (presidente da entidade estudantil) faz parte do Conselho da República - onde não há nenhum reitor e só ele representando as universidades. Nunca houve nenhuma apresentação por sua parte de problemas nas estruturas das universidades brasileiras.

CC: Como citou anteriormente, a gestão de Fernando Haddad frente ao Ministério da Educação poderá trazer avanços ao ensino no Brasil. Quais seriam progressos possíveis?

RR: Sobre o futuro, sempre gosto de falar em cima de documentos e fatos - e o que vejo é que a admistração de Haddad, as suas propostas e os encaminhamentos estão sendo um pouco mais consistentes do que os todos os ministros anteriores. Não posso dizer muita coisa além disso.

O que posso dizer é que as grandes realizações do governo que são utilizadas propagandisticamente, caso do ProUni, são um atentado à universidade pública. A desculpa é que permitem aos estudantes freqüentarem a universidade privada, mas, na verdade, trata-se de um repasse de verbas para empresários do ensino. Uma coisa engraçada é que aumentam, sistematicamente, a mensalidade dos alunos; se o governo paga metade, eventualmente não deveria haver custo algum para eles.

Não vi o movimento estudantil e nem boa parte dos docentes criticarem tais políticas, e isso é algo muito grave.

CC: Que soluções apresentaria para resolver a questão da autonomia do ensino público superior no Brasil?

RR: O que acho é que não é possível resolver os problemas das universidades em praças públicas ou em gabinetes. A universidade é uma instituição de ensino, de pesquisa, de produção do saber e de ciência e tecnologia, entre outras áreas. É um trabalho extremamente complexo e, para ser encaminhada a questão da autonomia universitária, seria necessário - e isso é algo que propus há muitos anos - que os três poderes, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, indicassem uma comissão na qual estariam presentes representantes das universidades e representantes da sociedade civil, ou seja, aqueles que pagam os custos das universidades através de impostos.

Não sei como seria feita essa escolha de representantes da sociedade - teria um pouco de preocupação caso fossem colocados membros de sindicatos de trabalhadores ou de empresários, pois já sabemos o que acontece quando estes assumem algo: criam negociações políticas, transformam a instituição em apenas mais um espaço político.

Com a ajuda técnica de especialistas em universidades e de juristas, a comissão faria uma espécie de pauta para definir a autonomia das universidades paulistsas enquanto se espera a regulamentação da Constituição Federal.

Tal comissão precisa realmente existir; reitores de São Paulo já compraram essa idéia e estão propondo a criação de um grupo de trabalho para criar essa pauta e evitar que o governo continue legislando dessa maneira e que estudantes, docentes e funcionários continuem na incerteza - pois a autonomia fundamentada nos decretos de Quércia é, juridicamente, muito frágil.

Uma solução criada por meia dúzia de "brilhantes mentes", tais como os decretos recentes, vai sempre dar com os burros n'água, além de ter um caráter autoritário. O problema não é simples como construir uma estrada ou o Rodoanel. Estamos diante de algo muito mais complexo.

 

 

 

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