Correio da Cidadania

'Chacina do Pan' consolida agenda da criminalização e extermínio dos pobres

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À luz das operações da Polícia Militar do Rio de Janeiro no complexo do Alemão, zona que concentra grande número de favelas na cidade, o Correio da Cidadania entrevista a socióloga e criminologista Vera Malaguti, secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia.

Malaguti fala, entre outras coisas, sobre a absurda classificação da operação como um sucesso estrondoso pela grande mídia e sobre os impactos do neoliberalismo nas políticas de segurança pública.


Correio da Cidadania: O que está por trás da operação realizada pela polícia no complexo do Alemão, no Rio de Janeiro?

Vera Malaguti: Estamos chamando as ações no complexo do Alemão de "chacina do Pan". É uma perspectiva de segurança pública que tem, por trás de si, algo de "limpeza" - para utilizar uma expressão comum durante a era nazista da Alemanha. Faz parte da mesma lógica militarista norte-americana: George W. Bush atacou e invadiu o Iraque para "restabelecer a democracia". O que existe é o coroamento de uma política anti-criminal e anti-drogas norte-americana, que acredito ser uma cortina de fumaça para o controle social violento dos pobres no neoliberalismo.

Uma recente capa da revista Época traz um policial com roupas de guerra, fumando um charuto e caminhando por entre vários corpos ensangüentados de negros. Falam de uma inovação no combate ao crime, mas o Brasil mata negros e pobres há 500 anos. Qual é a inovação aí? É justamente o contrário.

O que aconteceu em Canudos foi algo parecido; os argumentos eram que estavam armados, que ameaçavam a República, mas Euclides da Cunha estava lá para contar que, na verdade, foi a chacina fundacional da República.

CC: A eficácia das ações, então, é inexistente?

VM:
Esta lógica já matou e encarcerou milhares de jovens brasileiros e não teve nenhum efeito, nem sobre o consumo de drogas no país, nem sobre a produção de drogas, nem sobre o tráfico de drogas, nem sobre a violência e nem sobre a corrupção policial. Pelo contrário, esta política, com todo o seu derramamento de sangue, quintuplicou tudo isso. A ONU acabou de divulgar um relatório que diz que o tráfico de drogas, no mundo, diminuiu. No Brasil, ele aumentou.

Temos que perguntar qual é o propósito de tais ações. Uma das coisas mais chocantes da cobertura da imprensa é que ela está sendo um enorme sucesso, mas nem o morro do Alemão foi ocupado. O seu único sucesso é o seu número de mortos. Dizem que eram culpados, como se a pena de morte tivesse sido instituída.

Segundo o jornal O Globo, dos dezenove mortos - e esse número foi maior do que isto, todos já sabem -, onze tinham antecedentes criminais. A militância dos diretos humanos no Rio - talvez seja melhor usar a descrição "resistência ao neoliberalismo" para defini-los - colheu os depoimentos e as histórias escabrosas daquilo que foi uma operação vergonhosa, uma chacina oficial do governo do estado do Rio de Janeiro com o aval do governo federal. Não houve nenhuma baixa policial; não foi um confronto, mas sim um extermínio.

Nunca tive muitas ilusões, mas agora o governo do Rio e o governo Lula anunciam que, na verdade, esta "limpeza" é necessária para que, depois, cheguem os serviços à comunidade. Se isso fosse verdade, então teríamos uma fila de comunidades pedindo chacinas.

CC: Há um paradoxo entre as políticas neoliberais do governo federal e as declarações de Lula culpando a ausência do Estado nas zonas pobres do país como o principal fator responsável pelo crescimento do crime e do tráfico de drogas no Brasil?

VM: As políticas que estão sendo praticadas são acessórios do neoliberalismo. Quando não se tem um projeto de protagonismo para o povo, o que se procura é conter as massas dessa forma. É a adoção integral da cartilha neoliberal, não só de seu modelo econômico e social perverso, mas também de suas políticas de segurança pública de criminalização e extermínio dos pobres para manter as hierarquias sociais.

No entanto, o Estado mostrou qual é a sua presença no complexo do Alemão. É uma vergonha, que faz parte de uma operação de contenção dos pobres nos Jogos Panamericanos e que não tem nenhum efeito.

E as operações trazem também algo ainda mais perverso. No Rio, existem diversas facções criminosas, mas o combate está sendo feito contra apenas uma. Qualquer pessoa que entenda do assunto sabe que isso provocará uma disputa entre as outras facções, algo que aumentará a insegurança. Isso já começou a acontecer na cidade.

CC: Você acredita que essa postura "militarista e neoliberal" da polícia irá continuar mesmo após os Jogos Panamericanos?

VM: Não sei se a OEA (Organização dos Estados Americanos) ou a Anistia Internacional conseguirão barrar novas operações do tipo, mas está sendo prometido que irão ocorrer em outras comunidades. Não sei se o banho de sangue continuará, mas certamente não terá nenhum efeito sobre o tráfico e produzirá mais insegurança.

Eu acho que houve, no Brasil, pelas mãos da grande mídia, uma educação para a naturalização do extermínio. As elites, por exemplo, a da Zona Sul do Rio de Janeiro, dizem que "finalmente o Estado está agindo", aplaudem a situação. No entanto, a História decanta essas coisas, e a verdade sempre acaba aparecendo; essa é uma página vergonhosa da história do Rio de Janeiro, cidade que já teve chacinas contra o governo, mas esta é uma chacina oficial; o governador Sérgio Cabral (PMDB) fala dos efeitos colaterais das operações, mas certamente não imagina o efeito psicológico, por exemplo, que uma operação desse tipo tem nos moradores da comunidade.

De acordo com a Police Foundation, o principal centro de estudos da área nos Estados Unidos, uma operação que resulta na morte de uma pessoa já é considerada uma operação fracassada. Chamar uma operação que resultou em mais de duas dezenas de mortos - isso, oficialmente - de "um sucesso" e dizer que está sendo inaugurada "uma nova era" é um absurdo. Canudos foi assim, Eldorado dos Carajás também; tudo era em nome da ordem, da democracia, das "boas coisas que virão".

Estamos indignados e sem voz. E a grande imprensa encobre a situação, como sempre.

CC: Acontecimentos como a agressão da empregada doméstica por jovens de um bairro da classe média carioca são resultantes desta "cultura de violência" que se instalou na sociedade brasileira?

VM:
Sim, esses jovens foram educados nessa cultura. Enquanto agrediam a doméstica, no morro do Alemão vários filhos e irmãos de domésticas estavam sendo exterminados - tendo a ver com o tráfico ou não. A pena de morte está naturalizada no inconsciente coletivo. Isso nos dá perspectivas sinistras.

CC: Qual seria um modelo adequado para combater o crime no Brasil?

VM: Primeiro, é preciso deixar de usar as políticas norte-americanas, olhar outras experiências como as feitas no Canadá, na Holanda, em Portugal; é preciso pensar em algo diferente, e não utilizar uma política que na verdade é uma política de geo-ocupação.

Um exemplo errôneo que é tomado é o caso da Colômbia. Ora, a Colômbia é um país onde o seu presidente está envolvido até o pescoço com grupos paramilitares. E esse parece que é o modelo que o governo quer seguir.

Existem mil e uma outras maneiras de pensar o combate ao crime e ao narcotráfico. Algumas experiências tentaram mudar isso, como nos governos Montoro e Covas, em São Paulo, e no governo de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro. Por exemplo, policiais que entrassem em confronto eram retirados de serviço para que pudessem se reciclar, evitando que fossem transformados em exterminadores. Agora, o exterminador é o herói, aquele que aparece na capa das revistas.

CC: O Rio registrou, recentemente, um crescimento de atuações que podem ser classificadas também como "paramilitares" nas favelas, com a criação de milícias que supostamente protegem as comunidades. Estas ainda podem se multiplicar?

VM: Quando há o combate a apenas uma facção, outras tomam o mercado; isso é uma economia do varejo. E essas milícias, mesmo sendo formadas por policiais, também estavam no tráfico. Qual a razão de não entrar em um mercado que se abre?

CC: A realização do Pan está acontecendo em um momento equivocado?

VM: Acho que não. Mas também não era necessária essa "limpeza". Uma cidade precisa mostrar sua realidade como ela é.

 

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