Correio da Cidadania

Movimentos pró-reforma agrária repensam relação com governo federal

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A atitude do governo em relação às políticas para a reforma agrária indica que há uma avaliação interna cristalizada. Setores chave entendem que o ritmo dos assentamentos deve ser ditado pelo governo e não pelas organizações rurais. Ocorre que o ritmo imprimido pelo governo está aquém ao da tartaruga e o papel dos movimentos sociais tem sido, até agora, o de apressar esse passo.

 

Esses setores entendem que esses coletivos devem servir aos interesses políticos do Estado. Assim, aos poucos, foram cooptando as organizações, facilitando a entrada nos cargos de último escalão, ensinando como elaborar os projetos e como acessar os recursos públicos.

 

Com este ilusório fortalecimento, as organizações foram perdendo o poder de ação e reação. Foram desaprendendo a arrecadar fundos para suas atividades de forma independente – coisa que era normal nos governos anteriores. Os governos neoliberais obrigavam os movimentos sociais a desenvolver sua criatividade. As organizações patronais obrigavam as entidades de trabalhadores e trabalhadoras rurais a recriar as articulações políticas e a consolidar pactos de classe.

 

O atual governo, esquerdo-liberal, foi se imiscuindo na vida dos movimentos como uma aragem de esperança. As lideranças abraçaram esta possibilidade, pois se reconheciam como construtores do Partido dos Trabalhadores, de onde vinha Lula, líder metalúrgico. Havia um entrelaçamento de avalistas: o partido e o homem.

 

Lula, assim que assumiu o Executivo, prometeu aos movimentos que a reforma agrária seria resolvida com uma canetada. Do mesmo modo também seria resolvida a questão do índice de produtividade, que serve para mesurar o grau de utilização econômica da terra, base do processo desapropriatório. Seria extinto o decreto que proibia a ocupação dos imóveis improdutivos e criminalizava os movimentos sociais. Os transgênicos jamais seriam liberados.

 

Essas e outras promessas não foram cumpridas. As organizações pressionaram o governo, mas sempre havia uma desculpa de Estado.

 

A esta desculpa se associava uma chantagem: o governo se mostrava sempre ameaçado pelas elites, sempre sua governabilidade estava em jogo; sempre havia uma conspiração pronta para ser desencadeada.

 

Mas as lideranças foram percebendo que as políticas estavam sendo implementadas em favor das elites econômicas, políticas e sociais. Como elas poderiam ameaçar aquele que sustentava sua acumulação de riqueza?

 

Assim, foram entendendo que a reforma agrária não era parte do modelo de desenvolvimento do governo esquerdo-liberal. Os formadores de opinião do governo passaram a declarar que a reforma agrária não era mais necessária. Que o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não têm sentido na estrutura do Estado. Que esses órgãos anacrônicos são perfeitamente dispensáveis.

 

Reagindo a estes pronunciamentos os movimentos sociais do campo se mobilizaram e saíram às ruas, pressionou o Congresso Nacional, o Executivo e garantiram uma sobrevida ao MDA e ao Incra.

 

Porém, os tempos são de cobras que voam. A palavra não-dita afeta o discurso. O governo foi minando a força das organizações do campo. Os projetos de assentamentos foram sendo questionados. Os números foram sumindo dos sites oficiais. As metas não se realizavam. Os percentuais se reduzindo. Os recursos minguando. As verbas para a reforma agrária crescem nas mesmas proporções que aumentam os acampamentos na beira das estradas. Um paradoxo que só pode ser resolvido por meio do compartilhamento na busca das soluções.

 

As lideranças sociais se desdobram em audiências para manter um número mínimo de assentamentos para suas bases. Batem à porta do MDA/Incra, são bem recebidos, mas os processos continuam engavetados. As reuniões se multiplicam como se inimigos travassem uma disputa feroz. Os gestores esperam vencer os movimentos sociais pelo cansaço. A fraternidade foi minada pela desconfiança ou pela falsa confiança.

 

O governo, que de início financiava as mobilizações das organizações sociais, em um dado momento começou a recuar. As mobilizações auxiliavam o governo esquerdo-liberal a projetar políticas que sem apoio social teriam dificuldades de ser implementadas.

 

As elites agrárias sempre se opuseram a realização de uma reforma agrária ampla e massiva. Bastava o governo aventar a possibilidade de executá-la que a memória de Jango ressurgia nas manchetes do dia. Políticas como as da terra não foram realizadas no primeiro mandato e dificilmente serão recuperadas no segundo mandato. Naquele contexto, os financiamentos não eram gastos inúteis, era um investimento do governo para conseguir um aval às suas boas intenções.

 

No início do segundo mandato, as bases começaram a perceber que a terra foi ficando cada vez mais distante dos seus sonhos. A realidade passou a ser o acampamento. As explicações das lideranças começaram a ser contestadas. As bases avançam na sua compreensão da realidade política no mesmo compasso latino-americano.

 

Com o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), o governo deixa claro o modelo no qual acredita. Não será a reforma agrária um dos motores do desenvolvimento. Não será a reforma agrária do século XXI que vai liberar as forças produtivas do campo, tal como no século XIX. Aliás, a reforma agrária brasileira inverte este conceito: concentrar a mão-de-obra produtiva no campo para produzir mais com agregação de valor. É o retorno do campesinato moderno e não a sua fuga para a cidade.

 

Para garantir a execução do seu modelo o Executivo faz uma opção: prefere perder o apoio dos movimentos sociais, do que perder o apoio da base de sustentação parlamentar. O governo precisa desesperadamente deste apoio para aprovar os projetos do PAC. Assim, ele rifa os antigos companheiros e companheiras de jornada no momento que percebe que seus interesses são distintos.

 

Esta opção sangra as bases dos movimentos. Desatina as lideranças. Obriga-as a recuperar a memória esquecida das antigas práticas. Os movimentos estão despertando e buscam reconquistar a opinião pública. Perceberam, a tempo, que ficar dependente do governo não ajuda a avançar a luta. Cada qual desempenha uma função específica na vida da sociedade.

 

Por isso, o Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo (FNRA) vai relançar a campanha pelo limite da propriedade. Esta campanha foi suspensa para atender um pedido do então candidato a presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, em 2003. Para não provocar constrangimentos eleitorais à elite rural e urbana, o FNRA aceitou o pedido.

 

Ao se submeter a tal pedido, rebaixou a política da reforma agrária e apostou na identidade ideológica do candidato. Assim, colocou em risco a confiança das bases. Agora, busca recuperar o campo perdido.

 

Em tempos de cobras voadoras, os sapos aprendem a fazer gaiola.

 

 

Edélcio Vigna é assessor para políticas de Reforma Agrária e Soberania Alimentar do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos).

 

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