Correio da Cidadania

Ratzinger, Boff e a 'Igreja de Cristo'

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Historicamente, a Igreja sempre se afirmou como “a Igreja de Cristo”, a única Igreja, valorizando o elemento identitário entre a divindade e a instituição na terra. Depois da Reforma Protestante houve um primeiro momento de negação de qualquer valor eclesial das demais denominações que não a Católica e mais recentemente, e especialmente por ocasião do Concílio Vaticano II, evento Católico que reuniu os bispos de todo o mundo entre 1962-65, elevou-se o debate sobre a presença e natureza dessas demais denominações.

 

O documento preparatório do Concílio afirmava que “a Igreja Católica é (est) a Igreja de Cristo”, o que foi mudado no documento final por “a Igreja de Cristo subsiste na (subsistit in) Igreja Católica”. Tendo em vista que no imediato pós-Concílio em que os ventos progressistas eram francamente largos na Igreja Católica em todo o mundo, havia uma inteligência liberalizante sobre o texto conciliar e o trecho em questão não foge à regra. Na Europa predominantemente liberal e na América Latina mais propriamente libertadora, as correntes progressistas coincidiam na leitura do subsistit in em acordo com a aceitação da pluralidade eclesial, no sentido de que a Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica (de forma mais perfeita, em toda sua expressão) mas não somente nela, subsistindo também no mundo protestante, que também constituiria Igrejas.

 

Eis, no entanto, que o influxo progressista sofre duro golpe com a eleição de Karol Wojtyla. João Paulo II empreendeu uma cruzada pela retradicionalização da Igreja, focando em eliminar as leituras progressistas do Concílio Vaticano II. Nessa cruzada, seu mais poderoso aliado foi Joseph Ratzinger, que assumiu a Prefeitura da Congregação para a Doutrina da Fé em 1981.

 

A cruzada contra as leituras chamadas “desviantes” do Concílio Vaticano II se deu, sobretudo, naquilo que levava a um compromisso com a libertação dos pobres (Teologia da Libertação) e o que levava ao pluralismo religioso com a afirmação da plena eclesialidade protestante. O termo subsistit in é tomado por Raztinger como sinônimo de est, cuja troca, segundo ele, é motivada pela amenidade do novo termo e não por uma diferença em seu significado. Isto é, para ele, as organizações protestantes têm apenas elementos eclesiais e formam comunidades eclesiais, mas não igrejas.

 

O método da cruzada, como sempre, é a violência, neste caso a simbólica. A uniformização da doutrina, sobretudo o catecismo, foi algo fundamental nesse processo. A nomeação de bispos, cujo critério primaz passou a ser a plena fidelidade aos rumos de Roma, foi uma novidade e a condenação dos teólogos a face mais dura desse processo.

 

O caso mais notório em todo o mundo foi o processo contra o teólogo e frei franciscano Leonardo Boff, em função de seu livro “Igreja: Carisma e Poder”. O livro é condenado e o autor censurado e obrigado ao silêncio obsequioso por um ano. Boff é alvo não por si mesmo, mas símbolo da transgressão contra Roma. O ataque ao mesmo não é um ataque pessoal, mas à Igreja do Brasil, à Teologia da Libertação e a todos os dissonantes.

 

Dez anos depois da condenação, em 1994, e já fora da Ordem Franciscana, Boff escreve uma refutação da condenação, em que aponta citações erradas, cortes em frases e um pastiche (ajuntamento de trechos de vários artigos de modo a deformar seu significado) e classifica a maioria dos apontamentos como problemas de leitura ou irrelevantes, detendo-se no que considera como única questão verdadeiramente doutrinal da condenação que é a questão da singularidade/multiplicidade da subsistência da Igreja de Cristo.

 

Boff é dignado com uma nota que caracteriza sua posição como exemplo de erro no documento Dominus Jesus, de 2000, no que tange à questão da “Igreja de Cristo”. Isso foi respondido por Boff no artigo “Quem Subverte o Vaticano II, Ratzinger ou Leonardo Boff”, em que o brasileiro reafirma sua posição.

 

No “Respostas a algumas perguntas sobre certos aspectos da doutrina sobre a Igreja”, apresentada no dia 10/07/2007 pelo Vaticano, as posições de Boff voltaram a ser apresentadas como exemplo de erro.

 

O texto Conciliar é um só, mas sua interpretação é subordinada à correlação de forças que se movimentam no interior da Igreja Católica. Os grupos em luta pautam a intelegibilidade do catolicismo, refazendo, remoldando, ressignificando o mesmo dia após dia de acordo com sua dinâmica interna em diálogo constante com a realidade que o envolta.

 

As disputas na Igreja respondem à dinâmica de seus grupos em luta e os conservadores estão em alta, portanto, hoje, na Igreja de Roma, “a Igreja Católica é (est) a Igreja de Cristo!”.

 

 

Lucelmo Lacerda é historiador e mestrando em História pela PUC-SP. Estuda o processo eclesiástico sofrido por Leonardo Boff em 1984.

 

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