Simplesmente cristão
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- Luiz Alberto Gómez de Souza
- 26/07/2007
Os últimos documentos de Bento XVI e da Congregação da Doutrina aumentaram a tristeza que expressei em texto anterior e tive dificuldade, por uns dias, de escrever a respeito. Não por receio, mas para deixar passar um momento de indignação que não colaborava na lucidez. Houve recentemente um encontro ecumênico de teólogos em Belo Horizonte. Não sei ainda o que foi dito ali, especialmente pelos católicos. Há uma auto-censura em muitos, até certo ponto justificável, onde cumprem papel fundamental, por receio de perderem licença para ensinar em universidades católicas. A culpa é basicamente da estrutura eclesiástica autoritária. No tempo da ditadura, muitos se calaram para poder ficar no país, mas graças a isso puderam, no underground, trabalhar pela abertura. Então compete a nós, leigos livres, falar claramente, "oportuna e inoportunamente", como pediu Paulo.
O cardeal Newman escreveu que, no século IV, tempo em que o arianismo ganhava terreno, a maioria dos bispos era dessa tendência e o próprio Papa Libério estava na corda bamba. A Igreja foi salva pelo "consenso dos fiéis". O Padre Congar, citando o texto, acrescentou: "e pela ação dos teólogos". Hoje nos perguntamos: quais os que irão se manifestando hoje? Alguns, é claro. Leonardo Boff respondeu contundente: "Quem subverte o concílio: L.Boff ou o cardeal J. Ratzinger?”. Meu querido irmão Marcelo Barros, depois da Dominus Jesus, enviou carta a seu irmão João Paulo (irmão sim, "servo dos servos", não tanto supremo pontífice, titulo de origem pagã) e foi fortemente criticado pela presidência da CNBB. Teremos entre nós, em pouco tempo, Hans Küng. Vejamos o que terá a dizer.
Faz alguns anos, o grande e saudoso teólogo uruguaio Juan Luis Segundo, escreveu fortíssima "resposta ao cardeal Ratzinger". Desocultou o caráter ideológico de uma teologia norte-européia. E no fim disse: "Nessa luta mortal, conduzida com uma grande dose de ressentimento ou, talvez melhor, por uma teologia dependente de uma política sem esperança, nós os latino-americanos não conseguimos reconhecer nossa realidade, nem mesmo a realidade européia que sustenta o documento (primeira Instrução Ratzinger sobre a teologia da libertação).
Tenho certeza de que, em voz baixa, muitos bispos e teólogos discordam dos últimos textos sobre o latim e a exclusividade da Igreja romana. O bispo francês Jacques Gaillot, que perdeu sua diocese de Evreux e criou a diocese virtual de Partenia, escreveu um livro com o título: "O mundo grita, a Igreja sussurra".
Não cabe agora ficar apenas na exegese dos textos, para salvar esta ou aquela expressão, tentando minorar os estragos. Quero unir-me ao clima de mal-estar e de escândalo de outras Igrejas (Igrejas sim). Os caminhos ecumênicos foram sabotados e com eles também os do diálogo inter-religioso. O Papa disse no Brasil que só possui a verdade plena quem crê em Deus e em Jesus Cristo. E agora completa: a Igreja católica tem propriedade privada da verdade. Estamos nos aproximando perigosamente de uma antiga expressão hoje descartada: "fora da Igreja católica não há salvação". Como Leonardo Boff provou, vamos regredindo para antes do Vaticano II e do clima que o bom Papa João criou ao convocar um concílio que, em sua intenção original, tinha por missão procurar a unidade cristã.
Quem se afastou da Igreja, depois do Vaticano II, foram os tradicionalistas conservadores. Mas para com eles este Papa demonstrou enorme misericórdia. Esta palavra tem no final o significado de coração. Talvez para eles penda o coração de Ratzinger. Faltou misericórdia diante de Jon Sobrino, com uma cristologia tão legítima como a do teólogo Ratzinger, que até escreveu um livro a respeito, "não como papa, mas como teólogo". Que longe estamos do coração de João XXIII!
O cardeal Newman, depois do Vaticano I, disse em carta: "Pio ( Pio IX, que poderia ser hoje Bento, ou João Paulo) não é o último dos papas. Um outro papa e outro concílio polirão a obra". E falou, em outro texto célebre, do desenvolvimento da doutrina na história, hoje congelada com relação aos temas do ministério ordenado (para mulheres e pessoas casadas), da sexualidade e da reprodução, do celibato optativo, etc. Aliás, o cardeal Ratzinger, há um tempo atrás, expressou em artigo sua admiração por Newman.
Tivemos, no começo do século XX, um papa simples e de inteligência limitada, Pio X, que até virou santo, que sob a orientação do cardeal espanhol Merry del Val, fechou a Igreja à modernidade. E surgiu uma sociedade secreta integrista, Sodalitium Pianum, com tendência inquisitorial. Depois dele veio Bento XV, que desbloqueou o tema, dissolveu a sociedade e desterrou seu chefe, Benigni. Aliás, o cardeal Dalla Chiesa, naquele momento o novo papa, descobriu que, pouco antes, fora denunciado também como modernista. João Paulo II novamente enrijeceu na teologia. Só que seu conselheiro e orientador, no começo do século seguinte, ao contrário do caso anterior, tornou-se seu sucessor, com o nome de Bento XVI, na contra mão do outro Bento. Antes Leão XIII tinha deixado de lado, em boa parte, o Syllabus anti-moderno de Pio IX. E João XXIII, falando de uma "inesperada primavera" (1960), liberou os melhores teólogos de seu tempo, calados pela Humani Generis de Pio XII (1950). Agora que estamos num novo inverno, o que virá pela frente? Precisamos viver sempre nesta gangorra inquietante e corrosiva?
Como membro do "povo de Deus" (Vaticano II) quero ajudar, de meu canto, a preparar o concílio Jerusalém II com que sonhou D.Hélder Câmara. Jerusalém I quebrou o gueto da Igreja dos circuncisos, pela força de Paulo e, depois de uma hesitação, de Pedro, contra Tiago, "irmão" de Jesus (ler Atos dos Apóstolos, cap. 15). Agora, pretende-se construir um novo gueto romano. No meu caso, sigo dentro da Igreja Católica Romana, para mim, tradicional e historicamente a mais plena, com amor e impaciência filial, mas me recuso a falar em voz baixa. Em muitos automóveis se lê: "Tenho orgulho de ser católico". Chega de arrogância e triunfalismo, no momento em que a Igreja romana, nos Estados Unidos, se dessangra financeiramente, pela pedofilia de numerosos sacerdotes. O celibato obrigatório produziu em muitos uma sexualidade doentia e criminosa.
Se me perguntarem o que sou, responderei: "sou Cristão, membro de uma das várias denominações cristãs, que deveriam e deverão buscar a unidade". Dom Mauro Morelli se declarou bispo cristão de confissão católico-romana. A Igreja una e santa é a Igreja Cristã; esta igreja, hoje em estilhaços, é também pecadora, "santa et meretrix", como diziam os Padres dos primeiros séculos. Quero dar este testemunho aos irmãos imprecisamente chamados de separados e dizer, de dentro de minha Igreja, que esta deveria estar "semper reformanda", não importando quem foi o autor da expressão.
O filme Coeurs (há que ter corações com misericórdia) foi traduzido assim: "Medos privados em lugares públicos". Afastemos esses medos miúdos (la petite peur de Mounier), para dizer no recinto público de minha Igreja: como cristão, não posso deixar cair a luta pelo ecumenismo e pelo diálogo inter-religioso.
Originalmente publicado na rede Adital – www.adital.com.br
Luiz Alberto Gómez de Souza é sociólogo.
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