A ofensiva da empresarização dos clubes de futebol na Argentina
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- Irlan Simões
- 28/07/2018
Defasados economicamente frente ao portentoso e triliardário futebol europeu, os clubes sul-americanos se acostumaram a – talvez até aprimoraram-se para – servir de fornecedor de “pés de obra” para o epicentro financeiro do futebol global. Os jogos dos clubes das chamadas Big 5 – Alemanha, Espanha, França, Inglaterra e Itália – são verdadeiro desfiles dos melhores talentos do mundo, dentre os quais se destacam os craques nascidos e formados na América do Sul.
Não só isso. Com a entrada de gigantescos grupos econômicos em ligas menores, mas com recursos excepcionais, países como Catar, Arábia Saudita, Japão, Ucrânia, Grécia, Rússia, China, Estados Unidos – cada qual em seu período histórico específico – se consolidaram como o nível B e C dessa indústria internacional do futebol, relegando aos sul-americanos um nível ainda mais baixo da cadeia alimentar.
Compreender essa disparidade e a “decadência” do futebol da América do Sul no contexto global requer a análise de um conjunto de fatores. São eles que, descombinados ou mal combinados, acabam por redundar em formulações que se conflitam, muitas vezes espalhando soluções imediatistas que não necessariamente se consubstanciam enquanto resultados concretos. Dentre elas está o controverso projeto de conversão dos clubes sociais em “sociedades anônimas desportivas”, em detrimento ao seu caráter de “associação civil sem fins lucrativos”, tema desse texto.
Los clubes son de los socios, no de los empresarios. Reprodução: Coordinadora De Hinchas
De início, é crucial destacar que os imperativos macroeconômicos são incontornáveis em se tratando de futebol nos tempos de hoje. Em outras palavras, é dizer que não há como almejar uma liga de futebol forte, rica e dominante se ela está circunscrita em um contexto de um país com sérias fragilidades econômicas, produtivas, estruturais e sociais. Argentina e Brasil não deixariam de ser “países em desenvolvimento” se suas ligas adotassem os mais desenvolvidos modelos de gestão esportiva já inventados pelo homem. E desde já, coloco em questionamento suas pretensas infalibilidades, como mostraremos adiante no caso do Chile.
O berço das sociedades anônimas
Dito isto, podemos então tratar de entender o “framework” em que se estabelece a discussão da formação de clubes em empresas. Consolidadas e cada vez mais sofisticadas as modalidades de televisionamento de eventos esportivos, o futebol passou a ver constantes superdimensionamentos dos valores das suas cifras. À medida que os contratos de cessão de direitos televisivos eram aprimorados e valorizados, os salários dos atletas eram inflacionados, novos atores econômicos se apresentavam como intermediários, a concentração de poder econômico se restringia a um número cada vez menor de clubes, os estádios se transformavam em praças de alto padrão para o consumo esportivo de seus novos frequentadores endinheirados.
Esse processo, se pensarmos ainda a década de 1980, colocou em xeque os modelos tradicionais de gestão dos maiores clubes europeus. É na Itália, por exemplo, que a revelação de uma série de movimentações financeiras ilícitas se valiam dos clubes de futebol para se reproduzir. Por outro lado, o envolvimento estatal com os clubes, por meio de empréstimos ou favorecimentos diversos, inclusive perdão de dívidas, passava a ser inserido no bojo das pautas de uma renovação política crescente, que muitos nomearam por “neoliberal”.
Foram essas as argumentações que balizaram o início da ideologia da empresarização dos clubes, com o objetivo de garantir que a nova estrutura jurídica “limpasse” o futebol de atividades ilegais e dispendiosas ao conjunto dessa renovada indústria. Vale lembrar que já estamos falando de um esporte comandado pela FIFA de João Havelange, o dirigente que assume o posto com o discurso de exploração mercadológica do “produto futebol”, arregimentando apoio financeiros de grandes multinacionais.
Os Estados europeus vão, de forma consecutiva, aplicando legislações para a transformação dos seus clubes de futebol em sociedades anônimas. Considerando as Big 5, podemos apontar que Espanha e Alemanha se constituem como particularidades – a primeira por preservar o direito de alguns clubes de caráter especial (Real Madrid, Barcelona e Bilbao), a segunda por restringir a compra de ações a uma porcentagem menor do que a garantida à parte social do clube -, ambas aplicadas apenas na década de 1990; e a própria Inglaterra por já haver constituído suas instituições esportivas como empresas ainda no início do século 20.
O movimento de empresarização dos clubes europeus também se consolidou em ligas de menor porte no continente. Tal mudança estabelece um novo conceito de clube na Europa, agora passível de troca de proprietários mediante aquisição financeira. O que, no frigir dos ovos, não estabeleceu nenhuma mudança definitiva entre a atração dos clubes de futebol a grupos praticantes de atividades ilícitas de movimentações financeiras. Muito pelo contrário, o futebol se tornou ainda mais atrativo a tais interesses.
A mediação “passional” das antigas associações foram rapidamente trocadas pelas motivações financeiras dos seus novos acionários. Uma situação sedutora quando, por exemplo, um barão das telecomunicações decide que possuirá quase totalidade das ações do A.C Milan. Bastaria assinar o cheque. Por outro lado, o endividamento não se mostra uma questão superada. Em Portugal, por exemplo, as três principais SAD – a saber, Benfica, Sporting e Porto – acumulam nada menos que 600 milhões de euros em dívidas financeiras. (Fonte: SapoDesporto). Como apontam os pesquisadores ingleses David Kennedy e Peter Kennedy, a economia política do futebol-negócio europeu, em linhas gerais, é a do endividamento e do dispêndio.
No outro lado do Oceano
Já era antigo o clima de “atraso” do futebol brasileiro, agravado pelo fim da participação estatal no fomento do esporte no país, como é largamente conhecido do procedimento político da Ditadura Militar. De país tricampeão mundial e de campeonato interno onde desfilavam os maiores craques do planeta, o Brasil se tornou o reino da “decadência”, do êxodo dos bons jogadores ao Eldorado europeu – agora empresarizado e ditador de tendências.
Sentimento semelhante se observava na Argentina, e não foi à toa que as ofensivas empresarizadoras atingiram a América do Sul no mesmo contexto. O Brasil experimenta a Lei Zico (1995) e a Lei Pelé (1998). Em 1999, Mauricio Macri, então presidente do Club Atlético Boca Juniors, apresentou a proposta de SAD na própria Asociación Argentina de Fútbol (AFA).
O projeto foi esmagadoramente rejeitado pelos clubes, contando com apenas um único voto favorável: o do próprio Macri. Mas dava indícios do movimento que já se estabelecia, de aplicação do modelo “bem-sucedido” europeu no continente sul-americano. Em tempo: a parte do “bem-sucedido” fica por conta dos seus promotores, porque o que se noticia em larga escala são os casos não fracassados. Na mesma Argentina, por empreitada do mesmo Mauricio Macri, um modesto clube chamado Desportivo Español foi um laboratório das SAD. Hoje está fechado por conta de dívidas. No Brasil, os baianos Bahia e Vitória se afundaram em dívidas e foram rebaixados à Série C.
Com a resistência oferecida pelos próprios diretores dos principais clubes argentinos, o projeto das SAD foi para a geladeira. Eis que em 2017, agora com Maurício Macri presidente da República Argentina, retorna à pauta. Apresentado por Nicolas Massot, integrante do PRO, mesmo partido do governo, a Lei das SAD agora retorna como projeto de Estado. É o tema do momento no futebol local, numa situação em que os dirigentes de vários dos principais clubes já se posicionaram de forma contrária.
Ainda que estagnadas na Argentina e no Brasil, a ideologia do futebol-empresa triunfou no Chile. Em 2005, a lei foi aprovada diante do grave endividamento do Colo-Colo, um dos principais clubes do país. O “aftermath”, no entanto, vem mostrando poucos resultados concretos. Em termos esportivos os clubes chilenos pouco avançaram. Em termos financeiros, o depoimento mais interessante é de um dos seus principais promotores. Aspas para Francisco Vidal, ex-ministro chileno: “Me arrependo de ter impulsionado a lei. Era para salvar a atividade, mas resultou que os clubes agora devem o dobro de antes”. (Fonte: La Tercera)
A entrevista se deu ainda em 2013, onde também ressaltou a conversa que teve com René Orozco, então presidente da Universidad de Chile e opositor da lei, em que foi alertado sobre o risco de que os clubes, em pouco tempo, estariam nas mãos de grupos econômicos e de poder vinculados à política local. Foi o que Vidal constatou.
Essa talvez seja uma das lições aprendidas no Brasil, haja vista a rejeição da inserção da pauta das sociedades anônimas do futebol no bojo da criação do Programa de Refinanciamento de Dívidas de Clubes de Futebol (PROFUT). Elaborado no governo Dilma Rousseff, tal projeto recebeu um aditivo que versava sobre a obrigação da conversão dos clubes em empresas, proposto pelo deputado Otávio Leite (PSDB/RJ/), posteriormente vetado pelo governo na figura de Joaquim Levy então Ministro da Fazenda.
O argumento do representante do governo foi a necessidade de maior estudo sobre a matéria, ainda que tivesse ficado claro que, como foi na experiência da Lei Pelé (1998), a tentativa de implantação de uma medida de conversão compulsória dos clubes apresenta um front de batalha que muitos não se dispõem a entrar. Nos anos 1990 a Lei Pelé sofreu grande resistência da chamada “Bancada da Bola”, e recuou quanto à obrigatoriedade da conversão. Por outro lado, cabe análise do texto apresentado por Otávio Leite, que oferecia modelos de pagamentos bem mais vantajosos e sedutores aos clubes que aderissem ao novo formato.
Los hinchas y los clubes
Na Argentina o tema ainda se arrastará. Da parte dos torcedores locais, a organização Coordinadora de Hinchas vem mobilizando a oposição ao projeto através da campanha “No a Las SAD”. Com adesão de membros de mais de 25 clubes, a campanha denuncia o impacto dessa mudança em dois sentidos.
Por um lado os pequenos clubes “de barrio” da Argentina sofrerão um duro golpe, deixando de atender às suas comunidades no âmbito do esporte amador. Essas instituições, muitas vezes centenárias, também estariam na mira da lei, ainda que não sejam promotoras do futebol profissional de alto rendimento.
Como muitas frisam nos seus próprios nomes, são instituições sociais e culturais que atendem a comunidades com poucas opções de lazer e de prática esportiva.
No a las SAD. Reprodução: Coordinadora De Hinchas
No âmbito dos clubes inseridos na indústria do futebol profissional, a Coordinadora de Hinchas alerta para efeito que as SAD causarão na participação dos associados em geral. Diferentemente do Brasil, onde apenas poucos clubes permitem direito de voto dos seus sócios, na Argentina essa participação não apenas é mais ampla, como é intensa. As eleições dos clubes argentinos têm participação na ordem de três a dez vezes às vistas nos clubes brasileiros. A mero título de comparação, o Flamengo, o “Mais Querido”, elegeu sua última diretoria com menos de 3 mil eleitores. Já o argentino Belgrano, clube do interior, teve no voto de 7 mil sócios a escolha do seu futuro.
Esses são dois pontos nevrálgicos nessa discussão. Como apontam os pesquisadores Rodrigo Daskal e Verônica Moreira: “A possibilidade de que se permita a conversão dos clubes em empresas comerciais implica comprometer seu caráter de instituições de bem comum, cujos donos são seus sócios, atravessadas por uma série de características históricas”.
O que vale levar da experiência de resistência dos torcedores argentinos é que o futebol brasileiro se encontra numa bifurcação: ou os clubes serão afetados por uma nova investida de leis de empresarização, como foi visto no processo do PROFUT, ou deverão se abrir para aceitar a democracia participativa torcedora em suas instâncias.
Essa última questão é o que já está em curso e se aprimorando em alguns clubes como Internacional, Bahia, Vitória, Fluminense, Sport, Atlético-PR, Coritiba, dentre outros; ou que está sendo levantada como bandeira de movimentos de torcedores de clubes como Cruzeiro, Flamengo, Santa Cruz, Palmeiras, ABC e Corinthians.
Entre a incerteza dos avanços concretos do sedutor processo de empresarização do clube, e os difíceis princípios democráticos da participação do torcedor comum nos rumos das centenárias instituições futebolísticas brasileiras, um momento decisivo se desenha no horizonte. Esse é um tema do qual os estudos acadêmicos sobre o futebol não podem prescindir.
Referências:
DASKAL, R.; MOREIRA, V. Clubes argentinos. Debates sobre un modelo.
UNSAM edit. Buenos Aires, 2017.
SANTOS, Irlan Simões. Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2017.
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Irlan Simões é jornalista e autor do livro Clientes versus Rebeldes – novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno.
Retirado de Ludopédio