Correio da Cidadania

Náutico “de volta pra casa”: a última pá de cal num projeto que nasceu fadado ao fracasso

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Crédito: Náutico/Divulgação

O dia 16 de dezembro de 2018 já está marcado na história do futebol brasileiro. Isso porque no último domingo, diante de 17.357 alvirrubros, o Náutico celebrou o retorno à sua centenária casa, o lendário Estádio dos Aflitos. Após longos 1.663 dias de afastamento, os Timbus finalmente voltaram a efervescer o Caldeirão da Conselheiro Rosa e Silva. O amistoso com os argentinos do Newell’s Old Boys define o rompimento definitivo do Náutico com a Arena Pernambuco. Assim, a volta pra casa dos alvirrubros coloca a última pá de cal num projeto que nasceu fadado ao fracasso e simboliza a resistência ao processo de arenização pelo qual tem passado o futebol brasileiro nos últimos anos.

Não era preciso ser vidente para prever que o megalomaníaco projeto da “Cidade da Copa”, no município de São Lourenço da Mata, na Região Metropolitana do Recife, em que estaria inserida o que viria a se chamar Arena Pernambuco, seria malsucedido. Afinal, o projeto apresentado publicamente em 15 de janeiro de 2009, pelo então governador de Pernambuco Eduardo Campos, seguiu à risca o roteiro de um enredo vastamente estudado na literatura especializada, um fenômeno ao qual o pesquisador estadunidense Andrew Zimbalist definiu como “a ilusão dos megaeventos esportivos”.

O sociólogo Richard Giulianotti afirma que os “megaeventos esportivos podem ser considerados uma das mais poderosas manifestações contemporâneas da globalização”. E é neste contexto que se insere a lógica do novo paradigma do planejamento urbano, que visa a inserir a cidade na perspectiva globalizada. Surgindo, então, projetos urbanísticos que prometem o revigoramento da cidade — como a “Cidade da Copa” pernambucana.

A espetacularização da cidade serve para tentar atrair os consumidores para este novo produto urbano. Os megaeventos esportivos seriam, portanto, uma forma de tentar vender a cidade para o público consumidor. Uma justificativa para os investimentos em infraestrutura necessários para a sua realização.

Nas últimas décadas, no entanto, a realização destes megaeventos esportivos viu seus custos aumentarem de forma substancial, como nos mostram as pesquisas de Matheson e Zimbalist, por exemplo.

Além disso, o que vemos é a aplicação acrítica de uma lógica de desenvolvimento que se baseia no argumento da modernidade, porém distante do contexto e da particularidade de cada local, que impõe às localidades a adoção de tecnologias e mercadorias sem a devida reflexão acerca de seus efeitos para o conjunto da sociedade.

Este modelo de desenvolvimento se reflete na construção de equipamentos esportivos não apenas caros, mas também, como bem afirmou Gilmar Mascarenhas, em muitos casos “superdimensionados, cuja sofisticação técnica quase sempre não coaduna com as reduzidas possibilidades e receitas locais”. No mesmo sentido, o português Vítor Durão fala em criação de “estádios e/ou espaços urbanos que poderiam ser evitados”.

Tudo isso tem um risco enorme, que é a geração de um efeito negativo. O tal legado, que é aquilo que fica após a realização do megaevento esportivo, pode não ser compatível com a demanda da realidade local. E é precisamente o que vimos no caso da Arena Pernambuco.

Quem estuda Políticas Públicas aprende que o administrador da coisa pública, para definir as prioridades da agenda de investimentos governamentais, deve avaliar os impactos de um projeto e medir seus efeitos.

Algo que pode ser feito recorrendo-se ao chamado “método de apoio à decisão em Políticas Públicas”. Evidentemente, a “Cidade da Copa” e a Arena Pernambuco tiveram estudos prévios que suportaram a justificativa política por parte das autoridades públicas pernambucanas. O problema é que existe toda uma lógica por trás daquilo que Noam Chomsky definiria como a manufaturação do consentimento por parte da população. E, mais uma vez, é preciso dizer que a literatura especializada é pródiga em exemplos neste sentido.

De acordo com Kuper e Szymanski, “há nos Estados Unidos uma pequena indústria de ‘consultores’ que existem para fornecer justificativas econômicas para a frase: ‘Se você construir, ele virá’” (Kuper & Szymanski, 2010, p. 228). A frase tem como principal mensagem a ideia de que construir estádios é algo positivo. Segundo os autores, a ideia se originou nos esportes estadunidenses, porém se espalhou pelo mundo, a partir da Europa e do futebol. E consiste, basicamente, no seguinte: investidores privados convencem o poder público local a construir um novo estádio sob a alegação de que isto vai trazer dividendos para a municipalidade. Assim, os contribuintes financiam a construção do novo equipamento esportivo, enquanto o lucro é privado. Kuper e Szymanski dizem que a lógica norte-americana se aplica também à Copa do Mundo FIFA (Kuper & Szymanski, 2010, p. 228).

No mesmo sentido, Zimbalist afirma que, independentemente do sistema político, seja democrático ou autoritário, há sempre a tendência de que megaeventos esportivos sirvam aos interesses da elite empresarial local. Cria-se uma rede de interesses em torno dos projetos Olímpicos ou da Copa do Mundo. A composição desta rede vai desde empreiteiras (que vão executar as obras), bancos (que financiam), advogados e até mesmo hotéis e restaurantes, dentre outros. Todos esperam ganhar. E, para isso, tratam de convencer o comitê organizador, através da contratação de consultorias que elaboram estudos de impactos econômicos que subestimam os custos e superestimam o faturamento, de forma a obter o consentimento político.

Foi precisamente isso que aconteceu em Pernambuco. Embora os três grandes clubes recifenses tivessem seus estádios particulares, um deles, na altura da escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo 2014, com capacidade oficial para 65 mil espectadores (Estádio do Arruda, do Santa Cruz), ficou decidido que, por conta do torneio da FIFA, seria construído um novo estádio em Pernambuco.

O argumento recaía sobre as exigências do órgão máximo do futebol, que demandava parques esportivos modernos. Em Pernambuco, aliás, até hoje se discute se o Arruda não poderia ter sido “modernizado”, como foram os estádios do Beira-Rio, Maracanã e Mineirão. O que, certamente, teria custado substancialmente menos aos cofres públicos.

Discussão a respeito do local da “moderna arena” pernambucana para a Copa do Mundo à parte, estas exigências corroboram o que Souza Leão et al. explicam, a partir da teoria do pós-desenvolvimento, sobre a concepção universalista de desenvolvimento. Argumentam, aqueles autores, que uma lógica eurocêntrica prevaleceu na imposição de projetos que apresentavam modelos de arenas, como os existentes no futebol europeu — a chamada arenização. Algo que foi implementado à completa revelia da realidade pernambucana.

O Governo de Pernambuco contratou um estudo de viabilidade da Parceria Público-Privada (PPP) que viria a ser celebrada para a execução da obra e administração do novo estádio. A empresa contratada, sem licitação (o que é permitido pela legislação brasileira), para elaborar o projeto, foi a mesma que venceu o processo licitatório para a PPP, que previa a execução da obra e a gestão do estádio por 30 anos: Odebrecht. Um estudo que não fugiu à regra demonstrada em pesquisas de Zimbalist, Siegfried & Zimbalist, Baade, Baade & Matheson, e Kuper & Szymanski: superestimou o faturamento da Arena Pernambuco.

Apenas o Náutico assinou um acordo para mandar todos os seus jogos no novo estádio, abandonando os Aflitos em 2013 (tendo voltado para uma partida em maio de 2014, ocasião em que a Arena Pernambuco já estava sob a alçada da FIFA para a Copa do Mundo). Sport e Santa Cruz, clubes com as duas maiores torcidas do estado, optaram por seguir jogando na Ilha do Retiro e no Arruda, respectivamente, levando algumas de suas partidas apenas esporadicamente para o elefante branco pernambucano.

Com os elevados custos e a nítida inviabilidade do negócio, o Governo de Pernambuco encomendou um estudo à Fundação Getúlio Vargas (FGV). A análise da FGV constatou o óbvio: o empreendimento estava sendo subutilizado e de julho de 2013 (quando o estádio entrou em operação sob a gestão da Arena Pernambuco Negócios e Participações, consórcio criado pela Odebrecht) a junho de 2015, a receita projetada pelo estudo de viabilidade prévio seria de R$ 226,9 milhões, porém, a realidade se mostrou bem distinta, com uma receita obtida de apenas R$ 47,2 milhões.

Com base no relatório da FGV, em março de 2016, o Governo de Pernambuco anunciou o rompimento do contrato de PPP com a Arena Pernambuco Negócios e Participações.

A pá de cal na arenização do futebol pernambucano

A ruptura entre Governo de Pernambuco e Arena Pernambuco livrou o Náutico de sua obrigação contratual com o consórcio que geria a arena em São Lourenço da Mata. Sem nunca ter criado identidade com aquele equipamento esportivo, distante 19km do centro do Recife, a torcida alvirrubra passou a alimentar o sonho de retornar para o local de onde, para muitos, sequer deveria ter saído: o saudoso Estádio dos Aflitos.

Em 2016, o clube lançou a campanha “Voltando pra casa”, para angariar fundos visando às obras de reestruturação do estádio. Abandonado e sem os laudos técnicos necessários para receber jogos oficiais, os Aflitos teve que passar por uma profunda reforma. O projeto ganhou fôlego no início de 2018 e com ativa participação da torcida alvirrubra (através de campanhas de doação), além de parcerias com investidores privados, depois de quase dois anos de obras, o Náutico reabriu as portas dos Aflitos para a sua torcida.

Numa tarde de celebração do sentimento alvirrubro, o Timbu voltou para casa. A festa contou com homenagens a ídolos do passado — em especial ao artilheiro Kuki, símbolo máximo do clube nas conquistas dos Pernambucanos de 2001, 2002 e 2004 — e um amistoso com os argentinos do Newell’s Old Boys, que os alvirrubros venceram por 1x0.

O caso da Arena Pernambuco corrobora a vasta literatura que demonstra que o poder público investir em construção de estádios não é um bom negócio.
Em regra, o que fica especialmente para o poder local são as dívidas a serem pagas ao longo de muitos anos. A construção daquela arena refletiu uma lógica de modernidade que não passa de um processo de homogeneização a partir da imposição de conceitos político-econômicos hegemônicos, fruto da globalização. Replicaram-se em Pernambuco modelos dos centros dominantes, construindo um estádio caro e superdimensionado que não corresponde à sua realidade socioeconômica.

Os prejudicados foram o povo pernambucano (que vai ter que pagar essa alta fatura por muitos anos) e o torcedor alvirrubro. No domingo de 16 de dezembro de 2018 o Náutico voltou pra casa. Rompeu com a arenização. Retornou ao seu bairro, aos Aflitos que faz o coração alvirrubro pulsar mais forte. E colocou uma pá de cal num projeto que nasceu fadado ao fracasso.

Referências

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Emanuel Leite Filho é Jornalista e bacharel em direito, doutorando em Políticas Públicas (Universidade de Aveiro), autor dos livros “Cotas de televisão do Campeonato Brasileiro” e “A história do futebol na União Soviética”.

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