Correio da Cidadania

‘É preciso acabar com a sangria da dívida pública para mudar a agenda do Brasil’

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Em momento em que se abrem claros sinais de intensificação da recessão no país, associada às medidas de política econômica levadas a cabo pelo atual governo, o Correio entrevistou Maria Lúcia Fattorelli. Auditora da Receita Federal desde 1982, e coordenadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida, Fattorelli tem sido uma ferrenha crítica da predominância da ótica financeira na condução das políticas públicas. A auditora, que já participou do processo de auditoria pública da dívida do Equador, foi recentemente convidada por Zoe Konstantopoulou, deputada do Syriza, que ocupa a presidência do Parlamento Grego, a compor o Comitê pela Auditoria da Dívida Grega.

 

Sobre a experiência que tem vivido na Grécia, Fattorelli destaca que “ caso grego, a partir de um setor oficial, tem muita importância, porque significa levantar a cabeça e começar a ver alguma reação em relação ao que ocorre desde 2008. Obviamente, a pressão também aumentou sobre o Executivo, tanto que em 9 de abril o país pagou o FMI”.

 

Quanto ao que temos vivido em solo pátrio, a auditora considera uma enorme lástima um país, com as potencialidades do Brasil, mas com a pior distribuição de rendo do mundo, adotar um modelo que trava o desenvolvimento socioeconômico,principalmente por conta da adoção de um modelo econômico equivocado, que coloca como principais metas o superávit primário, sem questioná-lo, e metas de inflação. E de forma totalmente equivocada, porque o modelo de combate à inflação adotado no Brasil não combate o tipo de inflação que temos. Ele visa privilegiar o sistema financeiro, mais uma vez”.

 

Crítica também contumaz do modelo de atuação do BC nesse esquema, “que enxuga o dinheiro dos bancos, fica com esse dinheiro e lhes entrega títulos da dívida pública, para garantir-lhes rendimento com esses títulos”, Fattorelli clama por uma campanha ampla de conscientização popular sobre os nefastos e sombrios caminhos de nossa economia – única forma de inverter a lógica predadora, que enriquece o setor financeiro em detrimento da economia real e do povo trabalhador.

 

Leia abaixo a entrevista exclusiva, em que a auditora discorre ainda sobre os esquemas corrompidos que levaram à atual dívida exorbitante do estado de São Paulo, e sobre o sistema de financiamento eleitoral como indutor do distorcido esquema de prioridades do Brasil.

 

Correio da Cidadania: Após alguns meses à frente da auditoria da dívida pública grega, como você avalia o processo neste início de governo Syriza, no que se refere à nova condução que se propõe para a economia e às dificuldades que já aparecem no horizonte para enfrentar a Troika?

 

Maria Lucia Fattorelli: A comissão de auditoria foi criada em 4 de abril. E os trabalhos começaram em maio. Sua criação foi um ato político, a partir do parlamento grego, não do Executivo, e envolve tanto pessoas estrangeiras convidadas, como no meu caso, como também gregos que participam de órgãos governamentais, além de cidadãos, professores etc.

 

É uma iniciativa muito importante, porque significa a primeira atitude de questionamento desde o início da crise de 2008, quando a primeira reação geral foi empurrar o peso da crise para os países, que foram aceitando as medidas de austeridade e aumentaram suas próprias dívidas pra socorrer bancos, sem nenhum tipo de reação - à exceção da Islândia e, mais timidamente, da Irlanda.

 

O caso grego, a partir de um setor oficial, tem muita importância, porque significa levantar a cabeça e começar a ver alguma reação em relação ao que ocorre desde 2008. Obviamente, a pressão também aumentou sobre o Executivo, tanto que em 9 de abril o país pagou o FMI.

 

Também trocou o ministro das Finanças Varoufakis pelo ministro das Relações Exteriores nas negociações com credores, de modo que a pressão para que tudo continue como antes, com aplicação de políticas de austeridade e novos empréstimos para pagar empréstimos anteriores, sem nenhum questionamento, é brutal.

 

Por isso movimentos sociais lançaram manifesto pedindo apoio da comunidade internacional, autoridades, pessoas conhecidas, movimentos sociais, cidadãos, em apoio ao povo grego. A ideia é aumentar o apoio internacional pra criar um contraponto na conjuntura.

 

Os trabalhos estão só começando, ainda em fase preliminar.

 

Correio da Cidadania: Que comparação você faria da experiência vivida agora com a que teve lugar no Equador, também sob sua direção?

 

Maria Lucia Fattorelli: No Equador, foi uma coisa única, porque partiu de iniciativa do presidente da República, o Rafael Correa, que baixou um decreto, criou uma comissão, nomeou seus membros, tanto estrangeiros, como equatorianos, de órgãos oficiais ou especialistas. O peso político da Comissão de Auditoria no Equador era impressionante. Ele nos deu poderes pra questionar diretamente qualquer órgão, obrigando-os a atender qualquer pedido nosso e estabelecendo até uma pena para o não atendimento. Como nomeada, eu mesmo redigi pedidos de informações ao Banco Central equatoriano, à Procuradoria da Fazenda, encarregada do parecer jurídico de cada empréstimo.

 

Foi esse poder político que nos permitiu ter acesso direto a arquivos públicos e dos órgãos encarregados de manejar a dívida pública do país. Essa autoridade delegada pelo presidente permitiu que conseguíssemos realizar o que realizamos. Porque uma auditoria só acontece de fato quando se tem acesso a documentos e contratos. Caso contrário, fica-se à mercê de estudos publicados, sendo que a maioria vem de institutos ligados ao mercado financeiro, como o FMI, entre outros, financiados pelos próprios bancos, que são quem lucram com as dívidas públicas.

 

Correio da Cidadania: Contrariando as promessas de campanha, em poucos meses de mandato, o novo governo Dilma Rousseff impôs o chamado Ajuste Fiscal ao povo brasileiro, sem qualquer forma de debate público, e em detrimento de diversas áreas sociais e de infraestrutura pública. Como alguém que hoje está diante do drama grego enxerga esse quadro no Brasil?

 

Maria Lucia Fattorelli: É lastimável. O Brasil tem tudo pra viver uma realidade completamente diferente do que estamos vivenciando. Apesar de toda a espoliação desses 500 anos, ainda somos a sétima potência econômica mundial. Mas quando olhamos os indicadores sociais, temos a pior distribuição de renda do mundo, o fosso social do Brasil é o pior do mundo. Estamos com o desenvolvimento socioeconômico totalmente travado, principalmente por conta da adoção de um modelo econômico equivocado, que coloca como principais metas o superávit primário, sem questioná-lo, e metas de inflação. E de forma totalmente equivocada, porque o modelo de combate à inflação adotado no Brasil não combate o tipo de inflação que temos. Ele visa privilegiar o sistema financeiro, mais uma vez. O Copom já aumentou a taxa de juros pra 13,25 % e os títulos da dívida são vendidos a taxas bem superiores.

 

Qual a razão pra subir mais ainda juros já indecentes? A alegação é controlar a inflação. Mas quem provoca inflação no Brasil? Aumento dos preços da energia, do combustível, da água, dos transportes e alguns alimentos, em função de políticas agrícolas também equivocadas. Subir juros vai incidir no preço de alguma dessas coisas? Não, de jeito nenhum. Subir juros no momento é unicamente pra sangrar mais o país, garantir ainda mais recursos para o setor financeiro, que já leva a maior parte do nosso orçamento federal, justamente através dos juros. Afeta estados, municípios, impede totalmente a atividade econômica efetiva. E a ação do BC afeta não só tais juros da dívida, como também afeta, profundamente, os juros que o mercado financeiro cobra do setor privado, de empresas, de pequenos ou grandes comerciantes, de qualquer pessoa física.

 

No meu artigo ‘Por que os juros são tão altos no Brasil?’ explico por que tais políticas provocam um aumento absurdo da dívida: pra fazer uma troca com o mercado financeiro. O BC não tem deixado que os bancos fiquem com dinheiro no caixa. Significa que, se os bancos recebem um enorme volume de depósitos e remessas do exterior, dinheiro especulativo, o BC ‘enxuga’, fica com esse dinheiro e entrega títulos da dívida pública aos bancos, para garantir-lhes rendimento com esses títulos. Isso provoca aumento brutal da dívida,  já que o Tesouro repassa os títulos ao BC; o Tesouro emite e repassa. Já há 1 trilhão de reais de dívida do Tesouro com o BC, pra repassar aos bancos com tal mecanismo.

 

A consequência é que os bancos não vão emprestar dinheiro à população ou a pequenas empresas pra promover a atividade econômica. Pra que correr risco de emprestar no mercado, se tem a segurança de que o BC vai ficar com o dinheiro e pagar o rendimento do título da dívida com os maiores juros do mundo? Portanto, só se empresta à população ou a pequenos empreendimentos com taxas absurdas, escorchantes, que impedem a movimentação saudável da nossa economia.

 

Quanto mais negócios, mais empregos. Se os empregos são gerados, mais pessoas têm rendimento. E consomem mais, comem melhor, possibilitam melhor educação aos filhos... Isso é que gera um ciclo positivo na economia. Na medida em que seca o recurso financeiro, trava-se tudo. E o próprio BC impõe essa lógica, ao garantir rendimentos generosíssimos aos bancos, enxugando tais recursos.

 

Por que a Dilma entra nessa de ajuste fiscal, corte de direitos e impede reajustes salariais dignos? Vai travar a nossa economia. Ao mesmo tempo, abre mão de todos os limites e aumenta juros. Das eleições pra cá, sem contar o último aumento de juros, as taxas já subiram 16%. Não dá. Estamos empurrando o país para o aprofundamento de uma crise. É evidente.

 

Acredito que isso aconteça, em primeiro lugar, pelo atrelamento ao financiamento de campanha.

 

Embora a Dilma tenha feito um discurso à esquerda, se olhamos os dados do TSE,  vemos que ela e o PT foram fortemente financiados pelo sistema financeiro. Só a campanha da Dilma recebeu cerca de 24 milhões de Reais dos bancos. Infelizmente, isso não é de graça. Sabemos que é uma forma de comprar mandatos. Financiamentos elevados por parte de grandes corporações e setor financeiro têm preço, sempre cobrado depois. Através de benesses, financiamentos do BNDES ou adoção de políticas favoráveis ao setor. Isso é claro.

 

Existe ainda a pressão que a mídia sempre faz, ao descobrir e denunciar casos de corrupção, outra maneira de pressionar certas medidas. É assim que começa o governo Dilma.

 

Correio da Cidadania: Como imagina que vá ser, portanto, a condução da política econômica no Brasil nos meses vindouros e qual será o impacto, a seu ver, no crescimento do país, no emprego formal e no rendimento médio do trabalhador? E o que você diria desse processo de ajuste fiscal e política de austeridade que terão lugar no Brasil face a processos semelhantes por que passaram países europeus nos últimos anos, a exemplo de Portugal e Grécia?

Maria Lucia Fattorelli: Já estamos vivendo essa crise. Se olhar os servidores públicos federais, nem a perda inflacionária foi coberta nestes anos. Os servidores tiveram reajuste de apenas 5% nos últimos anos e a inflação superou os 5%. Em âmbito estadual e municipal, a mesma coisa, sem reajuste. No caso do setor privado, o ano começou com o crescimento elevado da taxa de desemprego.

 

Ao mesmo tempo, o governo limita o acesso ao seguro-desemprego. O que representa um fator de dificuldade para a pessoa que perde o emprego e não tem perspectiva, porque a economia está em retração. O comércio passa por crise gravíssima. O que mais vemos em todas as capitais do país são placas como “passa-se o ponto”, “aluga-se”, lojas fechando etc. Na indústria, já estamos há anos em processo de desindustrialização e gerando mais desemprego. Aqueles incentivos de redução de IPI etc. também bateram no limite.

 

Entramos num período da economia sem geração de emprego e reajuste salarial, com os preços subindo absurdamente. Quando se aumenta o preço da telefonia, energia, combustíveis e transportes, provoca-se aumento de tudo, porque todos os bens e serviços embutem tais quesitos em seus preços. Com a massa salarial em queda, os estoques ficam sem saída. E começamos a entrar num ciclo vicioso, aquela espiral que leva pra baixo.

 

Infelizmente, isso aconteceu na Grécia, Portugal, Espanha, Itália e até em países de economia mais avançada da zona do euro, como Alemanha e França. Todos que entraram nesse ciclo vicioso tiveram sua economia puxada pra baixo e desemprego brutal. A situação da Grécia, país entre os mais afetados, é considerada de crise humanitária, tamanho o volume de desemprego e desespero. Se pensarmos que a crise começou em 2010 e já estamos em 2015, imagine o desespero de um pai desempregado anos a fio, recebendo um seguro que não cobre despesas e sem saída, porque a economia só acumula dificuldade.

 

É um modelo doente, totalmente viciado, que coloca os interesses financeiros como um fim. O fim último é sacrificar tudo pra entregar dinheiro, juros e alimentar a ciranda financeira. A questão da dívida, há muito tempo, deixou de ser um instrumento de financiamento do Estado e passou a ser instrumento e grande negócio do setor financeiro. Todos os países aqui citados estão vivendo em função de sacrificar a população e a economia real – indústrias e comércio, que produzem bens e serviços que servem à população.

 

Os países sacrificam tudo apenas pra servir o setor financeiro. Este, sim, deveria estar a serviço da economia real. Tal inversão ocorre há anos no Brasil. Vemos na Grécia o que eles chamam de crise humanitária – pessoas sem energia, vivendo do lixo, sem acesso mínimo a alimentos –, mas quantos milhões de brasileiros estão há anos nessa condição, vivendo de uma simples Bolsa Família, que atinge mais de 50 milhões de pessoas?

 

Resumindo, as políticas adotadas neste início de governo Dilma enterram cada vez mais o país. E abrem brecha para a continuidade das privatizações, como vimos no anúncio do ‘pacote positivo’, que, na verdade, é de privatizações em vários setores. É pra isso que o sistema financeiro pressiona a dívida e seu sistema. Além de receber dinheiro dos juros, a dívida serve pra pressionar por mais privatizações. O que desejam é apoderar-se da economia real inteira.

 

Correio da Cidadania: Resumidamente, como está a atual divisão do bolo do PIB brasileiro?

Maria Lucia Fattorelli: Da massa da renda nacional, a parte que vai ao capital avança de forma brutal, por meio da dívida pública, tanto em âmbito federal, como estadual e municipal. Vivemos a mesma crise em todos os níveis dos entes federados. A participação da renda das pessoas vem encolhendo e precisamos rever a situação. Rever urgentemente.

 

Não acredito em solução a curto prazo, não consigo ver. E nem uma solução de cima para baixo, isto é, que viesse do legislativo ou executivo, exatamente por conta do atrelamento ao financiamento de campanha. Quem está nesses postos está atrelado aos setores financeiro e mega-empresariais. Mais de 90% chegaram lá financiados por tais setores. E eles estão muito satisfeitos, pois, apesar de ser o governo do PT, o projeto que está posto é de interesse do setor financeiro e mega-empresarial.

 

Portanto, não acredito em solução de cima, e sim a partir da sociedade, construída a partir da conscientização de como funciona o sistema da dívida hoje, o papel do Banco Central nas altas taxas de juros, que afetam até quem não tem empréstimo, afetam o país inteiro, como expliquei no artigo citado “Por que os juros são tão altos no Brasil?”. Resume um pouco do que falo aqui.

 

Assim, toda a sociedade tem de conhecer tais mecanismos, temos de vencer o mito de que compreender a economia é tarefa de especialistas, quem entende os termos complicados etc. Faço questão absoluta de não usar essa linguagem, pois nossa tarefa é urgente e temos de incluir toda a população pra exigir mudanças. E exigir de forma consciente e organizada. Por isso puxamos várias ações no âmbito da auditoria, criamos núcleos pra popularizar nossos estudos, produzimos cadernos, livros, todos de forma didática. Chamamos atos públicos cada vez mais pra denunciar a política que privilegia o setor financeiro e eleva tanto os juros da dívida como do setor privado, por ação do próprio BC.

 

Neste ano, vamos fazer um grande seminário nacional, porque vemos a crise em que vamos nos aprofundar – afinal, já estamos dentro dela. A ideia é partirmos de seminários locais, para depois chegarmos fortes em São Paulo, em julho. Não tem outra saída, se não fizermos formação e pressão social muito fortes, a crise será bem cruel.

 

Correio da Cidadania: Acredita que, de alguma forma, ou em algum momento, possa se instaurar no Brasil um processo de revisão e auditoria da dívida pública? Em que medida o trabalho desenvolvido no Equador, e agora na Grécia, serviria como molde a uma eventual iniciativa semelhante no Brasil?

 

Maria Lucia Fattorelli: Acredito que sim, lutamos pra isso. Nosso trabalho já serviu ao Equador, que conseguiu anular 70% dos títulos de sua dívida externa, que eram a parte mais onerosa da dívida. Essa ação permitiu uma inversão. Antes, os gastos da dívida eram um terço do orçamento social. Depois, o gasto social passou a ser o triplo do gasto com a dívida. Isso permitiu ao Equador reconstruir o sistema de saúde, pois os ajustes fiscais eram tão brutais que o financiamento do sistema de saúde pública chegou a zero.

 

O Correa reergueu o serviço, que agora chega ao país todo, e também teve dinheiro pra investimentos geradores de emprego e de infraestrutura, que são a base do desenvolvimento socioeconômico. Enfim, nosso trabalho serviu ao Equador e, se deus quiser, vai servir para a Grécia. Está só começando, mas só de dar esperança ao povo grego já é algo muito grande. Depois da inauguração dos trabalhos, ouvimos gente dizer “o povo grego voltou a sorrir”.

 

Vou ficar mergulhada quase dois meses na Grécia e espero que consigamos ajudar a rever a situação cruel de lá. E lutamos pra que nosso trabalho sirva ao Brasil. Esse é o nosso principal objetivo: a auditoria está prevista na Constituição brasileira e temos de lutar por ela. Já temos indícios de fraudes, ilegalidades, ilegitimidades inaceitáveis, em todos os níveis federativos. Em São Paulo, por exemplo, é um escândalo.

 

Correio da Cidadania: O que você poderia contar da dívida paulista?

 

Maria Lucia Fattorelli: A dívida do município de São Paulo é um escândalo. Em sua imensa maioria, mais de 90% dela é refinanciada pela União. Se voltarmos lá atrás, qual é o refinanciamento? É uma dívida que fizemos na década de 90, quando Paulo Maluf era prefeito, Celso Pitta secretário; depois, Pitta assumiu a prefeitura. Aconteceu com ajuda de grandes bancos privados – e isso foi provado em uma CPI da dívida - e corretoras. Os bancos ajudavam o município de São Paulo a produzir uma lista de precatórios. O que são os precatórios? Uma dívida resultante de decisão judicial.

 

Está documentado na CPI. Um servidor público ou uma empresa questionava um crédito junto à prefeitura na justiça e ganhava a ação. A seguir, a prefeitura era obrigada a pagar a dívida. Vale lembrar que na década de 90 os municípios e os estados tinham autorização para emitir títulos da dívida a fim de pagar os precatórios, porque eram obrigados a cumprir com a decisão judicial e não tinham dinheiro no orçamento para isso. Assim, lançavam seus títulos da dívida no mercado, vendiam e, com o dinheiro da venda, pagavam os seus precatórios.

 

Depois, a Constituição foi reformada e não existe mais essa prerrogativa. Mas na época existia, e qual era o esquema? Instituições financeiras, inclusive algumas bem importantes, participaram do processo. Aceitavam e compravam títulos da dívida que tinham sido emitidos para pagar precatórios, sendo que todo mundo no mercado sabia ser uma fraude, porque aquela era uma lista que já tinha sido utilizada anteriormente ou era uma lista montada ali dentro, como denunciava a CPI. Os títulos eram emitidos e, como o mercado sabia, pagava pouquíssimo. Um título lançado, se valia 1000 reais, era vendido por valor muito abaixo. Várias denúncias afirmaram que tais títulos chegaram a ser vendidos por 50% do valor, 30%, até 15%.

 

Dessa forma, os títulos eram vendidos a preços muito baratos, a prefeitura arrecadava pouco e logo em seguida os bancos faziam grandes negócios com os mesmos títulos no mercado secundário. Ainda que os títulos fossem vendidos um pouco abaixo do valor normal, esses negócios aconteciam no mercado secundário e possibilitavam altos ganhos. Virou uma ciranda tão grande que a base da dívida da prefeitura de São Paulo é desses títulos fraudulentos. Fraude comprovada por CPI da Câmara de Vereadores e outras. Houve também uma CPI dos títulos no Senado federal que também provou o mesmo. O que aconteceu? Absolutamente nada.

 

Quando a União, através do Tesouro Nacional, refinanciou a dívida da prefeitura de São Paulo, o fez por 100% do valor de passe, pelos “1000” de cada título, embora tais títulos tenham sido vendidos no mercado secundário por aqueles valores ínfimos que eu citei, de 15%, 30%. Há uma lesão total ao povo de São Paulo. Essa dívida é refinanciada. E mais: com uma taxa de juros absurda, algo que atualiza a dívida mensalmente com base no IGP-DI, um índice medido pela fundação Getúlio Vargas que engloba toda a variação cambial e toda a expectativa de crise que, às vezes, nem chega a se concretizar.

 

É por isso que a dívida refinanciada lá na década de 90 era de 11 bilhões, a prefeitura pagou 28 bilhões para a União e ela chegou, no final de 2013, a 53 bilhões de reais. É um grande esquema. E quem está ganhando? Unicamente o setor financeiro, que comprou os títulos na bacia das almas, bem baratinho, fez grandes negócios sabendo que eles eram fraudulentos e, depois, teve tais títulos financiados em 100% do valor. Ou seja, receberam todo o dinheiro de volta; e continuam recebendo juros altíssimos, porque, para refinanciar a dívida, a União teve que vender títulos da dívida federal para os mesmos bancos, pagando os maiores juros do mundo. Enquanto isso, a dívida aqui da prefeitura era corrigida de forma exponencial, em tempos de Plano Real, que pregava o fim da atualização monetária.

 

Ou seja, acabou a atualização monetária para tudo, para salários, preços, tudo, mas para a dívida não acabou. A dívida está  sendo corrigida mensalmente de forma cumulativa e, em cima da sua correção, correm os maiores juros do mundo. Portanto, se a sociedade não tomar conhecimento e reagir, essa dinâmica não será quebrada. Precisamos lutar por uma auditoria da dívida no âmbito da cidade de São Paulo, nos estados (porque o esquema da dívida nos estados também é inaceitável) e pela auditoria da dívida da União. Para isso temos que formar muita gente. É tarefa para gente muito animada. Precisamos incluir muitas pessoas e derrubar de vez o mito de que o tema é para especialistas.

 

Correio da Cidadania: Caso estivesse com as rédeas da economia da nação em suas mãos, o que a Auditoria Cidadã proporia como um modelo econômico alternativo para o Brasil, nesse exato momento em que medidas de forte impacto recessivo estão em andamento?

Maria Lucia Fattorelli: Um modelo econômico totalmente diferente do que está aí. Um modelo econômico de grandes investimentos. Temos de colocar, em primeiro lugar, o setor financeiro a serviço da economia e isso exigiria uma nova arquitetura da economia. O BC não pode continuar a serviço do sistema financeiro, tem de estar a serviço da nação. A preocupação número 1 do BC tem de ser a geração de emprego e renda, porque a população só é feliz se tem o ganha-pão, se tem o sustento da própria família, se tem como viver as suas potencialidades. Quando as pessoas estão desempregadas e subempregadas, sem condições de dar vazão às suas potencialidades, vemos o país inteiro perder.

 

A mudança começa pelo Banco Central e parando de tirar dinheiro dos bancos. Os bancos têm de ficar com dinheiro em caixa porque não vão querer perder, vão querer emprestar para a população. E vão chegar ao ponto de emprestar até a juros negativos, como está acontecendo no Japão. O que o Japão está fazendo depois daquela crise, do Tsunami que destruiu cidades e afetou a economia? Eles passaram a emitir moeda para investir. Aqui no Brasil, nós não podemos emitir moeda sob a justificativa de que vai gerar inflação. Mas nós podemos emitir dívida à vontade.

 

Olha o contrassenso. Teríamos de ver a questão da emissão de moeda em volumes necessários para financiar investimentos produtivos. E eu desafio os economistas que pregam que essa medida gera inflação a provarem que o recurso colocado para gerar investimento produtivo, saúde e emprego causa inflação. Pelo contrário, hoje eu coloco um exemplo bem fácil de compreender a nossa situação atual. Por que a energia está tão alta? Porque não foram feitos os investimentos necessários. Faltou dinheiro.

 

Se tivessem emitido moeda exclusivamente para investimentos em fontes alternativas de energia, inclusive fontes limpas, desenvolvimento de tecnologia de ponta (e nós temos todas as fontes energéticas possíveis nesse país), se tivessem emitido moeda para financiar cientistas, estudos, investimentos na construção e geração de energia alternativa, hoje nós não teríamos esse impacto brutal nas nossas vidas, provocado pela duplicação das nossas contas de energia. Afeta a indústria, que afeta o comércio, que afeta o consumo, que afeta a vida das famílias, ou seja, o aumento do preço da energia aumenta em cascata a inflação no país. Se lá atrás tivéssemos feito investimentos, tal não estaria acontecendo.

 

Portanto, podemos ver que é o contrário do que muitos economistas pregam. Primeiro, a mudança começaria na atuação do Banco Central. Ele teria de deixar dinheiro no caixa dos bancos e obrigá-los a emprestar para atividades produtivas. Teríamos de retomar as leis que impedem a especulação e regulamentar o sistema financeiro – desde o início do governo Lula, em 2003, o artigo 192 da Constituição foi totalmente apagado e o sistema financeiro está à vontade para fazer o que quer. Teríamos de coibir a emissão de derivativos, já que ela produziu o estouro da bolha da Europa e, a partir de 2009, o Conselho Monetário Nacional abriu as brechas para os bancos brasileiros operarem e criarem os derivativos no Brasil - uma verdadeira farra, uma ficção, que está produzindo uma bolha financeira. Teríamos de incentivar a atividade produtiva, principalmente os pequenos negócios. Teríamos de investir em tecnologia.

 

Olha, vocês têm ideia de quantos anos demora para sair uma patente no Brasil? Tenho uma amiga em Minas Gerais que fez uma descoberta revolucionária na área de implantes dentários e entrou com um pedido de patente aqui no Brasil. Fazem dez anos. Essa descoberta dela vai reduzir brutalmente o preço dos implantes e também o impacto na reabsorção óssea, é um negócio incrível. Resultado: ela entrou também com pedido de patente internacional. Já saiu a patente norte-americana e ela está vendendo sua invenção lá nos Estados Unidos, entendeu? Ela entrou com o pedido há 10 anos. Por que isso? O INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) não tem técnicos, ou tem só meia dúzia.

 

Nós temos que investir em tecnologia e destravar essa burocracia. O povo brasileiro é altamente criativo. O que acontece? Enquanto a coisa não deslancha aqui, nós temos noção de quantas são as patentes japonesas, norte-americanas etc. a partir de produtos brasileiros? Portanto, o primeiro passo na área econômica é destravar e modificar completamente a situação do Banco Central. Depois, investir em ciência e tecnologia - e a agenda número 1 seria investir pesadamente em educação. Toda escola do país tem que passar a ser escola de tempo integral, professor tem que ser a categoria mais respeitada do país, precisa viver só para se formar e ser um bom mestre, porque está formando as gerações.

 

Hoje acontece o contrário. Quantos estados brasileiros sequer cumprem o piso salarial dos professores? Quando se investe em educação, acaba se investindo em saúde, porque um povo bem informado adoece menos, polui menos, usa melhor todo o potencial etc. E é preciso investir em educação de todos os níveis: básica e universitária. Nós temos passado por uma decadência em função dos cortes, dos desrespeitos às classes dos professores e profissionais do ensino.

 

É necessário mudar radicalmente a agenda e para tudo isso precisa de dinheiro. Se não se derrubar o sistema da dívida, será muito difícil mudar a agenda. Pode até mudar, mas seria uma mudança a conta-gotas que não significa uma mudança real, apenas enganação. Para mudar tem de se rever o modelo e ter coragem de chegar e falar: chega de farra do sistema financeiro, agora vamos fazer uma agenda para o Brasil e para os brasileiros. Porque, se o Brasil funcionar bem, ajuda a América Latina inteira, ajuda a África, vai ser bom para o mundo inteiro.

 

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Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito e Raphael Sanz são jornalistas.

Comentários   

0 #1 RE: ‘É preciso acabar com a sangria da dívida pública para mudar a agenda do Brasil’valdir izidoro silve 22-06-2015 08:39
Maria Lucia são possíveis essas medidas nos marcos do capitalismo?
Abs
Valdir
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