“No momento, não há saídas progressistas para a Venezuela”
- Detalhes
- Gabriel Brito, da Redação
- 10/07/2017
Os protestos de rua comandados pela oposição conservadora da Venezuela completam 100 dias, com dezenas de mortes provocadas de lado a lado, muita repressão estatal e prisões políticas, como a de Leopoldo López (ex-candidato a presidente), solto neste domingo. A respeito deste quadro, conversamos com o economista argentino Rolando Astarita, que faz uma contundente crítica de todo o processo chavista, para além do atual presidente Nicolás Maduro.
“Não creio que se possa dizer que estamos diante de uma ditadura ao estilo Pinochet ou Videla. Mas, sim, diante de um regime com traços cada vez mais bonapartistas: a anulação, de fato, da Assembleia Nacional; os tribunais militares que julgam manifestantes; o sinal verde que se deu aos coletivos para reprimir. E, claro, ademais, registra-se um fortalecimento do poder militar e sua ingerência no Estado. De 32 ministros, 11 são militares e 11 estados têm governadores militares. Tudo aponta para o mesmo lado: um regime bonapartista, muito repressivo”, sintetizou.
Um dos editores do site La Clase e autor de diversos livros sobre economia e crítica ao capitalismo, Astarita adverte que no meio do fogo cruzado da política parlamentar e eleitoral fica uma população desconfiada de ambos os lados.
“A MUD parece apostar na quebra do governo e no levante de um setor das forças armadas contra Maduro. É possível que aposte também num pacto com dirigentes que abandonaram o chavismo. Seu programa econômico passa pela Reforma da Lei Trabalhista, a privatização ou reprivatização de empresas estatais, apoio ao investimento privado (isto é, garantia de uma elevada taxa de exploração do trabalho) e, claro, o fim do controle de preços e a reunificação cambial”, explicou.
Dessa forma, diante do programa semelhante ao de Temer e Macri pretendido pela oposição, o governo ainda consegue se sustentar, o que não o isenta de responsabilidades frente ao autoritarismo com que conduz seu cada vez mais desbotado “socialismo do século 21”.
“Por ora não vejo saídas progressistas. Um dos principais resultados do chavismo é que desapareceu toda a atividade da classe trabalhadora. Falo de atividade enquanto classe social politicamente constituída. Os trabalhadores que tomam parte das manifestações o fazem como indivíduos, não como classe. Isto é, não interveem com um programa e uma estratégia independente do chavismo e da MUD”, analisou.
A entrevista completa com Rolando Astarita pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como analisa a atual conjuntura da política venezuelana e a violência que têm marcado os últimos tempos?
Rolando Astarita: A crise política está determinada, fundamentalmente, pela crise econômica. Essa é de uma profundidade poucas vezes vista em países capitalistas. Só em 2016, a economia caiu 12% (segundo o FMI) e em 2017 cairia mais 6%. A pobreza abarca mais de 70% da população. Segundo o Centro de Documentação e Análise Social da Federação de Professores são necessários ao menos 17 salários mínimos para comprar a cesta básica. As pessoas mais pobres sobrevivem com farinha, arroz, hortaliças e tubérculos; muitos vivem com as sobras que recolhem dos restos de lixo; muita gente perdeu peso. Essa é a base do amplo descontentamento social e rejeição ao governo.
Tudo indica que caso se fizessem eleições, Maduro perderia pelas mãos da MUD – Mesa de Unidade Democrática. Diante de tal perspectiva, há um endurecimento repressivo do governo, que busca se sustentar a qualquer custo. Nisso, possivelmente convergem os setores mais vinculados à corrupção, fraude, crimes, que temem que uma queda do regime tenha consequência direta sobre eles; e também os convencidos ideologicamente do socialismo do século 21, que tratam de salvar esse projeto a qualquer custo.
Daí que o regime tenha se encerrado cada vez mais em si mesmo, mesmo à custa de muitos chavistas que abandonaram o barco. O ataque à Assembleia Nacional, a militarização, a anulação do referendo revocatório, a postergação das eleições, são parte dessa dinâmica de “fuga para a frente”.
Correio da Cidadania: Qual seria, a seu ver, a divisão de responsabilidades mais próxima da realidade de toda a violência registrada nos últimos meses e anos?
Rolando Astarita: Uma questão fundamental, que a esquerda muitas vezes parece passar por cima, é que não se pode construir socialismo algum contra a vontade da maioria da população. O velho ditado de que as baionetas servem para tudo, menos para se sentar em cima, se aplica ao “socialismo do século 21”. Com o agravante de que o programa chavista nem sequer tem traços de algo que possa mesmo se aproximar do socialismo, entendido este como controle e administração por parte dos trabalhadores dos meios de produção e mudança.
O que houve foi um capitalismo de Estado, dirigido por burocratas e militares, em cujo amparo se enriqueceu uma nova burguesia, e que fracassou por completo em tudo que tenha a ver com o desenvolvimento das forças produtivas. O resultado hoje é que muitos venezuelanos hoje identificam o socialismo com a fome e privações que estão a padecer. As manifestações, portanto, são a resposta lógica de um amplo setor da juventude e da população, mas trabalhadores assalariados e estudantes.
Sobre este descontentamento, logicamente, é que se apoia a MUD. Muitos dirigentes da MUD vêm do movimento estudantil. Mas também existem protestos nos bairros populares e empobrecidos, pela escassez, as filas, a inflação. Acontecem com certa independência das manifestações convocadas pela MUD. Muita gente está decepcionada com o chavismo, ainda que não apoie a MUD.
Também em muitos bairros há descontentamento com a repressão, desatada por conta da Operação para a Libertação do Povo. Com o argumento de combater a delinquência houve muitas violações dos direitos humanos por parte das forças policiais e repressivas. Tudo isso contribui ao desprestígio, deslegitimação e isolamento do governo Maduro. Agora a espiral de violência é responsabilidade central do governo Maduro. Inclusive setores chavistas o dizem.
Correio da Cidadania: Que avaliação você faz da presidência de Nicolas Maduro? É totalmente responsável pela enorme crise econômica e de escassez?
Rolando Astarita: O balanço não deve ser restrito a Maduro. Deve-se questionar o chavismo em conjunto. Não é responsabilidade exclusiva de Maduro não ter utilizado a imensa renda petroleira para industrializar ou potencializar o desenvolvimento econômico. O governo de Chávez também é responsável. A PDVSA, para usar um caso representativo, hoje produz 30% menos do que produzia em 1998 (uns 2 milhões de barris de petróleo por dia, contra 3 milhões), suas instalações e equipamentos precisam de reparos e renovação. Tal decadência produtiva não ocorreu nos últimos três anos, mas vem de antes.
Da mesma forma, a queda da produção industrial não se explica somente pelo governo Maduro. A crise produtiva da Sidor (Siderúrgica del Orinoco Alfredo Maneiro), por exemplo, vem de muito antes da morte de Chávez. E os casos são muitos. Assim mesmo, os negócios com o tipo de câmbio, com os subsídios, a fuga de capitais, a boliburguesia, não são fenômenos exclusivos do madurismo. Por isso também considero um erro criticar Maduro e reclamar “a volta ao legado de Chávez”. O legado de Chávez é exatamente este governo.
Correio da Cidadania: Concorda com a intelectual Margarita Lopez Maya, a apontar que o governo tem tido atitudes que na prática são típicas de ditadura?
Rolando Astarita: Não creio que se possa dizer que estamos diante de uma ditadura ao estilo Pinochet ou Videla. Mas, sim, diante de um regime com traços cada vez mais bonapartistas: a anulação, de fato, da Assembleia Nacional; os tribunais militares que julgam manifestantes; o sinal verde que se deu aos coletivos para reprimir. E, claro, ademais, registra-se um fortalecimento do poder militar e sua ingerência no Estado. De 32 ministros, 11 são militares e 11 estados têm governadores militares. Tudo aponta para o mesmo lado: um regime bonapartista, muito repressivo.
Além disso, a dinâmica na qual está embarcado o regime aponta para mais uma forma de ditadura aberta. Aproveito para destacar que este curso é apoiado por intelectuais de esquerda como Atilio Borón ou James Petras, que pedem repressão aberta a Maduro. Na prática, seria colocar o exército na rua. De fundo, é o velho critério stalinista: essa gente pensa que o socialismo se constrói sobre montanhas de cadáveres, com campos de concentração, prisões e polícia secreta. Sem importar o que possa sentir ou pensar a maioria da população.
Correio da Cidadania: O que comenta das táticas de luta utilizada pela direita venezuelana? Afinal, qual projeto ela teria a oferecer?
Rolando Astarita: A MUD parece apostar na quebra do governo e no levante de um setor das forças armadas contra Maduro. É possível que aposte também num pacto com dirigentes que abandonaram o chavismo. Seu programa econômico passa pela Reforma da Lei Trabalhista, a privatização ou reprivatização de empresas estatais, apoio ao investimento privado (isto é, garantia de uma elevada taxa de exploração do trabalho) e, claro, o fim do controle de preços e a reunificação cambial.
A aplicação deste programa imporá enormes sacrifícios aos trabalhadores e setores populares. Provavelmente, é por isso que no povo existe muito cuidado, inclusive distância, a respeito dos dirigentes da MUD, apesar do descrédito de Maduro.
Correio da Cidadania: Como enxerga o processo chavista, e por tabela a bandeira do bolivarianismo, em meio a essa enorme crise?
Rolando Astarita: O chavismo redistribuiu entre a população mais empobrecida parte da renda. A este respeito, melhorou a situação de muita gente. E parcialmente deu espaço para formas de organização popular, como sucedeu em muitas populações com a formação dos coletivos. Mas ao mesmo tempo tratou, por todos os meios, de suprimir qualquer forma de organização independente dos trabalhadores e dos sindicatos que não controlava. No site La Clase existe muita informação disponível, há anos.
Como disse, o chavismo tampouco foi um fator de desenvolvimento das forças produtivas. De fato, o país se reprimarizou. Mas, além disso, e acima de todas as coisas, levou milhões de pessoas que apostaram no “socialismo do século 21” à derrota, um beco sem saída marcado pela fome e o desespero.
É a este respeito que seu papel, do ponto de vista do socialismo, foi muito negativo. Alguma vez Trotsky, referindo-se à entrada do Exército Vermelho na Polônia, em 1939, dizia que se bem haviam sido estatizadas as relações de propriedade do setor ocupado, tal avanço desapareceria quando se punha na balança o dano que a ação de Stalin havia infligido à consciência do proletariado mundial. Este critério me parece chave.
Aos trabalhadores venezuelanos, e do resto do mundo, se lhes disse que o chavismo punha novamente na mesa a agenda do socialismo. Muitos intelectuais e organizações de esquerda na América Latina e Europa aplaudiram. Pensavam que pela mão de burocratas, militares, boliburgueses e arrivistas de todo tipo se iria reconstruir o socialismo. Agora a direita em todo o mundo diz “a Venezuela hoje é resultado do socialismo”. Não há maior dano à luta pela reconstrução do programa socialista.
Correio da Cidadania: Ampliando o olhar para o continente, como você resume o processo dos chamados “governos progressistas” que marcaram o início do século na América do Sul?
Rolando Astarita: Em geral, estes governos se montaram em uma fase ascendente do ciclo econômico, depois do longo ajuste recessivo dos anos 80 e 90. Além do mais, essa recuperação se combinou com a alta de preços das matérias primas. Tenhamos presente que a América latina é exportadora nata de matérias primas. Essa conjuntura possibilitou melhorias nas condições de vida de muita gente. Ao se colocar a melhora em linhas gerais, se relativiza a particularidade dos chamados governos progressistas (Brasil, Argentina, Equador, Bolívia).
Para dar um exemplo, também no Peru houve melhoras na renda e na redução da pobreza, e ninguém identifica os governos peruanos dos anos 2000 com o chavismo, o kirchnerismo ou o lulismo. Insisto, foi uma melhora bem mais generalizada. Ainda assim, o mais importante do ponto de vista do desenvolvimento é que em nenhum caso se superaram as estruturas da dependência e do atraso.
Por isso, quando se esgotou a fase de alta dos preços, se agravaram os problemas, especialmente no Brasil e na Argentina (além da Venezuela). Recordemos que Dilma já estava aplicando um programa de austeridade muito duro como resposta à crise. Uma resposta de lógica capitalista, como de qualquer outro governo. E na Argentina a economia havia começado a estancar em 2011, com desequilíbrios macroeconômicos indisfarçáveis.
Correio da Cidadania: Quais saídas “progressistas” poderíamos vislumbrar para toda essa crise, tanto na Venezuela como no continente?
Rolando Astarita: Por ora não vejo saídas progressistas. Um dos principais resultados do chavismo é que desapareceu toda a atividade da classe trabalhadora. Falo de atividade enquanto classe social politicamente constituída. Os trabalhadores que tomam parte das manifestações o fazem como indivíduos, não como classe. Isto é, não interveem com um programa e uma estratégia independente do chavismo e da MUD.
Se algo chama a atenção é a falta quase completa de intervenção da classe trabalhadora. Claro, alguns pequenos grupos de esquerda parece que estão tratando de mudar isso, mas por ora não conseguiram alterar a situação. E enquanto os explorados não interveem, as saídas da crise nunca são progressistas.
Leia também:
“Em termos práticos, o governo de Nicolás Maduro se tornou uma ditadura”- entrevista com Margarita Lopez Maya
“Todos os governos progressistas da América do Sul evitaram as mudanças estruturais” – entrevista com Fabio Luis Barbosa dos Santos, autor de “A crise da esquerda brasileira em perspectiva latino-americana”.
Vitória do correísmo não fará Equador escapar da regressiva dinâmica continental
Monoculturas florestais: a contrarreforma agrária sem fim do sul do Chile
Apontamentos sobre a Venezuela
Maduro, o indefensável?
Beatriz Sarlo: “os progressismos latino-americanos levaram à crise do conceito de progressismo”
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
Comentários
Assine o RSS dos comentários