5 anos de junho: “temos mais expectativa de participação política, mas não foram criados os espaços que a permitam”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 03/07/2018
As históricas manifestações de junho de 2013 trouxeram esperanças de uma nova política e um novo país para milhões de pessoas que pela primeira vez participavam de algum movimento político. Após completarem meia década, no entanto, estamos diante de um país em frangalhos e governado por figuras que trazem a imagem do Brasil mais conservador e recalcitrante aos novos tempos. No meio disso, guerra de narrativas que mais dificulta do que favorece a compreensão daqueles dias. Nesta entrevista, Paulo Spina, do Fórum Popular de Saúde, faz algumas reflexões sobre tudo isso.
“Relações causais que ligam 2013 diretamente a determinados eventos políticos que aconteceram neste período de cinco anos são simplificações que, ao meu ver, não explicam Junho e não explicam a conjuntura, mas são apenas interpretações colocadas na guerra de narrativas que estamos vivendo atualmente”, explicou.
Para além de rememorar o que esteve em questão naquelas jornadas que colocaram mais de 10 milhões de brasileiros nas ruas de cidades de todos os tamanhos, Spina critica a disputa de narrativas convencionalmente tachadas à esquerda ou à direita, que no final das contas não contribuem para o fomento de um sistema político mais popular e participativo.
“Só mudaremos a sociedade quando tivermos realmente uma lógica de democracia que supere a representação e coloque o poder popular real de forma efetiva, penso que precisamos abandonar narrativas que desqualificam pessoas que ocupam as ruas. Isso não significa concordar com todo protesto, mas significa ter disposição para ouvir, dialogar e estar aberto aos confrontos políticos”.
De todo modo, Spina que participou do ciclo de debates “Junho Sendo”, confere importância a muitos aspectos manifestados naqueles protestos e ressalta que a reação da classe política brasileira, inclusive da esquerda que se encontrava no poder, sempre foi o negar tudo que as ruas gritavam e manter os velhos acordos de governabilidade.
“O abalo das elites políticas diante dos protestos, a incapacidade do PT de interagir no ciclo e o oportunismo dos seus próprios parceiros fez com que tal aliança governista fosse abandonada e setores do então governo não apenas depuseram Dilma, como a cada dia contam uma mentira em cima da outra aprofundando a instabilidade política. Mas apesar de estes dois setores do antigo governo estarem em franca oposição numa polarização por vezes nomeadas de esquerda e direita, eles são partes de um mesmo projeto que envolve de um lado fazer ajustes econômicos que interessam às elites e de outro ‘estancar a sangria’”.
A entrevista completa com Paulo Spina pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Muitos meios de comunicação e organizações políticas e sociais trataram de rememorar os cinco anos das manifestações de junho de 2013, quando cerca de 10 milhões de pessoas foram às ruas do Brasil por volta de duas semanas consecutivas. Como observa esse momento em perspectiva?
Paulo Spina: Junho de 2013 e as milhares de pessoas que ocuparam as ruas foram o estopim de um ciclo de protestos. Um ciclo não se inicia de uma hora para outra, é precedido de inúmeros processos de confrontos políticos. Mas foi em junho de 2013 que os protestos romperam o cotidiano das pessoas e produziram um acontecimento que abalou as estruturas políticas e derrubou narrativas em vigor naquele momento. Este abalo produziu aberturas políticas que foram e ainda estão sendo intensamente disputadas por diferentes conjuntos de narrativas. E esta disputa se dá em diferentes campos, mas principalmente nas ruas.
Olhar para Junho de 2013 significa olhar para o momento em que as elites políticas, econômicas e midiáticas perderam - mesmo que momentaneamente - o controle ideológico do que estava por vir. O descontrole não foi o descontrole do povo em relação à democracia, mas o descontrole das elites em relação ao povo e aos rumos do que eles entendem por democracia. E este momento produziu efeito em diferentes campos de pensamento. A rua ganhou importância significativa com seus conflitos, choques de repertórios e disputas ideológicas.
Portanto, ao olhar em perspectiva cinco anos depois, penso que 2013 inaugurou um novo período da nossa história política. O modelo da redemocratização baseado em uma democracia do consenso de baixa intensidade parece ter ficado para trás por algo que ainda está em disputa e ainda não é possível de ser nomeado.
Correio da Cidadania: Como você relaciona aquelas revoltas com a atualidade do país?
Paulo Spina: Aquelas revoltas estão muito relacionadas com nosso contexto atual, pois elas abriram um ciclo de confrontos que não acabou. Na teoria dos movimentos sociais um ciclo de confrontos ou ciclo de protestos em geral tem características semelhantes no seu início, mas muito diferentes quando analisados historicamente no seu desenrolar e no seu final. O abalo nas estruturas políticas provocado pela juventude que ocupou as ruas contra as tarifas produziu reações nos mais diversos grupos e atores políticos que disputam não apenas o poder das estruturas, mas as opiniões e subjetividade das pessoas em geral.
Relações causais que ligam 2013 diretamente a determinados eventos políticos que aconteceram neste período de cinco anos são simplificações que, ao meu ver, não explicam Junho e não explicam a conjuntura, mas são apenas interpretações colocadas na guerra de narrativas que estamos vivendo atualmente.
Essa temporalidade que privilegia um imediatismo de causa e efeito precisa ser questionada por análises que olhem para este ciclo de protestos como um processo em que uma temporalidade de mais longo prazo está em disputa. E neste sentido, e para além da polarização formada no país, é possível verificar que a partir de 2013 temos uma expectativa de participação política maior das pessoas, entretanto, não existem espaços constituídos para esta participação direta o que, em conjunto com as dificuldades econômicas do país, aprofunda o ciclo de confrontos.
Correio da Cidadania: Falando das narrativas, o que pensa da enorme disputa em torno daqueles atos, inclusive por parte de uma mídia monopólica que se num dia exigiu a violência do Estado no outro pretendeu pautar as pessoas? Afinal, quais eram as grandes pautas daqueles dias, em sua visão?
Paulo Spina: A disputa de narrativas que se deu, principalmente na segunda semana dos protestos, faz parte da percepção de diversos setores das elites políticas, midiáticas e econômicas do quanto eram sérias, “pra valer”, as manifestações contra as tarifas. O abalo foi tão grande que a mídia precisou sair da sua suposta imparcialidade e de forma escancarada entrar nesta disputa. Editoriais da Folha, opiniões do Arnaldo Jabor, pesquisa do Datena são exemplos tanto do abalo frente aos acontecimentos quanto da disputa de narrativas que ainda hoje faz parte do nosso cotidiano.
A pauta do movimento iniciador do ciclo - o Movimento Passe Livre - foi contra o aumento das tarifas do transporte, entretanto os protestos de junho de 2013 não constituíram um único movimento social, mas sim - como disse anteriormente - a abertura de um ciclo maior de protestos que atravessa a sociedade com uma rápida difusão das ações coletivas de setores mais mobilizados para outros setores menos mobilizados, combinando participação organizada e não organizada, o que mudou não apenas as formas de protestar, mas também as pautas.
Nesta fase de difusão dos protestos, em meio a uma profusão de narrativas e cartazes, as grandes pautas que tiveram mais destaques foram a defesa dos direitos sociais e o protesto contra a corrupção.
Correio da Cidadania: Vê relações diretas com os protestos verde-amarelos de 2015-16 que culminaram na deposição de Dilma Rousseff?
Paulo Spina: As relações dos protestos verde-amarelos que culminaram com a deposição de Dilma têm a ver com o contexto político aberto por junho de 2013, mas não numa perspectiva causal no qual a própria narrativa petista tenta fazer de forma simplificada seu enquadramento. Se até então o governo do PT havia de certa forma governado em torno de um suposto consenso político sem pressão das ruas, junho de 2013 sinalizou fissuras neste consentimento e abriu tanto oportunidades políticas quanto ameaças para diversos setores e espectros políticos atuarem.
Por exemplo, é no caldo de 2013 que o MTST amplia suas ocupações e se impõe como um movimento social de esquerda dos mais relevantes para o contexto conjuntural brasileiro, assim como movimentos da direita surgiram e ocuparam as ruas com uma narrativa que combinava antipetismo com crítica à corrupção. Mas importante deixar claro que os protestos de 2015 e 2016 tinham uma composição completamente diferente de 2013, assim como suas pautas e performances.
Outra diferença importante de destacar foi a cobertura dada pelas grandes mídias. Enquanto em 2013 os protestos foram tratados como guerra, em 2015 e 2016 foram, em geral, incentivados. Desta forma não são possíveis muitas aproximações entre 2013 e os protestos de 2015 e 2016, entretanto eram pessoas ocupando as ruas em um período histórico próximo.
Nas disputas narrativas que fazem parte do confronto político a desqualificação dos manifestantes, infelizmente, é uma prática comum em diferentes lados do confronto. Se as grandes mídias fizeram, em determinado momento, o enquadramento dos manifestantes de Junho como baderneiros, setores da esquerda desqualificaram as pessoas que foram para as ruas em 2015 e 2016 os enquadrando como “manifestoches”.
Para mim que sou militante, que estudo a participação popular e penso que só mudaremos a sociedade quando tivermos realmente uma lógica de democracia que supere a representação e coloque o poder popular real de forma efetiva, penso que precisamos abandonar narrativas que desqualificam pessoas que ocupam as ruas. Isso não significa concordar com todo protesto, mas significa ter disposição para ouvir, dialogar e estar aberto aos confrontos políticos.
Correio da Cidadania: Como analisa as atuações dos espectros políticos de direita e esquerda em relação àquele momento?
Paulo Spina: Vamos olhar anteriormente para o próprio partido do governo em 2013, o Partido dos Trabalhadores. O PT ao invés de buscar explicações simplificadas que colocam a participação das pessoas ocupando as ruas em 2013 como o problema inicial que levou à deposição de Dilma deveria problematizar sua própria participação no interior do ciclo de confrontos, perguntando-se: poderia o PT de Rui Falcão, Haddad e Dilma ter reagido em outros termos a esta grande mobilização nacional?
Destaco três momentos que envolveriam tal autocrítica. Primeiro: e se Haddad tivesse se distanciado de Alckmin na forma de lidar com o movimento social, com os protestos, com sua repressão e até com as próprias planilhas? E se Rui Falcão, ao invés de mobilizar o PT para ocupar as ruas e defender seus governos no dia 20 de junho de 2013, inflando o sentimento antipartidário que já rondava as manifestações, tivesse cobrado dos seus próprios governantes petistas uma outra postura diante das mobilizações?
E, por último, se Dilma tivesse ficado ao lado das mobilizações e não da sua base política parlamentar, simbolizada pelo seu então vice-presidente Michel Temer, que a fez recuar de proposições como um plebiscito para uma assembleia constituinte?
O abalo das elites políticas diante dos protestos, a incapacidade do PT de interagir no ciclo e o oportunismo dos seus próprios parceiros fez com que tal aliança governista fosse abandonada e setores do então governo não apenas depuseram Dilma, como a cada dia contam uma mentira em cima da outra aprofundando a instabilidade política.
Mas apesar de estes dois setores do antigo governo estarem em franca oposição numa polarização por vezes nomeadas de esquerda e direita, eles são partes de um mesmo projeto que envolve de um lado fazer ajustes econômicos que interessam às elites e de outro “estancar a sangria”.
A atuação do espectro político à esquerda do petismo - protagonistas iniciais dos protestos - se expressou em inúmeras lutas que vieram depois, como as ocupações de escolas, mas sua intervenção é fragmentada. De um lado grupos autônomos que por terem a convicção de que nesta estrutura de democracia não é possível ir além de um falso melhorismo têm dificuldade de uma intervenção articulada nacionalmente e formulação de um projeto de superação do atual modelo. De outro, grupos ligados aos partidos de esquerda, ao se depararem com a tarefa de formular um projeto nacional, encontram dificuldades em dialogar com um Brasil que vive nas periferias; ao mesmo tempo, ao se aproximarem dos dilemas petistas e da defesa de seu líder se distanciaram de uma camada da população muito permeada pelo discurso de combate à corrupção.
Correio da Cidadania: Como você descreve a atualidade dos movimentos sociais brasileiros? Há uma transição de época, estruturas, práticas?
Paulo Spina: Os movimentos sociais brasileiros estão sob o impacto de junho de 2013. Os movimentos da direita tomaram o caminho eleitoral e parecem viver um tempo de desgaste das suas lideranças. Já os movimentos ligados ao petismo estão na Frente Brasil Popular, mas parecem ainda ter seu destino demasiadamente atrelado às movimentações petistas e, portanto, ao próprio Lula.
A outra Frente, denominada de Povo Sem Medo (FPSM), decidiu entrar na disputa de um projeto político institucional a partir da liderança do MTST. Esta decisão irá trazer tanto processos de fortalecimento quanto de desgaste para os movimentos ligados à FPSM e suas lutas, mas a dimensão dos impactos dependerá dos posicionamentos da sua liderança e também do seu desempenho eleitoral.
Os movimentos autônomos também sentem os impactos dos desdobramentos destes cinco anos de junho de 2013 e formam redes de conexões entre os movimentos, protagonizam lutas, mas vivem um período de pouca influência diante do contexto nacional.
No pós-eleições de 2018, independentemente de quem for eleito, penso que teremos um começo de 2019 nada tranquilo, com governos querendo aproveitar seus seis meses de “lua de mel” para aprovar reformas contra o povo. Assim, novas articulações dos movimentos vão ocupar as ruas para resistir.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
Comentários
10 milhões na rua e vocês têm a coragem de dizer que foi a esquerda ?......vocês são cúmplices deste caos....
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