Correio da Cidadania

“Intervenção militar no Rio não respondeu nem necessidades da população, nem das polícias”

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Enquanto o Brasil se acostuma com cada vez mais mortes brutais de crianças, como a do menino Kauan Peixoto, de 12 anos, provavelmente baleado por policiais militares, foi publicado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes o relatório final da Intervenção Militar Federal, realizada no Rio de Janeiro entre fevereiro e dezembro de 2018. O Correio da Cidadania entrevistou Pablo Nunes, coordenador do Observatório da Intervenção e um dos responsáveis pelo estudo, que fez uma longa análise dos seus resultados.

“Além de não priorizar as ações sobre mortes violentas, a intervenção tampouco agiu no que se refere a mudanças de lógicas corporativas. A PM continua fazendo suas ações com ferramentas analógicas, sem integração, investimento em inteligência e automação em processos. Vários batalhões ainda controlam armamento de policiais por meio de caneta e caderno”.

Em suma, Nunes e toda a equipe de pesquisadores e acadêmicos são taxativos em afirmar o fracasso de concepção e execução da intervenção, que repetiu o enfoque bélico e militarista de velhas episódios das políticas de segurança. Além disso, novamente deram-se poucos ouvidos às vozes da cidadania.

“Como as operações seguiram a lógica de confronto e falta de diálogo, sentimos um acirramento de tensões que já eram grandes. Apesar de sabermos que a maioria da população apoiou a intervenção, o que se deve a várias explicações, quem mora nas áreas que são alvos das operações violentas tem opinião bem diferente. Verificamos que tal relação continua muito conflituosa e a intervenção, que poderia ser um terceiro elemento na mediação entre polícia e moradores, não serviu de nada”.

Sobre a execução orçamentária, o relatório também traz alguns dados intrigantes. Desde a maior eficiência na interceptação de cargas roubadas por uma Polícia Federal que trabalhou por fora do escopo da intervenção até o enorme privilégio às Forças Armadas nos investimentos. Se há legado, explica Pablo Nunes, é sobre o que não deve se fazer.

“É ineficaz, só traz mais confronto, mais tiroteio, mais bala perdida e mais mortes (...) A intervenção se focou em grandes e midiáticas operações para combater uma ponta do crime rapidamente substituível. Se prendem um grupo hoje, daqui uma semana aparece outro pra fazer a mesma coisa. Precisamos pegar o elo não compreendido da cadeia e agir sobre ela. Investir em inteligência e evitar ao máximo confrontos que não fazem sentido”.

A entrevista completa com Pablo Nunes pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: O relatório é enfático em afirmar que a intervenção deu errado. Por quais razões?

Pablo Nunes: Deu errado porque não privilegiou os problemas graves de segurança pública apresentados pelo Rio de Janeiro durante anos. Temos taxas de mortes violentas completamente inadmissíveis e sobre elas pouco se fez em termos de ações durante o período da intervenção.

Além de não priorizar as ações sobre mortes violentas, a intervenção tampouco agiu no que se refere a mudanças de lógicas corporativas. A PM continua fazendo suas ações com ferramentas analógicas, sem integração, investimento em inteligência e automação em processos. Vários batalhões ainda controlam armamento de policiais por meio de caneta e caderno, algo realmente complicado do ponto de vista logístico e investigativo.

A intervenção, portanto, pouco fez pela reestruturação das forças de segurança, além de cometer o erro de investir em operações violentas, e não exatamente reduzir ou controlar as mortes violentas.

Correio da Cidadania: Ao analisar números, o pesquisador Pedro Paulo da Silva afirma que a intervenção priorizou o patrimônio privado antes da vida. Como você entende isso?

Pablo Nunes: Desde o começo ouvíamos os porta-vozes falarem de forma contundente sobre o objetivo principal: reduzir roubos de carga. É completamente fora da realidade fazer esse tipo de escolha, isto é, uma política que custou mais de um bilhão de reais direcionada ao combate a crimes contra o patrimônio, não aos crimes contra a vida.

Nesse sentido, a intervenção trabalhou muito em operações para desarticular algumas partes da cadeia de crimes de roubo de carga, deixando de proteger a vida do cidadão carioca.

Correio da Cidadania: Uma contradição chamativa dos números apresentados é que se, de um lado, houve grande crescimento nas apreensões de munição, por outro lado o número de tiroteios aumentou bastante. Como isso pode ser compreendido?

Pablo Nunes: Sobre apreensões temos um dado interessante: foram quase totalmente frutos de operações da Polícia Rodoviária, que não estava sob intervenção e já tem histórico de realizar grandes apreensões nas grandes vias, em especial a Dutra. Assim, tal resultado não nos parece efeito da intervenção. Além disso, as operações da Polícia Rodoviária geralmente são feitas sem confrontos e tiros, antes de as mercadorias roubadas chegarem aos locais onde podem ser usadas. É justamente esse o trabalho que gostaríamos de ver as polícias priorizarem, ao invés do confronto em favelas.

Já o número recorde de tiroteios tem relação total com as imensas operações policiais realizadas pela intervenção em 2018. Se verificamos os dados de operações, números de tiroteios e mortes por policiais há um número muito parecido. Os recordes de operações, tiroteios e mortes foram em agosto, num sincronismo bárbaro e cruel, a mostrar que colocar polícia na rua de modo desordenado e sem investimento em inteligência só pode produzir este tipo de fruto.

Correio da Cidadania: Considerando o que você disse também na primeira pergunta, para os agentes públicos que participam das ações houve vantagem no método de trabalho da intervenção?

Pablo Nunes: Conversamos com alguns policiais e todos eles disseram que a intervenção ajudou muito pouco no trabalho em si. Falamos com alguns policiais civis que trabalham na perícia, área importantíssima para investigar e solucionar homicídios, e eles relatam que não houve qualquer mudança estrutural significativa. O mesmo se viu nas diversas corporações policiais.

Até porque boa parte do que foi comprado com o R$ 1,2 bilhão, que serviriam pra reestruturar alguns setores das polícias, ainda não chegou, não foi pago. Mesmo três meses depois da intervenção, o pouco que foi investido não foi de fato entregue às corporações.

Dias antes do carnaval, foram entregues mais 152 viaturas, empenhadas no ano passado. Portanto, os policiais ainda esperam os efeitos da intervenção, mesmo que ela já tenha acabado.

Correio da Cidadania: Vocês viram alguma melhora na relação entre agentes públicos e população?

Pablo Nunes: Não, muito pelo contrário. Como as operações seguiram a lógica de confronto e falta de diálogo, sentimos um acirramento de tensões que já eram grandes. Apesar de sabermos que a maioria da população apoiou a intervenção, o que se deve a várias explicações, quem mora nas áreas que são alvos das operações violentas tem opinião bem diferente.

Verificamos que tal relação continua muito conflituosa e a intervenção, que poderia ser um terceiro elemento na mediação entre polícia e moradores, não serviu de nada. E não foi provado que tal tipo de intervenção militar pudesse fazer essa mediação.

Correio da Cidadania: A sociedade civil organizada, movimentos comunitários e de bairros participaram de forma satisfatória da intervenção?

Pablo Nunes: O que vimos foram algumas iniciativas de aproximação, com relação a influenciadores e gente ligada à produção de conteúdo. Mas foram bem aquém do que tinha sido desenvolvido, e a partir de determinado momento a intervenção desistiu da ideia.

Acompanhamos algumas iniciativas de diálogo com a intervenção, mas poucas surtiram efeito em termos de cooperação. Portanto, tivemos mais essa dificuldade durante o caminho.

Ainda tivemos um processo de acompanhar a forma como a intervenção dava informações ou se colocava diante de perguntas, tanto da imprensa como da sociedade: falta de transparência e uma forte reatividade a tal tipo de situação. Não lidou bem com questionamentos sobre ações e informações. A intervenção agiu de maneira praticamente afastada da sociedade civil organizada.

Correio da Cidadania: Quando o investimento estatal em UPPs se encontrava no auge, constatou-se que a imensa maioria delas se colocava em locais onde o tráfico convencional mandava, ao passo que áreas de milícia eram poupadas. Essa dinâmica foi novamente verificada na intervenção e suas operações?

Pablo Nunes: Temos algumas questões quanto a essa divisão. Tivemos agora várias iniciativas da polícia em áreas de milícia – na verdade desde aquela operação que prendeu mais de 100 pessoas numa festa da zona oeste carioca. Vimos que houve uma preocupação em dar resposta sobre as milícias, mesmo que uma resposta midiática e problemática. Hoje, quase a totalidade dos presos na referida festa foi solta, pois não havia nenhum tipo de alegação contra eles.

Durante o período das UPPs tivemos vários motivos para a escolha das unidades, focalizadas em áreas centrais e principais vias de acesso aos principais aparelhos dos Jogos Olímpicos e grandes eventos, uma ideia da época – até porque as milícias se concentram na zona oeste.

Por mais que a intervenção tenha sido focada em favelas tradicionais, onde sempre ocorreram operações, houve em certo momento preocupação em fazer ações em áreas mais dominadas por milícia, o que em parte se deve à morte da Marielle e todas as ilações feitas no caso.

No entanto, creio que há questões mais relevantes do que escolher atuar em áreas de tráfico ou milícia.

Correio da Cidadania: Sobre o orçamento de 1,2 bilhão, o relatório aponta que apenas 10% disso foi pago. Além do mais, as Forças Armadas receberam uma proporção muito maior dos investimentos em relação aos outros entes, como Polícia Militar, Civil, sistema prisional, ainda que ocupassem uma parcela minoritária do orçamento global. O que você comenta deste aspecto?

Pablo Nunes: Acompanhamos muito atônitos. Ao acompanhar falas iniciais do Interventor, ele disse que não faria nada sem dinheiro, uma vez que o principal problema da segurança pública do Rio era a falta de investimentos. E tivemos os valores disponibilizados que começaram a ser gastos muito tardiamente. Vimos ainda o esforço de cerão que o gabinete de intervenção fez nos últimos dias de 2018 para empenhar a totalidade do dinheiro.

Mas tudo reflete o que foi a intervenção, não só em termos de orçamento como da escolha das prioridades. Se há crise de segurança, a intervenção devia primeiro fazer o diagnóstico da situação, para depois implementar medidas, a fim de não gastar recursos financeiros e humanos naquilo que não mereceria prioridade. Só podemos responder problemas se temos diagnósticos. A intervenção não fez isso, não apenas no relativo à criminalidade como também nas necessidades e carências das corporações policiais.

Durante o período, vimos a falta de articulação, preparo e organização no gasto do valor investido e sabemos que pouco se reverteu em materiais e serviços para as forças de segurança do Rio, o que não aconteceu em relação às Forças Armadas, que já foram pagas, algo no mínimo peculiar, curioso, interessante.

As verdadeiras prioridades e necessidades da segurança pública, tanto da cidadania como das polícias, não foram compreendidas e tampouco tiveram respostas satisfatórias.

Correio da Cidadania: Que outras saídas devem ser buscadas para a solução da violência social no Rio de Janeiro? Há perspectivas nesse sentido, diante do atual governo, tanto estadual como federal?

Pablo Nunes: Ainda vimos pouco do que será uma política pública de segurança. Do governo federal, a partir do pacote anticrime encaminhado por Sergio Moro, já se deu alguma ideia. Do governo estadual ainda não vimos nada, só falas e declarações completamente infelizes. Mas pouco foi materializado em política de segurança.

O que defendemos e vemos como um legado importante da intervenção é o modelo do que não devemos mais reproduzir: o investimento em operação sem inteligência, sem entender toda a cadeia do crime. É ineficaz, só traz mais confronto, mais tiroteio, mais bala perdida e mais mortes.

Uma das prioridades da intervenção foi combater o roubo de cargas. E o que ela fez foi operação ostensiva para desarticular os grupos criminosos que fazem a receptação dos caminhões com cargas roubadas nas grandes vias. Se não entendermos que eles são levados a algum lugar, alguém recebe, alguém distribui e outros compram suas mercadorias, não temos combate efetivo e sustentável de tal tipo de criminalidade.

A intervenção se focou em grandes e midiáticas operações para combater uma ponta do crime rapidamente substituível. Se prendem um grupo hoje, daqui uma semana aparece outro pra fazer a mesma coisa. Precisamos pegar o elo não compreendido da cadeia e agir sobre ela. Investir em inteligência e evitar ao máximo confrontos que não fazem sentido.

Muitas vezes se chega em favelas mal sabendo o que se deve fazer, sem mandados, sem um objetivo claro. Basta lembrar da operação com 3000 homens no complexo do Lins que conseguiu apreender um fuzil. E teve quatro mortes. Vai ser esse o tipo de operação modelo? Não beneficia a população e nem os policiais.

Leia aqui a íntegra do relatório

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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