Correio da Cidadania

“Governo Bolsonaro é inimigo de todas as conquistas sociais acumuladas no Brasil”

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A reforma da previdência não avança no Congresso, mas as mobilizações para derrotar uma das maiores bandeiras do governo de Jair Bolsonaro ainda se dão de maneiras localizadas entre a população. Para comentar o projeto defendido visceralmente pelo ministro Paulo Guedes, inspirado em modelos de capitalização, entrevistamos a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS), que ataca item por item da reforma, é enfática em apontar a desonestidade intelectual do ministro e ressalta seu caráter especialmente prejudicial às mulheres.

“Se quisessem atacar privilégios, em vez de tirar dos trabalhadores, fariam uma verdadeira revolução tributária num país tão desigual como o Brasil, taxando grandes fortunas, juros e dividendos... Uma proposta que parece mais interessante é colocar uma nova faixa de Imposto de Renda para quem ganha mais de 40 salários mínimos e outra para quem ganha mais de 60 mínimos. Aí já se poderia obter o trilhão de reais alegado por Paulo Guedes como valor a ser poupado”, afirmou.

Além de comentar os debates entre o ministro e a Comissão de Constituição e Justiça que analisa a proposta de reforma da previdência, Melchionna faz um diagnóstico dos primeiros cem dias de um governo que já perdeu boa parte de sua popularidade e é marcado por trapalhadas em diversas frentes, o que vai de frente com a declaração do presidente – “muito acostumado com as fake news” – de ter cumprido 95% de suas metas para o início de governo.

“O aspecto “anticorrupção” caiu por terra desde o início. O segundo estelionato eleitoral é propor essa reforma da previdência, enquanto como deputado e candidato dizia que 65 anos de idade mínima é um massacre. Em terceiro, a economia está em frangalhos, o desemprego aumenta e o núcleo de governo é absolutamente despreparado. Fora o núcleo de lunáticos que nomeou pra governar o país”, criticou.

Em linhas gerais, a deputada admite o retrocesso histórico que a ascensão de tal grupo representa no Brasil e mundialmente e afirma a necessidade de se construírem novos vínculos solidários entre os brasileiros.

“Precisamos fazer mais gente se dar conta de que esse governo é inimigo do povo, construir um polo alternativo de poder e evitar uma guerra ideológica aos nossos direitos e à Constituição Federal de 1988. Não é novidade que seu plano de poder é autoritário e repressivo, portanto, inimigo de todas as conquistas sociais acumuladas no Brasil”.

A entrevista completa com Fernanda Melchionna pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: O que pensa da proposta do governo Bolsonaro de Reforma da Previdência? Ainda mais dura que a de Temer?

Fernanda Melchionna: Na prática, dificulta muito a aposentadoria, com os requisitos de idade mínima de 65 e 62 anos, respectivamente, para homens e mulheres, e a contribuição necessária para acessar o beneficio em sua totalidade. A reforma apresentada vai excluir milhões de brasileiros do acesso à previdência.

Hoje, 52% das mulheres se aposentam no RGPS (Regime Geral de Previdência Social) com 16,5 anos de contribuição. Com a proposta, sobe a 20 anos a exigência de contribuição para se acessar 60% do beneficio, complicando a vida de milhões de brasileiras, com regras absolutamente pesadas sobre categorias específicas, como as professoras, categoria majoritariamente feminina, ou as trabalhadoras rurais, que começam a trabalhar muito cedo também e teriam essa dificuldade.

Se paramos pra pensar nos números alegados pelo governo – que não vai atacar privilégios –, 80% da “economia de gastos com a previdência” será sobre quem ganha até dois salários mínimos. Coloco entre aspas porque cortar benefícios de trabalhadores não pode ser entendido de tal forma. E mesmo assim é um argumento falacioso, pois 80% dos cortes sairiam do RGPS e do BPC (Benefício de Prestação Continuada). Se fosse pra combater privilégios a reforma buscaria as 30 mil empresas que devem à previdência, buscaria recuperar o dinheiro da sonegação, como comprovou a CPI da Previdência de 2017... Em vez de tirar dos trabalhadores, faria uma verdadeira revolução tributária num país tão desigual como o Brasil, taxando grandes fortunas, juros e dividendos...

Uma proposta que parece mais interessante é colocar uma nova faixa de Imposto de Renda, de 30%, para quem ganha mais de 40 salários mínimos e outra, de 40%, para quem ganha mais de 60 mínimos. Aí já se poderia obter o trilhão de reais alegado por Paulo Guedes como valor a ser poupado. Seria o suficiente para sustentar saúde, educação e seguridade social, direitos constitucionais.

O pior, além de toda a devastação de direitos, é massacrar ainda mais as mulheres trabalhadoras, que com a tripla jornada de trabalho acumulam uma sobrecarga enorme durante a vida.

Correio da Cidadania: Como você resume os embates parlamentares das últimas semanas em torno da reforma da previdência?

Fernanda Melchionna: A reforma desconstitucionaliza o direito à previdência para introduzir o regime de capitalização no Brasil, a despeito da forma extremamente demagógica e mentirosa como falou Paulo Guedes, nunca respondendo as perguntas dos parlamentares que mostraram a realidade de todos os países que adotaram tal sistema. Foram 30 países que o adotaram e 18 querem voltar atrás, alguns com fortes movimentos populares.

O caso mais emblemático na América Latina é o Chile, que sob a ditadura Pinochet entrou neste sistema: hoje as pessoas recebem em média 38% do que recebiam na ativa. Mais da metade dos aposentados chilenos recebe a metade de um salário mínimo. Sem contar os fundos de pensão que chegaram a falir e levaram embora a aposentadoria de milhares de trabalhadores.

Enquanto Paulo Guedes mentia sobre sua reforma ser o caminho para o jovem fazer sua previdência, sabemos que é a fórmula de os jovens entregarem sua previdência na mão dos bancos, para estes especularem no sistema financeiro a seu bel prazer. E se os bancos perderem os recursos dos trabalhadores fica por isso mesmo.

E ele ainda deixou de responder perguntas sobre regime de transição, o custo da mudança de sistema – que poderia atingir 2 trilhões de reais... Não falou de nada efetivamente. A reforma é um cheque em branco que tira a seguridade social da Constituição e visa introduzir o regime de capitalização por lei complementar, o que demanda menos votos para aprová-la em relação à necessidade atual de votos.

O único objetivo dessa reforma é criar um verdadeiro paraíso para os bancos no Brasil, um novo filão.

Correio da Cidadania: Já que falamos no ministro da Economia, o que comenta da visita de Paulo Guedes à CCJ e o desfecho da audiência?

Fernanda Melchionna: Não sou membro da comissão, mas acompanhei toda a sessão, repleta de boas e pertinentes perguntas sobre o massacre aos trabalhadores, a capitalização, ataques aos pobres... O ministro, apesar de suas provocações e fraseologia, não levou nada concreto sobre estatísticas. A única que ele deu, de forma sistemática, era mentirosa, no caso a de que as mulheres brasileiras se aposentam no INSS em média aos 61 anos. Mas “esqueceu” de dizer que com tempo médio de contribuição de 16 anos. Ou seja, sua reforma faz as mulheres precisarem trabalhar até os 65 anos para acessarem 60% da aposentadoria em relação à contribuição. E sem falar da exclusão de milhões de mulheres que este novo regime promoveria em termos práticos.

Além de não dar dados concretos, fiquei bastante incomodada com o conjunto de provocações que o ministro fez. Respondeu pouquíssimas perguntas e teve uma saída vergonhosa. Ainda havia no mínimo 60 parlamentares na fila de perguntas e ele aproveitou seu momento esquentadinho para fazer uma cena e fugir do debate.

É muito ruim sua incapacidade de ouvir a crítica, ao mesmo tempo em que usa da lógica de deitar fraseologia para evitar as perguntas. Por exemplo: ele toda hora falava da média salarial e de aposentadoria dos congressistas. Como se sabe, existe o Regime Especial de Previdência Parlamentares, o qual recusei, optando pelo Regime Geral, como qualquer trabalhador. De toda forma, ele não respondeu o que se perguntava, a exemplo dos privilégios que o presidente da República usufruiu a vida toda, seja no regime especial de previdência parlamentar ou sua precoce aposentadoria como capitão do exército.

É muita conversa pra boi dormir, existe teto desde 2003 e eles usam de frases feitas para enganar gente que não conhece as regras da previdência. Muitas frases vazias e mentiras. Esta reforma não ataca banqueiros, grandes especuladores e empresários. Ataca o conjunto do povo brasileiro, em especial os pobres.

A reforma reproduz desigualdades, troca o tempo de contribuição pela idade mínima, o que pune quem começou a trabalhar e contribuir cedo. Desconsidera também a dificuldade de trabalhadores do setor privado em contribuir sem interrupções, em um país que sofre com alto índice de desemprego e informalidade, por sinal potencializados pelas medidas neoliberais que o país voltou a ver nos últimos anos.

É a mesma cantilena enfadonha usada pra aprovar a Reforma Trabalhista, cujas consequências já estamos vendo: menos direitos, menos salário, mais flexibilidade e mais desemprego. Mais desemprego porque se trata de dar tudo para os bancos e ricos.

Correio da Cidadania: O que falar do argumento de envelhecimento populacional como fator justificador da reforma? O envelhecimento da população não deveria sugerir justamente uma ideia oposta, de fortalecimento da seguridade social?

Fernanda Melchionna: Sem dúvidas. Precisamos defender a ideia de uma previdência solidária. Quem está na ativa contribui e também financia o benefício de quem se aposenta. Esta é a ideia geral do regime de previdência, que vem sendo desmontada ao longo dos anos pelas sucessivas reformas realizadas, além da ausência de concursos públicos nos últimos anos e de uma política de geração de emprego e renda.

O regime que se quer introduzir tem paralelo com a Colômbia, onde 7 de cada 10 trabalhadores estão fora do regime de previdência, exatamente pela informalidade, lógica basilar das medidas neoliberais, abertamente defendidas pelo atual presidente desde o governo Temer, quando começaram a ser introduzidas. Tais medidas deram em mais informalidade, desemprego e dificultaram a ideia de fortalecer uma previdência solidária.

Em relação à população, creio que deva valer o tempo de contribuição. Concretamente: alguém que começou a trabalhar com 19 anos, e hoje tem 51, teria de se aposentar daqui 10 anos, e não agora. Olha que absurdo. Querem que as pessoas morram trabalhando ou só possam gozar de tal benefício o mais perto possível da morte.

Além do mais, tem o gatilho: se a expectativa de vida média aumenta, o tempo necessário de contribuição aumenta. A ideia é evitar que as pessoas acessem a previdência. Existem diferenças de expectativa de vida entre uns e outros estados, ainda mais num país como o nosso. Há alguns estados e regiões mais desiguais, com mais problemas estruturais e de acesso a direitos. Mesmo em Porto Alegre há diferenças de quase 10 anos de expectativa de vida entre uns e outros bairros.

Trabalhar até morrer é a ideia desta reforma.

Correio da Cidadania: Há unidade da esquerda parlamentar em torno desse assunto?

Fernanda Melchionna: Acho necessário, cada vez mais, alterar por baixo a correlação de forças no Congresso. É preciso de frentes únicas, unidades de ação, entre todos os sindicatos, organizações de classe, entidades da sociedade civil e partidos contra a reforma... Algumas instituições importantes já se declararam contra, como OAB e CNBB, além de sindicatos e partidos de oposição também.

Precisamos lutar contra a reforma no Congresso, mas acima de tudo aumentar o grau de temperatura e pressão nas ruas, pressionando mais ainda pela rejeição. O 22 de março foi importante, mas precisamos avançar. Houve outras mobilizações, como de professores, no 1º de maio teremos atos unitários contra as reformas, aumentando a politização e unidade de ação nas bases das categorias afetadas. Para quem sabe assim podermos parar o país como na greve geral durante o governo Temer e derrotarmos a reforma do governo Bolsonaro.

Correio da Cidadania: Como analisa os primeiros 100 dias de governo Bolsonaro, que acaba de declarar à imprensa ter “cumprido cerca de 95% das metas para o período”?

Fernanda Melchionna: Ele é muito acostumado às fake news. É realmente impressionante um governo tão desastrado, com tantos desencontros de informação, incompetente em tantas áreas, dizer à população que cumpriu 95% das metas, que, vamos combinar, não eram das melhores. Seu programa de governo tem verdadeiros absurdos.

Também tem o símbolo, vendido durante a campanha eleitoral e que infelizmente enganou o movimento das massas, de ser um governo anticorrupção, o que caiu por terra já na montagem da equipe. Quem conhecia sua história parlamentar já sabia como isso era óbvio, alguém que com 28 anos trocou de partido como quem troca de roupa e usava, em suas palavras, auxílio moradia pra “comer gente” não poderia ser símbolo de mudança.

Enfim, o movimento de massas, na combinação da crise econômica com a crise de representação, caiu neste verdadeiro engodo eleitoral. Há ministérios compostos por corruptos confessos, como Ônix Lorenzoni, que descaradamente pede “desculpas” por receber caixa 2; ou o ministro do meio ambiente, acusado de mexer em mapas de zoneamento em SP; ou o ministro de turismo envolvido até o último fio de cabelo em mau uso do fundo partidário destinado às mulheres de seu partido; outros sendo investigados...

O aspecto “anticorrupção” caiu por terra desde o início. O segundo estelionato eleitoral é propor essa reforma da previdência, enquanto como deputado e candidato dizia que 65 anos de idade mínima é um massacre.

Em terceiro, a economia está em frangalhos, o desemprego aumenta e o núcleo de governo é absolutamente despreparado, começando por ele mesmo e sua incontinência verbal; não consegue se portar nem no Twitter. Fora o núcleo de lunáticos que nomeou pra governar o país. O Ernesto Araújo é impressionante, este não chegou na Revolução Francesa.

Não podemos deixar de lado os absurdos que envolvem o revisionismo histórico, com vistas a fazer guerra ideológica, impor mentiras e estabelecer as ideias de extrema-direita como dominantes. Essa é a ala ultraliberal. E tem a ala militar, de maior participação em governo desde a ditadura, o que nos leva a pensar nos governos anteriores que não promoveram justiça de transição.

Ao mesmo tempo, temos uma necessidade histórica de não deixar avançar nenhum grau no autoritarismo e saltarmos para um regime político ainda mais repressivo, contra movimentos sociais e populares, o que sabemos ser a ideologia de Bolsonaro. Quando vemos as brigas e incontinências verbais, entre eles mesmos, demonstra-se à população o tamanho do engodo, como se vê na chamativa queda de popularidade.

Precisamos fazer mais gente se dar conta de que esse governo é inimigo do povo, construir um polo alternativo de poder e evitar uma guerra ideológica aos nossos direitos e à Constituição Federal de 1988. Não é novidade que seu plano de poder é autoritário e repressivo, portanto, inimigo de todas as conquistas sociais acumuladas no Brasil.

Correio da Cidadania: O que esperar, por fim, deste ano político e social?

Fernanda Melchionna: Precisamos assumir nossa responsabilidade histórica. Tenho convivido bastante com jovens lideranças e ativistas e todos sabemos que a vitória de Bolsonaro é uma derrota política para o Brasil, ainda que o fenômeno seja mundial, de crise econômica e representativa combinada com esquerdas que decidiram governar com o mesmo modus operandi de seus antecessores, sem enfrentamento e construção de outro modelo político.

Infelizmente, a cara mais podre do velho sistema foi vendida às massas como alternativa. E agora temos essa composição extremamente reacionária e autoritária no núcleo de poder. Mas temos a responsabilidade de enfrentar os tempos que o Brasil vive. Muita gente está receosa com o cenário e penso que com coragem podemos lutar coletivamente. Como fizeram tantos antes de nós, os homens e mulheres negras e indígenas que resistiram à escravidão, os que enfrentaram a ditadura, a Mangueira que venceu o carnaval com o enredo que levou à avenida...

Agora é a nossa vez de enfrentar este tempo e colocar a extrema-direita onde ela merece: no lixo da história. Mas teremos de acelerar a resistência a tal governo e construir um polo alternativo, que afirme as ideias de solidariedade, igualdade, da vida acima do lucro, da economia pelos interesses do povo, portanto, as ideias socialistas.

Precisamos aprender com os exemplos da história, de jamais confiar na burguesia, jamais trair os ideais da classe trabalhadora, buscar unidade das lutas sociais e trabalhistas com as lutas das mulheres, negros, LGBTs, porque essas opressões também se potencializam no capitalismo, que sempre busca colocar grupos de cidadãos abaixo de outros, para melhor explorá-los.

Enfim, precisamos de unidades nas lutas, unidade na diversidade, para afirmar um programa para os trabalhadores e a juventude, e construir uma ideia para o futuro.

E se me permite, para encerrar, continuamos exigindo justiça para Marielle. Por enquanto, com muita luta só conseguimos descobrir quem atirou, e se não fosse a luta nem disso saberíamos. Só com os protestos, atos e solidariedade internacional chegamos a tais informações. Mas ainda não é suficiente. Queremos saber quem mandou matar, para que crimes políticos não terminem na vala comum e não estejamos diante da mexicanização do Brasil, com perseguição sistemática a militantes de direitos humanos. É fundamental desvendar de vez este crime.

 

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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