Marcha da Maconha e proibicionismo: “temos um governo que incentiva as drogas efetivamente mais perigosas”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 07/06/2019
Foto: Le Monde Diplomatique Brasil
Censuradas por uma mídia autoproclamada liberal, a Marcha da Maconha lotou as ruas de várias capitais do país nos últimos dois finais de semana, em número claramente superior aos atos de apoio ao governo Bolsonaro – estes sim com cobertura ao vivo e tentativa de encobrimento de pautas ultrarreacionárias com a roupagem de “apoio à reforma da previdência”. Para falar dos manifestos antiproibicionistas, entrevistamos Henrique Carneiro, historiador e ativista da legalização do consumo das substancias ilícitas.
“A procrastinação do judiciário colocou 100 mil jovens na rua de forma muito politizada. O conteúdo social da marcha também é muito expressivo, dado que reúne uma grande quantidade de jovens periféricos, que dificilmente se engajam em outras manifestações políticas e têm uma adesão contínua à Marcha da Maconha, que se tornou uma ocasião muito aguardada para eles”.
Além de definir tal movimento como o mais próximo do perfil das jornadas de junho de 2013, Carneiro ataca a postura do governo, totalmente divorciada dos estudos já realizados sobre o tema.
“É um paradoxo. O governo incentiva tabaco e álcool, diminui o impacto das políticas de prevenção, o que se simboliza na censura à pesquisa da Fiocruz, a mais completa já realizada. Tal pesquisa foi censurada por demonstrar que o álcool é o problema central. Crack e cocaína são nichos bem inferiores em relação aos remédios benzodiazepínicos, entre outros da indústria farmacêutica”.
Nesse sentido, Carneiro, sem deixar de lado a indústria farmacêutica, aponta o lobby fundamentalista religioso como beneficiário das intenções do presidente da República e sua equipe, uma vez que as chamadas comunidades terapêuticas costumam ter ligações com igrejas.
“É uma maneira de desviar recursos públicos para uma finalidade privada e ainda por cima confessional. Em vez de fortalecer os CAPS (Centros de Atendimento Psicossocial para Álcool e Drogas) e seu trabalho especializado, uma psicoterapia efetivamente profissional, multifacetada, opta-se por verdadeiros centros irregulares de internação e violação de direitos humanos, como já comprovado pelo Conselho Federal de Medicina”.
A entrevista completa com Henrique Carneiro pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Primeiramente, como foi a Marcha da Maconha realizada em São Paulo neste 1º de junho?
Henrique Carneiro: A marcha deste ano, quase 10 anos depois de permitida, foi a maior de todas. Vale lembrar que até 2011 ela era proibida e só foi liberada em julgamento do STF em favor da ideia de que defender a liberação do uso de maconha se insere no campo da liberdade de expressão e não da apologia ao crime, como se sustentava.
A marcha reuniu um número de pessoas que poucas manifestações reúnem, no Brasil e no mundo. E foi uma marcha muito politizada, por conta do adiamento da votação da descriminalização da maconha no STF, pendente desde a morte de Teori Zavascki e suspensa pelo Dias Toffoli, quando já contava com três votos a favor. Isto é, estamos diante de um verdadeiro acordo do judiciário com os setores conservadores do congresso e o executivo.
E foi uma marcha enorme, em São Paulo e outras capitais, com dezenas de milhares de pessoas nas ruas, como se viu em Brasília, Rio, Belo Horizonte e Fortaleza. Marchas que no Brasil todo reuniram centenas de milhares, mas representaram milhões, já que os consumidores são, no mínimo, de 3 a 4 milhões (pela experiência que tenho o número é muito maior).
A procrastinação do judiciário colocou 100 mil jovens na rua de forma muito politizada. O conteúdo social da marcha também é muito expressivo, dado que reúne uma grande quantidade de jovens periféricos, que dificilmente se engajam em outras manifestações políticas e têm uma adesão contínua à Marcha da Maconha, que se tornou uma ocasião muito aguardada para eles.
Correio da Cidadania: Dá pra afirmar que tais manifestações foram mais amplas que as de apoio ao presidente Jair Bolsonaro em 26 de maio?
Henrique Carneiro: Muito maiores. As manifestações do Bolsonaro ocuparam apenas dois quarteirões da Paulista, com grandes claros no meio das pessoas. Não era aquela manifestação cheia, que segundo os métodos de cálculos tradicionais significam quatro pessoas por metro quadrado. A Marcha da Maconha ocupou sete quarteirões de forma ultramassiva, com quatro pessoas por metro quadrado tranquilamente.
Foi uma marcha comparável com os atos em favor da educação. Estes tiveram até mais pessoas, a partir do Largo da Batata, mas ao chegar à Paulista já era um numero menor de pessoas.
Correio da Cidadania: Neste sentido, o que comentar da cobertura midiática?
Henrique Carneiro: A mídia sempre ignora. Há uma espécie de campanha de boicote, um menosprezo que não podemos considerar acidental. Exceto quando houve a repressão que antecedeu a decisão do STF em favor da Marcha, sempre tentam invisibilizá-la. Nunca se mostra e quando o faz é com fotos de baixo, sem imagens aéreas, sem estimativa.
Na Globo cheguei a ver repórter dizendo “centenas de pessoas estão reunidas...”, quando a imagem evidenciava que eram muitos milhares. O UOL ignorou, veículos da Globo deram flashes apenas. Há uma tendência de fulanizar a marcha, a fim de não reconhecê-la como a principal manifestação política em defesa da juventude mais pobre e mais periférica.
É a manifestação mais contundente contra a violência policial do momento e há uma cortina de ocultação a seu respeito.
Correio da Cidadania: Em suas redes sociais você disse que a Marcha da Maconha é o tipo de manifesto popular que mais se aproxima das jornadas de junho de 2013. O que significa isso, mais precisamente?
Henrique Carneiro: Digo em vários aspectos. Primeiramente, por representar a ação direta. Um setor da juventude, em torno de uma reivindicação muito concreta, a exemplo da tarifa do transporte, vai às ruas em favor do próprio interesse. Não tão espontaneamente como se pensa muitas vezes, ela se organiza por meio de redes, ao invés das formas hierárquicas e piramidais.
Isso dá uma dimensão muito transversal à marcha, que não conta com organismos oficiais de representação. É uma multidão reunida em torno de uma causa. Vejo uma dimensão existencial semelhante ao movimento LGBT, que ao menos em sua fase inicial tinha a dimensão de fazer as pessoas se expressarem por meio do contágio libertário e da revolta social, indo às ruas numa data simbólica.
Correio da Cidadania: Sobre o governo, o que pensa da postura que tem diante dessa questão? O que falar da política antidrogas, expressa no decreto 9.761 de 11 de abril?
Henrique Carneiro: A política do governo em relação às drogas representa um dos três setores a seu redor, que é o mais ideológico: o fundamentalista religioso. Isso porque o paradigma global antidrogas já foi quebrado, de forma disseminada. Canadá e a maioria dos estados dos EUA já liberaram a maconha praticamente.
Há uma indústria poderosíssima em torno do assunto, de modo que setores liberais também são favoráveis à legalização. Mas temos um governo de inspiração totalitária. Ainda que no campo econômico proponha medidas ditas liberais – ou neoliberais – em outros campos mantém a atitude mais retrógrada, com características até teocráticas, expressa na oposição ideológica às drogas.
A própria dimensão da palavra merece exame, pois isola e separa umas e outras substâncias. Pois com o álcool e o tabaco o governo se dá muito bem, inclusive indo na direção oposta de políticas de prevenção bem sucedidas, como se vê nas propostas de diminuir o imposto do cigarro. Em relação ao álcool, temos até um desprezo pela segurança nas estradas, como na ideia do Bolsonaro de aumentar a pontuação necessária à cassação da CNH.
Ou seja, temos um governo que incentiva as drogas efetivamente mais perigosas, enquanto persegue a maconha, um remédio que no mundo inteiro vai se tornando legal e, do ponto de vista recreativo, é muito mais adequada do que álcool e tabaco em relação à saúde pública e riscos de segurança, de influência na conduta das pessoas e efeitos físicos menos deletérios em comparação com as duas substâncias mencionadas.
É um paradoxo. O governo incentiva tabaco e álcool e diminui o impacto das políticas de prevenção, o que se simboliza na censura à pesquisa da Fiocruz, a mais completa já realizada. Tal pesquisa foi censurada por demonstrar que o álcool é o problema central. Crack e cocaína são nichos bem inferiores em relação aos remédios benzodiazepínicos, entre outros da indústria farmacêutica.
O governo faz questão de não tratar tais problema porque o lobby da indústria farmacêutica tem influência econômica global. Já a proibição das drogas também tem um setor que se beneficia dela, no caso os traficantes. Assim, o governo mantém a enorme economia clandestina ao evitar qualquer forma de legalização, fiscalização, tributação, controle sanitário etc.
Correio da Cidadania: Sendo assim, o que comentar da atitude de Osmar Terra, ministro da Cidadania, em relação à censura do estudo sobre possível epidemia de uso de drogas feito pela Fiocruz, o qual desmentiu tal premissa? Por que não há uma epidemia de uso de drogas?
Henrique Carneiro: Na visão do Osmar Terra a epidemia mais considerável seria a do crack. E a pesquisa mostrou que não. Existem vários consumos de drogas mais problemáticos e crescentes, como o álcool, muito superior a qualquer substância ilícita – o tabaco é um caso de consumo decrescente.
De toda forma, epidemia tem a dimensão de contágio e aumento exponencial de consumo. Todas as substâncias costumam ter nichos de aficionados, usuários que já se acostumaram a usá-las. O crack tem características de nicho, porque tem muitos inconvenientes e não possui muitos elementos para seduzir, por exemplo, um consumidor de maconha.
Correio da Cidadania: O que comenta das opiniões positivas de Jair Bolsonaro a respeito das comunidades terapêuticas, amplamente condenadas por todos os grupos que se prestaram a estudá-las ao longo das últimas décadas?
Henrique Carneiro: As comunidades terapêuticas são a outra faceta do que se chama da indústria da internação ou guerra às drogas, uma maneira de desviar recursos públicos para uma finalidade privada e ainda por cima confessional.
Ajudam-se as igrejas a crescerem e se tornarem enormes empresas, recrutarem pessoas fragilizadas, muitas vezes submetidas a formas de exploração do trabalho ou até maus tratos, como tortura, chegando até a homicídios. São muitos os casos de pessoas que faleceram nessas clinicas.
Tudo em detrimento do sistema público de saúde, que está profundamente carente de verbas, desviadas para o setor privado. Isso é o mais escandaloso. Em vez de fortalecer os CAPS (Centros de Atendimento Psicossocial para Álcool e Drogas) e seu trabalho especializado, uma psicoterapia efetivamente profissional, multifacetada, opta-se por verdadeiros centros irregulares de internação e violação de direitos humanos.
O que falo aqui está comprovado por inúmeras pesquisas, a mais conhecida do Conselho Federal de Psicologia, que fez um monitoramento de tais instituições.
Correio da Cidadania: Acredita que os grupos que ganham com o comércio ilegal de drogas tendem a crescer no atual contexto político, social e econômico brasileiro?
Henrique Carneiro: Claro. Tendem a crescer em qualquer circunstância, porque com a proibição tal forma de comércio já está premiada. O preço da droga não depende do custo de produção, mas do custo da proibição. E o alto lucro é desproporcional em relação a qualquer capital investido. É uma via especulativa muito atraente, tanto que ocorre em escala internacional, provocando um verdadeiro fluxo financeiro global.
E tende a crescer também porque há uma crise e aumento do sofrimento social. As pessoas vão buscar consolo, ou sensação de apaziguamento. O efeito analgésico sempre foi o mais importante no uso de qualquer droga, pois visa diminuir a dor humana.
Correio da Cidadania: Por que legalizar a maconha e eventualmente outras substâncias?
Henrique Carneiro: É preciso legalizar todas as substâncias. Primeiro, por uma razão de interesse de saúde pública. O sistema da proibição permite uso de substâncias adulteradas, fora da fiscalização, que geram efeitos mais nocivos do que os próprios efeitos das substâncias, o que acaba matando até mais. Isso ocorreu na Lei Seca com o uso de metanol em bebidas, por exemplo.
Em segundo lugar, porque do ponto de vista econômico se há demanda da sociedade por um produto é impossível contê-la por meios repressivos. É possível educar esse mercado, como no tabaco, com taxação, controle de qualidade etc.
Por último, não se pode impedir uma demanda da sociedade, mesmo que seja, digamos, má para a saúde. Não se pode proibir o tabaco. Os tabagistas têm o direito de fumar. Tal direito está vinculado a um projeto democrático de direitos individuais, de autodeterminação, que funda a noção de democracia moderna.
Reprimir o direito de consumir algo que se queira – alimento, droga, livro, religião, qualquer coisa – viola o direito de livre escolha.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.