Correio da Cidadania

“Nosso objetivo como jornalistas deve ser tomar os meios de comunicação de massa”

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IELA 15 Anos - Elaine Tavares - YouTube
“Nosso objetivo como jornalistas deve ser tomar os meios de comunicação de massa”, afirmou a nossa nova colunista Elaine Tavares, nesta entrevista na qual a apresentamos a você, leitora e leitor do Correio da Cidadania.

Elaine já atua como jornalista há décadas, tendo passado por televisões, jornais e rádios de todo tipo, do campo comercial ao popular – e é neste campo onde tem atuado nos últimos 22 anos através de rádios comunitárias, do IELA (Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC) e de diversos outros projetos. Dona de uma capacidade crítica ímpar, pudemos conversar sobre as mais variadas e importantes questões que entrelaçam o jornalismo e a sociedade, especialmente na atual conjuntura de pandemia misturada aos avanços do capital e de um governo de extrema-direita em nosso país.

“O jornalismo não pode ser neutro nem imparcial, ele tem que se comprometer com a vítima, com a ‘comunidade de vítimas do capital’. Temos que desmistificar a ideia da neutralidade e saber que temos condição, sim, de falar a partir do lugar do oprimido, e isso não significa que vamos fazer um jornalismo subjetivo ou da nossa própria vontade, mas que vamos construir e produzir a informação de tal maneira que a pessoa possa reconhecer o que é singular, o que é particular e o que é universal”, afirmou Elaine.

Ao longo da conversa, o leitor poderá notar que todas as ideias expostas nesta breve introdução são profundamente tocadas pela entrevistada, que, entre outras coisas, defende a importância do jornalista fugir da prática burocrática da profissão e buscar a criação de material que traga uma perspectiva ampla e universalizante do fato noticiado. Incluindo as impressões do repórter. Segundo Elaine, sem essa caraterística, o jornalismo vira preza fácil para a atual indústria de disparos de notícias falsas, entre outras misérias da atualidade que jogam contra a função da profissão.

“Como é que eu, Elaine Tavares, jornalista de Florianópolis, que trabalha em uma rádio comunitária, posso competir com o gabinete do ódio do Eduardo Bolsonaro? Vou disparar minha matéria no máximo uma centena de vezes por dia, enquanto que uma mídia comercial ou uma mídia da direita, dessas que estão aí para fazer a cabeça das pessoas, disparam milhões de mensagens por minuto. Qual é a nossa eficácia e como vamos competir com isso? A batalha não está dentro da rede, mas na nossa capacidade de construir, fora do jornalismo, no processo político, uma possibilidade de transformação desse sistema, porque senão podem mudar as plataformas, mas sempre vamos estar em desvantagem”, analisou.

Leia a seguir a entrevista completa.

Correio da Cidadania: Em primeiro lugar muito obrigado por aceitar o convite para ser colunista do Correio da Cidadania, é um prazer enorme tê-la conosco. E para começar a nossa conversa, publicamos em março um artigo teu chamado ‘Os carregadores de voz’, onde pudemos ler uma boa reflexão crítica sobre o papel do jornalismo na sociedade. Pode comentar um pouco mais a respeito da atuação dos meios de comunicação diante da atual conjuntura?

Elaine Tavares: Estava comentando esses dias com o Miro, do Barão de Itararé, que tinha ficado feliz durante esse período da pandemia porque vimos como de repente, do nada, o jornalismo reagiu. O jornalismo estava quase morto, ninguém mais dava bola pra jornalista, e com a pandemia o jornalismo veio com força. Os telejornais ampliaram seu tempo e enfim fizeram boas matérias e produziram informação. Achei isso fantástico em um primeiro momento, e fiquei bem animada, pensei: ‘que bom, quem sabe agora pegam firme’.

Mas depois infelizmente vi que não correspondeu. Isso mostra o que o Adelmo Genro, teórico gaúcho e autor de O Segredo da Pirâmide – para uma teoria do jornalismo marxista, já dizia no seu trabalho em 1987, em que definiu o quanto que a informação jornalística é uma necessidade substancial, ou seja, as pessoas têm necessidade dela. E é por isso que quando essa informação realmente aparece, como apareceu agora, as pessoas vão buscar ali onde ela está. Então, fiquei contente em um primeiro momento. Mas ao mesmo tempo, e por outro lado, o jornalismo fica só no plano da informação. E mesmo agora o que vemos é aquele jornalismo que não consegue ultrapassar esse plano. O máximo que esse jornalismo consegue chegar é a esse viés liberal de ‘ouvir os dois lados’. E não se dão conta, ou não querem se dar conta, de que o jornalismo tem muitos lados e que temos que trazer para o leitor, o espectador ou o ouvinte uma perspectiva universalizante daquele fato noticiado.

E o jornalismo não faz isso. Não fez agora na pandemia e continua não fazendo. Portanto esse jornalismo comercial realmente não tem nada para nos oferecer, ele não é jornalismo. Como diz Noam Chomsky, é uma plataforma de propaganda do sistema que está aí.

E o mais triste é que na verdade, quando vamos buscar informação nos meios de comunicação mais alternativos, vemos que também acabam reproduzindo essa forma de fazer jornalismo. Abordam temáticas que o jornalismo comercial não aborda, mas também acabam produzindo um jornalismo da mesma forma, do mesmo jeito. Esse quadro acaba sendo bastante frustrante pra gente. E se olharmos para o jornalismo de causa, e muito do jornalismo alternativo e independente, muitos se utilizam das fontes oficiais e de maneiras de construção da notícia muito semelhantes – é sempre a mesma coisa. Também é um jornalismo de carregamento de voz, como defini no artigo, não tem a impressão do repórter, não tem o contexto histórico, apenas oferece informações quase que pontuais.

Infelizmente o jornalismo é uma prática que não vemos na mídia comercial e muito pouco nas mídias alternativas.

Correio da Cidadania: O que pensa do Correio da Cidadania? Que tipo de jornalismo representaria, na sua opinião, uma missão nossa e dos veículos como o nosso? O que podemos trazer de novo para o mundo e para a profissão?

Elaine Tavares: Acompanho o Correio há bastante tempo, fiquei muito honrada de ser convidada para participar, gosto muito de ver meus textos publicados, também leio bastante o jornal, está aqui nos favoritos. É claro que a gente busca nessas mídias, entre elas o Correio, as temáticas que não encontramos na mídia comercial. São mídias importantes.

Eu sou da mídia alternativa, eu trabalho com isso há 40 anos, estou há 22 anos na rádio comunitária, então eu sei da importância do jornalismo alternativo que trabalha com outras perspectivas e abordagens. O que eu queria dizer é que o jornalismo alternativo e independente é apenas ‘jornalismo’, ou seja, podermos trazer a informação de tal maneira que o leitor possa absorver a universalidade do fato. Aquilo que o Adelmo Genro nos ensina, de não ficar só numa particularidade da realidade, de trazer para o leitor a atmosfera totalizante do fato em si. E isso é muito difícil fazer.

Eu sei dessa dificuldade e converso com os colegas jornalistas sobre isso. Todos sabemos como é caro fazer reportagem, não é fácil, mas a gente tinha que ter como meta, como o sul da nossa existência enquanto mídia alternativa, pelo menos uma vez por semana fazer um material assim. É como disse, não basta a gente fale do que se ignora nos meios comerciais, mas também é preciso falar de tal maneira que a gente também não manipule o leitor, que não traga as nossas verdades sobre o fato, que a gente possa produzir jornalismo propriamente dito.

Vejo a dificuldade em chegar a isso em vários dos nosso veículos, e entendo. Não temos tempo, não temos dinheiro, não temos os recursos para uma grande reportagem. Mas o que eu sempre insisto é que devemos fazer um esforço de produzir jornalismo. Não apenas artigos de opinião ou textos panfletários, que acabam não sendo muito bem quistos – as pessoas não querem um texto panfletário, querem um texto que traga informação e formação, para que ela possa sair dali, não apenas informada, mas também formada naquela temática.

Correio da Cidadania: Como enxerga as mudanças pelas quais a profissão passou nos últimos anos com o advento e aprimoramento dos smartphones e suas redes sociais?

Elaine Tavares: Ainda hoje estava escrevendo aqui uma conferência que vou dar para as rádios comunitárias justamente trazendo essa discussão.

Até bem pouco tempo eu dizia que as redes sociais tinham um papel importante mas que a vida material é mais importante. A importância das redes se deu justamente pois ela trazia mais visibilidade à vida real. No entanto, as redes acabaram se fechando em si mesmas e sendo espaços que reproduzem a mentira, a manipulação e a deformação de opinião, que é o que estamos vendo agora.

Mas eu sempre tive a certeza de que mesmo nesse espaço o jornalismo poderia se fazer como um lugar de respiro, ou seja, um lugar onde as pessoas poderiam realmente buscar uma informação de qualidade. Que a pessoa soubesse que determinado jornalista está ali produzindo uma matéria com uma perspectiva de totalidade. Uma matéria que tenta trazer o máximo de visões sobre o tema, para que as pessoas possam se informar e ver credibilidade naquilo, porque o mundo da internet é muito duvidoso, as mentiras e boatos aparecem com muito mais força do que a verdade e a ciência. Tenho percebido que o jornalismo também não aproveita esse espaço.

E vejo ainda como a mídia alternativa, por exemplo as rádios comunitárias, usam como fontes as notícias que saem nos jornais comerciais, ou seja, não produz informação local, não produz informação de qualidade, e toma as ‘oficiais’ como verdade. Resumindo, é o que eu sempre digo: o problema não é a rede, mas o que fazemos dentro dessa rede.

Escrevi o seguinte em um texto sobre a questão das redes: ‘Como é que eu, Elaine Tavares, jornalista de Florianópolis, que trabalha em uma rádio comunitária, posso competir com o gabinete do ódio do Eduardo Bolsonaro? Vou disparar minha matéria, no máximo uma centena de vezes por dia, enquanto que uma mídia comercial ou uma mídia da direita, dessas que estão aí para fazer a cabeça das pessoas, disparam milhões de mensagens por minuto. Qual é a nossa eficácia e como vamos competir com isso?’

O problema é que a batalha não está dentro da rede, mas na nossa capacidade de construir, fora do jornalismo, no processo político, uma possibilidade de transformação desse sistema, porque senão podem mudar as plataformas, mas sempre vamos estar em desvantagem.

Muitas vezes as pessoas me atiram muita pedra na categoria, por isso. E não é que eu sou pessimista, sou realista. Dentro do capitalismo, o máximo que podemos fazer é resistir e já basta! Precisamos atacar, precisamos construir outras formas de vida, que signifiquem para o jornalismo se expressar de uma maneira mais interessante em uma outra sociedade, porque nessa aqui nós não temos chance.

Correio da Cidadania: No seu blog pessoal, você reivindica o conceito de Jornalismo de Libertação. Pode explicar um pouco, para além da morfologia, o que pensa sobre isso e como se aplica ao fazer jornalismo?

Elaine Tavares: Esse conceito de Jornalismo de Libertação eu fui buscar no Enrique Dussel, um teórico argentino, um dos criadores da Filosofia da Libertação, de onde saiu a Teologia da Libertação É uma filosofia muito profunda, com uma base muito simples. Ele diz o seguinte: “em um mundo em que tudo se desfez, onde não há mais as grandes narrativas, o que sobra de universal? O que pode valer aqui, na Índia, na China, em Bangladesh e nos EUA?” Ele vai responder: “é a vítima do capital, a comunidade de vítimas do capital”.

Esta é uma universalidade que deve nos irmanar, e aí ele coloca no sentido de quem quer transformar a realidade. Então isso vai chegar na seguinte discussão pra mim: o jornalismo não pode ser neutro nem imparcial, como já sabemos. Ele tem que se comprometer com a vítima, com a comunidade de vítimas do capital. Então temos que saber que quando vamos reproduzir uma informação, estaremos reproduzindo desse ponto de vista: o da vítima do capital. Os trabalhadores, as mulheres, os negros, os indígenas, enfim, essas categorias que estão sob opressão. Esse é o sentido do jornalismo de libertação: desmistificar a ideia da neutralidade e saber que temos condição, sim, de falar a partir do lugar do oprimido, e isso não significa que vamos fazer um jornalismo subjetivo ou da nossa própria vontade, mas que vamos construir e produzir a informação de tal maneira que a pessoa possa reconhecer o que é singular, o que é particular e o que é universal.

Temos que deixar claro para o leitor que há um ponto de vista que está colocado do lado das vítimas, porque seria do feitio do jornalismo. Parte da necessidade de discutir o jornalismo que não pode abrir mão de ter um ponto de vista. Ou vocês pensam que o pessoal lá da Folha não tem um ponto de vista? Eles produzem o jornalismo deles a partir do ponto de vista da classe dominante. E o jornalismo de libertação vai produzir a partir do ponto de vista da classe trabalhadora.

Correio da Cidadania: Que outras se dificuldades são impostas além da questão material e de recursos que fazem com que esse jornalismo, e não o nosso, seja hegemônico?

Elaine Tavares: Tem a ver também com a formação que recebemos na universidade. A universidade é um núcleo de conservadorismo. A universidade em si, a instituição universidade é um braço armado da classe dominante. Não podemos esperar ter dentro da universidade os instrumentos para lutar contra isso.

A universidade quando forma um jornalista, já o faz para ser dessa maneira. Ela já te coloca dentro de uma forma. Lembro aqui na UFSC que tivemos uma batalha no curso de jornalismo que instituiu uma cátedra da RBS durante longo tempo, uma emissora aqui de Santa Catarina, a mais forte, do grupo Sirotski. Então imagina um curso de jornalismo com uma cátedra da RBS, o que esse curso tem a oferecer? Praticamente o seguinte: ‘Como ser um jornalista da RBS’. E o que é ser um jornalista da RBS? É ser um jornalista que não questiona. É ser um jornalista que não é crítico, que vai reproduzir o discurso do poder, da classe dominante, e isso estava sendo ensinado dentro da escola.

Tanto aqui nessa cátedra citada, quanto em outros estados com cátedras semelhantes vinculadas à empresas via editores e jornalistas das empresas ministrando aulas e palestras. Mas além disso, tem toda a formação do jornalista, que não está preocupada com os grandes dramas nacionais e com a transformação do país. Os cursos de jornalismo das federais são todos tecnicistas. Eles ensinam a mexer nos softwares que o mercado exige, mas não te ensinam a perguntar – e como dizia Marcos Faermann, a capacidade mais importante do jornalista é saber perguntar.

Você está em uma coletiva com um governador que gastou dezenas de milhões com respiradores fantasmas e não tem um jornalista com capacidade de fazer uma pergunta decente. Simplesmente não tem. Porque eles não aprenderam a fazer isso. Então isso também tira da faculdade um monte de gurizada que não tem as condições intelectuais para poder produzir essas perguntas, porque não estudaram.

A formação é um ponto. E quando bato nessa tecla, levo muita pedrada porque são colegas nossos, companheiros de esquerda, professores que estão alinhados com partidos políticos de esquerda, que formam comissões de discussão do ensino de jornalismo e que não aceitam de maneira nenhuma essa crítica. É muito difícil. Quantos congressos da Fenaj eu já não fui e levei pedradas? Você faz essa crítica e as pessoas caem de pau em cima de ti como se tu quisesses destruir as coisas. A crítica não é para destruir, pelo contrário, ela é justamente para construir. Mas é muito difícil fazer essa discussão com pessoas que pensam como se estivessem em uma igreja, ou seja, não pode fazer críticas ao seu ‘jesus’ e seus ‘santos’ particulares, nem a ninguém. É muito difícil para nós que temos essa coisa da crítica.

Correio da Cidadania: Como perder o adjetivo ‘alternativo’ que parece estar colado em nossas testas, com algum glamour, é verdade, mas que acaba por denotar também nossas limitações?

Elaine Tavares: É uma excrecência que temos que abominar. Não podemos querer ser alternativos. Não podemos dizer que temos ‘orgulho de sermos alternativos’. Não temos que ser alternativos. Temos que ter o controle dos meios de massa.

Porque se nós tivermos o controle dos meios de massa, poderemos produzir isso que nós produzimos e poderemos gerar conhecimento e opinião crítica, e não será pelos meios alternativos que faremos isso, pois aqui falamos com o nosso próprio público. Falamos para os convertidos. Não é que a gente não deva falar para os convertidos, porque os convertidos podem se desconverter muito rapidamente também. por isso que eu digo que a mídia alternativa é uma mídia de resistência. Ponto.

A gente luta para não morrer, para não deixar o pensamento crítico morrer. E no meio do caminho, perdemos gente também. Mas o nosso horizonte, o nosso sul, não pode ser a mídia alternativa. Tem que ser a tomada dos meios de produção de massa. Eu quero ter na mão a estrutura da Globo.

Imagine nós como chefes de jornalismo da Globo, mas uma Globo sob o controle da gente, dos trabalhadores, da maioria da população. Então é por isso que um outro debate que eu trago para dentro da Fenaj e que sou absolutamente crítica é essa ideia da democratização da comunicação. Eles trabalham com a ideia de que a comunicação pode ser democratizada, mas não pode. Não no mundo capitalista.

O que é democratizar a comunicação? É ter mais verbas para as mídias alternativas? É ter mais negros, mais mulheres, mais gays, mais indígenas, nos jornais e nos telejornais? Isso não é democratizar, é manter tudo como está.

Insisto no conceito de soberania comunicacional. Não de democracia das comunicações. Ou seja, seríamos nós gerindo os meios de comunicação de massa. Não quero viver a vida inteira ali na Rádio Campeche tentando passar informação pra 10 mil pessoas. Temos que querer as massas, chegar a 97% do território, essa é a nossa batalha.

Correio da Cidadania: Pensando na pandemia e política nacional marcada por insanidades do presidente, em linhas gerais, como você analisa o atual momento?

Elaine Tavares: Vejo um desencontro. E não é um desencontro de que ‘as pessoas estejam perdidas,’ ou que ‘o governo esteja perdido’, porque isso me dá um profundo ódio. O governo não está perdido, não está confuso. Esse governo se elegeu para fazer isso. É claro que a pandemia não estava no horizonte dele, mas esse governo se elegeu para confundir e para provocar essa confusão nas pessoas.

Vemos que o gabinete do ódio está a todo vapor. Eu participo e fico ligada em vários grupos bolsonaristas e vejo que aquilo é rápido. Só um exemplo: a informação de que milhares de militares receberam 600 reais, quando saiu, em menos de 5 minutos já contava com material nesses grupos bolsonaristas para descontruir essa informação, e de tal maneira que por mais que haja presente informação, provas e argumentos plausíveis, essas pessoas não acreditam em ti, entende? Elas acreditam naquilo que vem no whats app do fulano, do beltrano, do sicrano, que são essas pessoas que conformam essa rede de confiança desse grupo ‘maluco’, entre aspas, que hoje domina a mentalidade brasileira.

Me incomoda muito quando dizem que é um governo maluco, desencontrado, não é. Enquanto ficamos gritando nas redes contra as maluquices do presidente, na Câmara dos Deputados está tudo passando, e quando nos dermos conta, não vai ter sobrado nada. Eu acho muito complicado. Isso me afeta pessoalmente, politicamente e coletivamente.

Me irrita ver a esquerda brasileira tão ingênua. Ainda mais agora que não podemos nem discutir isso com os companheiros porque estamos em isolamento social. É muito clara pra mim a lógica desse governo, como já estava clara lá no começo. Quem leu o plano de governo Bolsonaro não tem surpresa alguma, já estava tudo planejado. Essa forma como ele atua é histriônica, ele é um ator, e está fazendo exatamente aquilo que ele veio pra fazer. Não tem nenhuma confusão aí.

A gente vê os meios de comunicação reproduzindo essas bobagens, os jornalistas se submetendo a humilhação naquele cercadinho, não deviam mais ir pra lá. O que o vaidoso mais precisa é de holofote. Quando tu tira o holofote dele, não sobra nada. Ou seja, tem outras formas da gente combater essa personalidade ególatra do presidente que poderia ser, por exemplo, jogando luz aos temas importantes da nação.

Em vez de estar no cercadinho vendo o Bolsonaro enfiar o dedo no nariz, esses jornalistas deveriam estar na Câmara dos Deputados explicando para a população o que está sendo feito por lá. Estão passando leis que legalizam a grilagem de terras indígenas e vemos pouquíssima informação sobre isso.

Os bolsonaristas estão dentro de uma bolha que é impossível entrar. Eu falo isso porque tem pessoas da minha família que são, e se o Bolsonaro disser amanhã para matar os comunistas, é capaz de algum desses parentes vir me matar. É típico dos tempos de crise somar essas coisas: religião, fundamentalismo, ódio; esse tipo de coisa sempre aparece em momentos de profunda crise e nós vivemos uma profunda crise do capital, que já acontecia antes da pandemia. Então como não temos um partido político que dê uma direção, nem um movimento social capaz de dar direção, nenhuma liderança política no país, onde que as pessoas vão se agarrar? Em pastor, em bispo, etc..

A gente também tem de fazer a autocrítica e entender que não conseguimos construir um arcabouço partidário e social que conseguisse dar conta das lutas desse país. E quando tivemos um governo ‘dos trabalhadores’, o que fez foi ajudar a aprofundar esse processo e não a criação de uma alternativa real aos trabalhadores.

Correio da Cidadania: Que lições podemos tirar destas tragédias cotidianas e o que esperar para os tempos vindouros?

Elaine Tavares: Lembro que num encontro que teve em Belo Horizonte, quando a Dilma já sofria processo de impedimento, eu disse numa das salas que eu fiz, e também fui apedrejada porque era um encontro com muitos petistas: que o PT ficou 15 anos no poder e não construiu nenhuma alternativa comunicacional. Imagina, 15 anos e não construir nada.

Não teve mídia alternativa, nada, não se criou nada. Na Venezuela, o Hugo Chávez em cinco anos já estava com 5 canais nacionais de televisão, redes de rádio nacionais, circulando informação a nível nacional. Aqui, tivemos o PT no poder por 15 anos sem constituir nada, pelo contrário, destruiu coisas, perseguiu rádios comunitárias, entre outros fatos. Essa lição o pessoal não aprende, porque quando você faz essa crítica, eles te jogam pedras ao invés de pensar a respeito. A impressão que eu tenho é que se, por alguma obra mágica, esse povo voltar amanhã para o poder, vão repetir os mesmos erros. Parece que não conseguimos avançar.

Outra coisa, tem pessoas sonhando que depois da pandemia o mundo vai ser mais solidário. Vai nada. Vai ser pior do que estava antes, porque teremos uma massa ainda maior de desempregados, trabalhos que vão ser perdidos porque esse negócio do teletrabalho vai criar uma nova lógica para o trabalho, e vamos ver como isso vai se transformar numa ferramenta de dominação e de pressão e exploração dos trabalhadores muito forte nos dias que virão depois da pandemia. Vai arrochar ainda mais a vida dos trabalhadores, sendo que eles já estão dando a vida.

A maioria das pessoas que vai morrer nesse processo são os pobres. Vejo com bastante pessimismo o futuro, mas ao mesmo tempo com bastante otimismo. Vemos experiências que são importantes e que brotam nesses momentos. Tenho a esperança de que os trabalhadores possam perceber essas coisas e construir algo.

Contudo, é impossível fazer qualquer tipo de transformação se não tivermos um partido revolucionário, que organize a luta em nível nacional e que realmente esteja a serviço de uma transformação radical. Acho que vai demorar muito, não está à nossa porta a revolução, mas ao mesmo tempo, quando estudamos a história das revoluções no mundo, sempre há o momento em que aparece uma faísca, quando não estamos esperando, alguma coisa acontece e a população se levanta.

O problema é que quando a população se levanta de maneira espontânea, se não tiver uma direção para caminhar, esse movimento vai se desfazer. Temos exemplos bem contemporâneos, como no Equador onde jogaram um presidente pela janela do palácio, e aí quando chegou ‘na hora do vamos ver’ entregaram a presidência para um burguês. Precisa ter direção. E para ter direção, precisa organização. E para ter organização precisamos de um partido político que se organize em nível nacional. É isso que está faltando aqui no Brasil, mas que podemos construir. Tem muita gente boa trabalhando e pensando isso. Como já dizia Rubem Alves, a gente planta sementes para árvores sob as quais nunca nos sentaremos. É triste isso, mas é a realidade. Em geral as lutas que a gente trava no presente vão abraçar as próximas gerações, não a nossa, mas a gente tem que fazer essa luta agora pelos que virão nesse futuro aparentemente tão triste que vemos pela frente.


Confira a página pessoal de Elaine Tavares no Correio

 

Conheça o blog pessoal de Elaine Tavares


Raphael Sanz é jornalista e editor-adjunto do Correio da Cidadania.
Colaborou Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.

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