Meio Ambiente: “Direitos conquistados estão colocados em xeque para serem revertidos legal e politicamente”
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- Raphael Sanz, da Redação
- 13/08/2021
Enquanto o mundo toma consciência da gravidade da crise ambiental planetária e a relação direta da intervenção humana nesse processo (*1), a boiada segue passando no Brasil de Bolsonaro, que convive com o avanço violento da grilagem e exploração predatória sobre terras indígenas e unidades de conservação, amplamente relatadas nos mais variados meios de comunicação. A troca recente na chefia do Ministério do Meio Ambiente, em que saiu o desgastado e escandaloso Ricardo Salles para a entrada de Joaquim Álvaro Pereira Leite, não parece dialogar com a preocupação global, pelo contrário, claramente deve aprofundar o atual desmonte em curso de toda a legislação ambiental e legalizar práticas hoje tidas como crimes, mas que favorecem a expansão das fronteiras extrativistas (*2).
Para compreender e refletir sobre como questões fundiárias, ambientais e indígenas encontram-se nessa importante conjuntura nacional, entrevistamos Camila Salles de Faria, doutora em Geografia Humana pela USP, professora da UFMT e autora da tese ‘A luta Guarani pela terra na metrópole paulistana: contradições entre a propriedade privada capitalista e a apropriação indígena’ (*3), na qual pesquisou justamente um longo conflito de terras que envolve a família do novo ministro e os guarani do Jaraguá, em São Paulo.
Sobre a troca ministerial, não há o que comemorar: “Vai continuar passando a boiada. Não acredito que vá alterar coisa alguma. A troca da peça, ou seja, tirar um Salles desgastado e investigado de cena, é justamente para tirar o foco que havia nele e permitir que a boiada siga passando (...) É uma política de retrocesso que não está ‘parada’, mas andando pra trás. Os direitos conquistados não estão apenas ‘não sendo cumpridos’, mas colocados em xeque a fim de serem revertidos numa perspectiva legal e política”, declarou a pesquisadora.
Camila resumiu a história da TI do Jaraguá, onde a ocupação guarani aparentemente é muito anterior aos anos 40, quando datam os primeiros relatos documentados. Além disso, contou um pouco sobre o que aprendeu com a convivência com os indígenas e descreveu não apenas a atuação do novo ministro e sua família na TI, mas como a disputa se insere na lógica da expansão da especulação imobiliária e dialoga com conflitos de semelhante natureza em todo o país.
“Pegando o Jaraguá como um exemplo desse quadro mais amplo, ele está inserido hoje numa lógica de expansão da periferia da cidade, que, por sua vez, está vinculada à questão imobiliária (...) Já no Mato Grosso, existe um processo que tem correlação, que é a expansão das fronteiras do agronegócio, da retirada de madeira e mineração. Assim, vamos ter duas facetas do capital, que ora estão juntas, ora separadas, mas convergem na hora de olhar para as terras indígenas como áreas de expansão e reprodução desse modelo”.
Leia a entrevista na íntegra a seguir.
Correio da Cidadania: Como você avalia o período de gestão do ex-ministro Ricardo Salles à frente da pasta ambiental e a recente troca para Joaquim Álvaro Pereira Leite?
Camila Salles de Faria: É interessante pensar a questão ambiental relacionada às questões fundiária e indígena. Graças a um estudo do Instituto Socioambiental (*4), já sabemos desde a década passada que as terras indígenas e as unidades de conservação da Amazônia são as áreas mais preservadas e menos desmatadas do Brasil. Mas temos um governo que foi eleito dizendo que não iria demarcar nem um centímetro de terra, pelo contrário, iria rever as que estavam demarcadas, e a partir daí vemos que as políticas de demarcação de terras e ambientais como um todo vivem um período de retrocesso. Elas não estão ‘paradas’ como muitas vezes dizem nos meios de comunicação, ou como ‘no governo Temer houve uma paralisação das demarcações’. Não é isso, existem constantes ataques. É uma política de retrocesso que não está ‘parada’, mas andando pra trás. Os direitos conquistados não estão apenas ‘não sendo cumpridos’, mas colocados em xeque, a fim de serem revertidos numa perspectiva legal e política.
Estou hoje no Mato Grosso. A leitura da gestão do Ricardo Salles pra cá é muito mais cruel do que, por exemplo, em São Paulo, se olharmos pelo prisma local. Aqui, dentro das terras indígenas, temos acompanhado uma série de ações de retirada de madeira, às vezes legais e com consentimento dos planos de manejo estaduais, outras vezes não tão legais, e muitas vezes parcialmente legais, ou seja, fazem o plano de manejo de uma área e tiram a madeira de uma outra, próxima.
Do governo Bolsonaro como um todo, e não apenas na relação com o Meio Ambiente, vemos que na questão das terras e suas titulações e regularizações, nos dá a impressão de que é possível que a ilegalidade se torne legal. A partir daí podemos ter uma noção do que tem acontecido.
Em todo o Brasil, encontramos terras públicas sendo vendidas na OLX, o que o pesquisador Maurício Torres (doutor em Geografia Humana pela USP) tem demonstrado a exaustão no sul do Pará. Aqui no MT, nós percebemos, a partir de uma leitura com o MPF, que mesmo após a suspensão em fevereiro desse ano da Instrução Normativa 09 - das certificações das terras não indígenas em terras indígenas cujo processo de homologação não foi terminado - o Incra, em conluio com a Funai, continuou certificando. Ao serem questionados disseram que foi um erro no sistema. Mas aí que está: se ninguém for lá monitorar e questionar, tudo vai passando. E grande parte desses imóveis era vinculada a madeireiras.
Não acho que vá mudar a política do Salles pro Pereira Leite, talvez uma ou outra coisa lateral, no máximo. Porque o que há é uma concepção do governo que está posta – e foi eleito em cima disso. E a história do Pereira Leite, como é de conhecimento público, já nos indica pra onde vamos.
Joaquim Álvaro Pereira Leite trabalhou anos vinculado à Associação Rural Brasileira. Fui assistir a uma palestra de um desembargador que é a favor da transformação de terras indígenas em propriedade privada – que obviamente já participou de vários processos de reintegração de posse e estava naquele espaço para fazer uma palestra da qual todos estavam tomando nota do passo a passo e pedindo manual de como obter a reintegração de posse da sua propriedade.
Digo isso tudo para ilustrar que não vai mudar muita coisa. O que está colocado em pauta na questão ambiental não vai mudar. Não vão criar mais Unidades de Conservação, nem homologar terras indígenas. Não é da natureza desse governo fazer isso.
Correio da Cidadania: Em matéria assinada por Regiane Oliveira, para o El País, o novo ministro do meio ambiente é descrito como um sujeito que apenas irá “alterar o trajeto da boiada de Ricardo Salles”, uma vez que já teria sido bem sucedido em fragilizar sistemas de proteção socioambientais via decretos e portarias. Você concorda com essa apuração?
Camila Salles de Faria: Concordo, vai continuar passando a boiada. Só não acredito que vá alterar coisa alguma. A troca da peça, ou seja, tirar o Salles desgastado e investigado de cena, é justamente para tirar o foco que havia nele e permitir que a boiada siga passando.
Correio da Cidadania: Em outra matéria, dessa vez assinada pela redação da Rede Brasil Atual, Pereira Leite é colocado como ex-assessor de ruralistas e tem citada sua ligação com a disputa de sua família, que desde 1986 reivindica partes na Terra indígena do Jaraguá em São Paulo, onde vivem algumas centenas de pessoas das etnias Guarani Mbya e Ñandeva. A sua tese de doutorado, inclusive, fala bastante desse processo. Como se deu?
Camila Salles de Faria: Ele alegou em resposta à reportagem que esse conflito faz parte do espólio do pai dele, e que ele não teria “nada a ver” com isso.
O Pereira Leite pai diz no processo que comprou a área em 1947. Tenho aqui a matrícula da área e na minha tese vou mostrar que ela não tem origem. A grilagem dessas áreas foi feita no final do século 19 e começo do 20. Mas ele comprou 16,94 hectares em 1947, que depois foram cortados pela Rodovia dos Bandeirantes. Estou olhando a matrícula do imóvel agora, e dos 16,94 hectares, 12,5% estão em nome do Joaquim Álvaro Pereira Leite Neto. Ou seja, não é só um caso de espólio do pai.
Para pensarmos um pouco a história do Jaraguá a partir do meu trabalho: defendi minha tese em 2015, e em 2016 eu já vim pro Mato Grosso. Desde então estou mais vinculada a questões do MT. Portanto, o que vou contar é basicamente até esse período.
Hoje sabemos que as retomadas indígenas na área somam de 8 a 9 aldeias. Não apenas nas terras que os Pereira Leite reivindicam, mas em todas as áreas propostas para demarcação a partir de 1988. Mas acontece que a TI do Jaraguá teve seu processo de demarcação feito em 1987, antes da Constituição que, por sua vez previa diversas maneiras de se reconhecer uma terra indígena não previstas até um ano antes. Tanto é que em 1987 foram demarcados 1,7 hectare, o que a tornou conhecida como a menor terra indígena do mundo.
Em 2009 começou o processo, que vinha de uma reivindicação antiga dos povos indígenas, em que a Funai fez o reconhecimento dessas áreas a partir da Constituição de 1988. Mas só começou em 2009, quando se montou um Grupo de Trabalho no qual muitos estudantes e pesquisadores da USP foram chamados. Eu fui compor esse GT mais no final, em 2013, época que foi publicada a identificação.
Passado o reconhecimento do Estado pela identificação, têm continuidade todos os problemas fundiários que trago na tese. E não só os Pereira Leite envolvidos. Tem também outros personagens como o Tito Costa, que já foi deputado federal e estadual, entre outros. Só que os Pereira Leite têm uma situação mais emblemática porque desde os anos 40, e os estudos da Funai vão mostrar isso, já há relatos de presença de Guarani nas terras que a família reivindica, na margem oposta da Rodovia dos Bandeirantes.
Inclusive, com a vinda da estrada, o Pereira Leite pai não aceitou o valor recebido pela desapropriação do trecho e moveu uma ação contra a Dersa. São diversos atores, entre eles o próprio Estado de São Paulo.
A ocupação Guarani não começa exatamente na década de 40, mas é nesse momento em que encontramos os primeiros relatos documentados da sua presença nessa área que os Pereira Leite reivindicam e é chamada de Eucaliptal. Já havia uma pressão para retirar os indígenas de lá e algumas décadas depois, veio esse caso mais emblemático, que ficou mais conhecido e tem mais documentação a respeito.
As famílias que moravam na TI demarcada em 1987 usavam o lote do Pereira Leite; sempre foi usado, pelo menos desde os primeiros relatos (dos anos 40). O que se ouvia, e era muito comum, era que poderiam fazer plantios anuais ali. Uma das famílias, a do José Fernandes, o Cambá, que é um personagem importante e infelizmente faleceu esse ano, foi pra lá fazer esse plantio anual e ficou morando na terra. A partir do momento que ele começa a morar os conflitos aumentam. E em que sentido? Mandam pessoas que se apresentam como advogados para tirá-los de lá. E vão passando pessoas basicamente dizendo que ‘essa terra tem dono e você tem que sair daí’. Se eram advogados de fato, não temos como saber.
Nem o José Fernandes sabia. Ele era uma liderança espiritual extremamente importante, tinha um conhecimento e uma relação muito forte com os Guarani. Nos rituais que eles faziam muitas vezes o seu Zé Fernandes começava o Mborai'i, a reza guarani, e as pessoas diziam ‘agora você vai ouvir o chão tremer’. Quer dizer, o Seu José Fernandes era conhecido pelos guarani como “aquele que faz o chão tremer”, alguém com uma força espiritual muito grande. E isso fez com que concentrassem as pessoas ali, diversas famílias fossem chegando e, consequentemente, aumentasse o número de pessoas que habitavam a aldeia de cima, onde ficam as supostas terras dos Pereira Leite.
E como poderíamos supor, conforme foi chegando mais gente, o conflito sobre a posse das terras também veio aumentando. Naquele momento o Pereira Leite pai entrou com diversos processos de reintegração de posse para retirar essas famílias, que continuam até hoje. Na gestão da Marta Suplicy a prefeitura inaugurou ali o CECI Jaraguá, no que seria a área sobreposta por Pereira Leite pai. E ele continuou com os processos de retirada das pessoas, mesmo com a escola colocada ali. Vira e mexe volta na Justiça todo o drama e a insegurança de ter que sair da área, de que o Pereira Leite está mexendo nisso e terão que deixar as terras.
Aumenta o conflito, a intimidação e toda aquela pressão sobre os indígenas a partir do momento que a população da aldeia vai crescendo. Acredito que tenha ficado muito resumido, mas a história é mais ou menos essa.
Correio da Cidadania: Quais seriam, pegando esse processo como uma ilustração do todo, os principais fatores que motivam o avanço atual sobre terras indígenas, áreas de preservação e outras terras que ainda não estão exatamente colocadas dentro das “fronteiras agrícolas”?
Camila Salles de Faria: Pegando o Jaraguá como um exemplo desse quadro mais amplo, ele está inserido hoje numa lógica de expansão da periferia da cidade, que, por sua vez, está vinculada à questão imobiliária. Tanto que um dos conflitos dos Guarani do Jaraguá é com a Tenda, em outra área da TI, não a reivindicada pelos Pereira Leite. E por que a família Pereira Leite, na figura do José Álvaro pai, nunca quis produzir naquelas terras ou revendê-las? Podemos supor que estavam especulando com o lugar, esperando o processo de valorização. A mesma coisa no caso do Tito Costa. A terra estava lá esse tempo todo sendo usada pelos Guarani, mas os conflitos de posse vão se dar no momento pós-88, após a identificação da terra como TI e em paralelo com o processo de expansão da periferia da cidade. E isso não ocorre só em São Paulo que é a maior cidade do país, mas em lugares como, por exemplo, o Vale do Ribeira, onde as fronteiras urbanas, imobiliárias, também se chocam com as áreas indígenas.
Já no Mato Grosso, onde estou agora, existe um processo que tem correlação que é a expansão da fronteira agrícola, com o plantio de soja e retirada de madeira, que também impulsiona conflitos de terra com comunidades indígenas.
Vamos ter duas facetas do capital, que ora estão juntas, ora separadas, mas que convergem na hora de olhar para as terras indígenas como áreas de expansão e reprodução desses modelos, seja através do capital imobiliário e da expansão das periferias urbanas, ou através da expansão das fronteiras do agronegócio, da mineração e da extração de madeira.
Correio da Cidadania: Por fim, o que você pôde presenciar, do lado dos indígenas do Jaraguá, em termos de organização comunitária e quais lições podemos aprender com essa caminhada?
Camila Salles de Faria: A retomada e as reafirmações territoriais se configuram como uma estratégia de resistência dos indígenas como um todo e dos guarani em particular para concretizar sua territorialidade, ou seja, para que possam exercer seu modo de ser guarani. As retomadas não são o único caminho, há também as manifestações e bloqueios, por exemplo, se os guarani resolvem fechar a Bandeirantes. E há o Mborai’i na casa de reza, que antecede tudo.
Antes de começar a luta pela ocupação de uma terra ou uma manifestação, há a reza. Agora imagina como era fazer uma luta assim nos anos 80, colocando diversos indígenas em um ônibus e indo para o lugar, e nesse sentido o seu Zé Fernandes teve um papel importante, por conta da casa de reza, que além da própria função espiritual, também funcionava como um espaço de acolhida e reunião. Os guarani se fortaleciam ali, se encontravam, podiam se hospedar e ali pediam proteção dentro do que acreditam, partindo então para as ações afirmativas, manifestações, retomadas de terras e assim por diante, utilizando outras estratégias diversas que vão sendo alteradas de acordo com o contexto.
Ainda que o termo ‘retomada’ tenha ganhado mais destaque recentemente, não é novo, elas já ocorriam. Os guarani, por exemplo, ocupavam uma área, e então tinham de sair. Daqui a pouco iam voltando. Isso sempre aconteceu, de uma forma que não causava tanto atrito. Iam e voltavam, iam e voltavam. Sempre se esquivando da violência, que é unilateral e gerou incontáveis episódios de queima de aldeias inteiras e expulsão. Por exemplo, em Araquari, no norte de Santa Catarina, a briga com a Karsten foi feroz. Atearam fogo nas casas dos guarani, depois mandaram eles em um caminhão pra Barra do Sul, onde viveriam na periferia da cidade, em um terreno sem água, sem comida, sem nada. Ou seja, jogam-nos no caminhão e danem-se.
Mas eles não ficaram em Barra do Sul, foram saindo aos poucos, indo pra outros lugares, ocupando outros lugares. Há um processo extremamente violento que desestrutura as famílias, e assim eles vão saindo. Uns voltam pra terra anterior, outros vão pra São Paulo ou outros lugares. Vão nesse processo de mudança e mobilidade que é bem característico. O que quero dizer é: a retomada é um processo de reafirmação territorial que já faz parte da vida dos guarani. E esse processo de luta vai mudando, e hoje eles, assim como outros povos, resistem mais do que outrora, estão se organizando para isso. Se há uma reintegração de posse, por exemplo, chamam imprensa, advogados, apoiadores indígenas e não-indígenas, e resistem.
A grande lição que os guarani nos passam é que eles existem, e que pelo ato de existir eles resistem, e que essa resistência é uma prática diária e antiga.
Notas
1. “Relatório do IPCC comprova: o aquecimento global já está aqui”, matéria de Giovana Girardi para a Agência Pública.
Link: https://apublica.org/2021/08/relatorio-do-ipcc-comprova-o-aquecimento-global-ja-esta-aqui
2. Arrancando os recursos naturais com violência: as extraheções. Artigo de Eduardo Gudynas para o Correio da Cidadania.
Link: https://www.correiocidadania.com.br/colunistas/eduardo-gudynas/14309-arrancando-os-recursos-naturais-com-violencia-as-extrahecoes
3. A luta Guarani pela terra na metrópole paulistana: contradições
entre a propriedade privada capitalista e a apropriação indígena.(Camila Salles de Faria, USP, 2015)
Link: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-03032016-142809/pt-br.php
4. Instituto Sócioambiental: https://www.socioambiental.org/pt-br
Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania.