Governos territoriais autônomos Wampís e Awajun: geografia, história, cosmologia e política
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- Raphael Sanz, da Redação
- 04/03/2022
Legenda: Pôr do sol no rio Kanus ("Santiago"), a oeste da Cordilheira Kampankis - a leste está o Rio Kankaim ("Morona"), ambos são os principais rios do território integral Wampís ou Iña Wampísti Nunke. A foto permite ver as dimensões cósmicas de Nunke (Terra), Entsa (Águas), Nayaim (Céu, morada dos ancestrais), de Nantu (Lua) e as Yaas (estrelas). Por Leandro Bonecini de Almeida.
Desde 29 de novembro de 2015 a nação Wampís, localizada no norte do Peru, vive, organiza-se e se reproduz socialmente sob um governo autônomo autodeclarado sobre o seu território. Na sequência, outros governos autônomos amazônicos se somaram, como os numerosos Awajun e, juntos, os territórios localizados em espaços entre os departamentos (equivalentes aos nossos estados) de Cajamarca, San Martín, Amazonas e Loreto, contam com uma população autogovernada de aproximadamente 17 mil Wampís e 53 mil Awajún. O fato chama a atenção em um momento em que vemos no Brasil e em toda a América Latina uma escalada no avanço de mineradoras, madeireiras e grandes empreendimentos energéticos, além do agronegócio, sobre as terras indígenas e de preservação ambiental. Os governos autônomos amazônicos, para além de um modo de organização social, apresentam interessantes reflexões a respeito das lutas dos povos contra esse avanço. Para compreender o contexto em que se dá essa declaração de autonomia indígena no país vizinho e os debates que a seguem, entrevistamos o cientista social e educador Leandro Bonecini de Almeida, que passou os últimos cinco anos estudando o caso e esteve nos territórios, onde atuou na área comunicação e educação do Wampís.
No começo da entrevista, Leandro nos trouxe toda a dimensão histórica, geográfica e política pré existente dos Wampís e Awajun, e nos explicou o processo que levou a autodeclaração dos governos autônomos, claramente uma resposta ao colonialismo histórico e aos avanços dos setores extrativos nos territórios. Na sequência, nos explicou o funcionamento da sociedade já apoiada pela recente conquista da autonomia.
“Os governos autônomos Wampís e Awajún não pretendem criar uma estrutura política ou uma superestrutura simbólica que controle a totalidade do território do estado-nacional, controlando ou substituindo o Estado peruano, parcial ou integralmente. Isto não exclui, como dito anteriormente, a solidariedade e a concertação entre Nações Originárias e seus Governos Autônomos, como horizonte de emancipação das relações de opressão e para realização da vida plena. Os governos autônomos não podem ser comparados a uma lógica social democrata, que buscaria transformar a estrutura do estado por vias legais. Seja por pressão popular, resistência ou uso da força, as ações se centram em garantir a reprodução social da cultura sobre um território de poder autônomo. Isto não pode ser entendido como ‘desperdício’ de uma oportunidade histórica por povos milenares, anteriores ao Estado”, explicou.
Leandro Bonecini de Almeida nos explica, com base em suas experiências nos territórios Wampís, que o sistema de governo territorial contribui aos desafios colocados pela crise social e ecológica do planeta: “como consequência das práticas de convivência com a floresta, a Nação Wampís contribui para a humanidade por meio dos bosques existentes numa extensão de aproximadamente 1 milhão 327 mil hectares. Acredito que os territórios das Nações originais mesmo com todas as suas longas lutas de defesa são ainda frentes de resistência às fronteiras do colonialismo, do extrativismo e do avanço do capitalismo que tem nas terras e territórios indígenas uma reserva de valor. Tais resistências se dão pelo profundo conhecimento das dinâmicas do conjunto de seres que compõem os territórios ancestrais. São conhecimentos, ciências, práticas, sonhos e visões do futuro, são poesias e também belezas que convivem com territórios em conflitos civilizatórios e cotidianos”, analisou.
E se como dissemos acima, os governos autônomos amazônicos, e os movimentos de autodeterminação indígena como um todo, inspiram novos modos de organização e reprodução social em simbiose com a resistência ao atual avanço do capital – que engloba, obviamente, a planetária crise ambiental - nosso entrevistado não poderia deixar de fazer um alerta e um chamado a respeito de conjunturas brasileiras correlacionadas.
“É extremamente urgente que nos mobilizemos coletivamente no Brasil em direção à iniciativas dessa natureza, que são várias, dedicadas a recuperar territórios historicamente expropriados: os Guarani, Kaingang, Tupinambá, Ka’apor, Munduruku etc.. Na história contemporânea da América Latina existem outras expressões de autonomia [além dos Wampís e Awajun] e tendo a ter uma irredutível convicção de que os princípios de justiça e as formas de se governar as agendas políticas e práticas cotidianas das autonomias das nações originárias são mais do que inspirações para a emancipação dos povos do mundo. São convites para que todas e todos sejamos capazes de governar nossas próprias vidas de maneira organizada e solidária em territórios com controle popular em face dos autoritarismos oligárquicos, religiosos, capitalistas e paramilitares”, concluiu.
Leia a seguir o resumo da entrevista.
E para escutá-la na íntegra, clique aqui e ouça o oitavo episódio do CorreioCast na sua plataforma de preferência.
Leandro Bonecini de Almeida é educador e cientista social. Doutor pelo Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e mestre em Estudos Latinoamericanos pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). Compõe atualmente o grupo de trabalho Corpos, Territórios e Resistências do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO).
Correio da Cidadania: O que é importante destacar acerca dos povos Wampís e Awajun, sua história e seus territórios para que se compreenda a emergência da sua autonomia?
Leandro Bonecini de Almeida: Agradeço pelo convite da entrevista. Já vou responder objetivamente à pergunta, mas antes gostaria de comentar que para eu respondê-la, venho nos últimos cinco a seis anos pesquisando, trabalhando, e estive no território Wampís entre 2019 a 2020, durante dez meses, onde trabalhei na área de comunicação e educação comunitária nesse território que se fez conhecer internacionalmente a partir da fundação do governo autônomo Wampís em 2015.
Os territórios Awajún e Wampís, localizados entre os departamentos [equivalente aos nossos estados] de Cajamarca, San Martín, Amazonas e Loreto, ao norte do Peru, é parte do ecossistema andino-amazônico que conecta corpos hídricos das “humedales” ou “páramos” [nascentes de águas] andinos e seus sistemas de lagoas, que escoam para o mar ao oeste ou para a franja amazônica ao leste. Esta geomorfologia e hidrografia é culturalmente significada e apropriada pelas sociedades, grupos étnicos ou famílias linguísticas jívaras: Wampís, Awajún, Shuar e Achuar.
Este conjunto linguístico e cultural está localizado, mas não limitado, na face oriental dos Andes seguindo as cordilheiras e montanhas ao noroeste do Peru, especialmente a Cordilheira do Cóndor, o Kumpanan, o Tuntanain, e a Cordilheira de Kampankis (Kampankias Murari) em meio as bacias dos rios Kanus (Santiago) e Kankaim (Morona). Os Wampís tem uma população de aproximadamente 17 mil habitantes, enquanto a oeste os Awajún, segundo povo indígena mais populoso no Peru, tem ao redor 53 mil habitantes.
Territórios Wampís e Awajun sobrepostos sobre o mapa do Peru.
Em primeiro lugar é importante destacar a antiguidade da longa duração da presença das nações originárias na Amazônia e no mundo. É importante no Brasil nós considerarmos essa forma de nomear os chamados “povos indígenas”, que são aquelas sociedades anteriores a colonização. No caso dos Awajún e Wampís, segundo os seus próprios relatos de história oral e das cosmologias, ou nos relatos das crônicas coloniais e também os estudos antropológicos, afirmam que são ocupações que datam de milhares de anos.
Os Wampís e Awajún fazem parte - junto com os Achuar (ao leste) e os Shuar (a norte, já dentro das fronteiras do Equador) - da família linguística conhecida como Jívaro, que é um nome dado pelos colonizadores, tal qual foram Huambisa (Wampís) e Aguaruna (Awajún). Mais recentemente se propôs a designação de Aénts (“Todo ente dotado de Alma”) ou Aénts Chicham (“Os que falam com seres espirituais”) para o conjunto etnolinguístico, dando ênfase às relações com e entre seres e sociedades que convivem, coabitam e compõem a floresta, pois além dos humanos, existem entidades dotadas de poder e consciência segundo a cosmologia comum aos Wampís, Awajún, Shuar e Achuar.
Estas sociedades resistiram a diferentes processos de colonização, ataques e ofensivas, no caso Wampís e Awajún se destaca a do Reino Mochica ao norte dos andes peruanos, também o Império Inca, posteriormente o Império espanhol e as Missões jesuítas – como na grande rebelião Jívara de 1599 que destruiu os assentamentos espanhóis e eliminou as missões jesuítas. Tal resistência se transforma no tempo e se deu em diferentes conflitos contra agentes externos, porém também em batalhas e guerras interétnicas, ou seja, entre as próprias nações originárias. Mais tarde, a independência do Peru em 1821 trouxe novos desafios para a garantia da sobrevivência da cultura, das práticas, dos conhecimentos e do controle territorial.
No século XX é importante destacar como incide o contexto global de transformação das economias hegemônicas sobre as amazônias. A região objeto de assédio das potências mundiais ocidentais, como Estados Unidos e Inglaterra, assim como do Estado e o capital nacional, sobretudo pela demanda crescente de recursos naturais o que levou à aceleração da expropriação de terras e territórios, o que se deu também sobre corpos “indígenas”, sobre a cultura e sobre os seres que habitam a floresta um ecossistema indivisível altamente complexo.
Mapa do território Wampís.
No século XX se intensifica a exploração das variedades de borracha ou “caucho” e das peles de animais como lontras e onças. Em meados do século XX ainda se descobrem jazidas de petróleo importantes na Amazônia o que leva, no Peru e Equador, à rápida territorialização das indústrias petroleiras. Este processo foi acompanhado, nas décadas de 1960 e 1970, de outras ações de colonização: da maior ofensiva do Estado – assim como ocorreu no Brasil - para colonização destes territórios, segundo um discurso indigenista da integração por meio de infraestruturas viárias, sobretudo estradas.
Simultaneamente se implementaram políticas da Lei de Comunidades Nativas, de 1974/78, para titulação de comunidades, como única entidade territorial indígena reconhecida pelo Estado. A primeira organização indígena Wampís e Awajun, o “Consejo Aguaruna y Huambisa” (CAH), é fundada em 1977, umas das primeiras organizações indígenas amazônicas do país e peça fundamental na criação da Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana (AIDESEP).
Mapa do território Awajun.
Também nas ofensivas dos anos 60 e 70 se estabelecem os marcos legais e executivos para a educação intercultural bilíngue, por meio da fundação de escolas nas comunidades tituladas, com participação sobretudo de igrejas, jesuítas e evangélicos no Peru, salesianos e evangélicos no Equador. Destaca-se o impacto da atuação das igrejas evangélicas norte americanas por intermédio do Instituto Linguístico de Verão (ILV) ou em inglês Summer Institute of Linguistics (SIL), fundado em 1934, com sede em Dalas, Texas, que realizou trabalhos de investigação linguística, tradução da bíblia, e atividades de formação de professores e lideranças bilíngues. Atuou sistemática e simultaneamente em ao menos 12 países da América Latina com apoios, privilégios e subvenções de Estados, como México, Panamá, Colômbia, Equador, Bolívia, Peru e Venezuela.
A partir dos anos 80 e 90 a agressividade neoliberal reascendeu os conflitos de fronteiras entre o Peru e o Equador, após os confrontos de 1941 que resultaram nos Acordos do Rio de Janeiro. Os novos conflitos armados se deram nas batalhas do “Falso Paquisha” em 1981 e na Guerra do Cenapa em 1995, durante o governo de Alberto Fujimori. Nessas guerras a participação da população indígena se deu nos Batalhões de Infantaria de Selva ou “BIS” situados em seus territórios, após e apesar dos inúmeros casos de abusos e violências a cabo pelas forças armadas republicanas – como no caso da execução do líder insurgente Wampís chamado Sharian, executado em uma fossa no interior do Batalhão de Infantaria de Selva “Tenente Pinglo”, no Baixo Rio Santiago.
Na década de 1990 o Estado peruano, em uma radical posição neoliberal, é mobilizado no sentido de desmontar o regime de terras comunais, capitalizar as terras e territórios amazônicos, por meio da tentativa de expropriação das áreas não tituladas, supondo seu abandono ou ausência de ocupação, e portanto, estas estariam ao dispor de um mercado de terras ou zonas de concessão para atividades extrativas.
Tais conflitos de fronteira serviram como mote para novos projetos de integração da economia mundial nestes territórios. Após a Guerra do Cenepa, que se deu entre janeiro e março de 1995, os acordos de paz ratificados em 1998 incluíam a constituição do Parque Nacional Ichigkat Muja (idioma Awajun) nos territórios ancestrais da Cordilheira do Condor (Wichinkat ou Winchinkin Mura, em Wampís), uma das áreas de maior biodiversidade do planeta. Foi, em 2004, unilateralmente concessionada a Mineradora Afrodita S.A.C, atingindo territórios Wampís, Awajún e Shuar. Em 2007 a área acordada do parque foi reduzida arbitrariamente após quatro anos de negociações, de 152.873,76 mil hectares para 88.477 mil hectares, sem prévia consulta aos povos Awajún e Wampís, gerando uma profunda sensação de traição.
Os acordos resultaram também na elaboração dos Planos Binacionais, com uma série de projetos de integração, entre eles uma estrada - “Eje Vial 5” - paralela ao Rio Kanús sobre território wampís. Outro exemplo, é o da Zona de Reserva Santiago Comaina (ZRSC), criada em 21 de janeiro de 1999, sobrepondo o sagrado “Cerro Kampankis”, objeto de contínua disputa [“La Nación Wampis rechaza la pretensión de SERNANP de expropiarle Kampankias” (GTANW)].
É um contexto de mercantilização dos territórios indígenas e de liberalização das economias latino americanas, seja pela ALCA ou acordos de livre comércio bilaterais ou multilaterais, acompanhados de reformas jurídicas que garantissem uma maior segurança jurídica para o investimento estrangeiro direto e a reprodução de capitais internacionais e nacionais.
No caso do Peru as negociações com os Estados Unidos resultaram na promulgação de decretos legislativos que mudavam o ordenamento jurídico-constitucional sobre as terras indígenas e fragilizava a autonomia e o poder de decisão dos povos indígenas sobre o uso das terras e territórios ocupados ancestralmente. A reação indígena levou às manifestações de fechamento de estradas e ocupação dos postos de bombeamento de petróleo e finalmente aos eventos conhecidos como o Baguazo durante o governo de Alan Garcia, após uma década de fujimorismo, e violências contra os povos indígenas, crimes contra a humanidade e assassinatos seletivos contra lideranças de oposição. O Estado, no ano de 2006, aprovou o Lote Petroleiro 116, sobrepondo a Cordilheira de Tuntanain, território ancestral compartilhado pelos Awajun e Wampís, já atingidos pela passagem do Oleoduto Norperuano. Também o Lote Petroleiro 64, fora concessionado sem consulta e/ou consentimento, causando conflitos irreconciliáveis.
Em todos os processos de resistência de longa duração os povos indígenas se apropriam de tecnologias jurídicas e de comunicação das sociedades colonizadoras. Os sistemas de conhecimentos e práticas de territorialização das nações originárias desenham novos horizontes de realização e de criação institucional. Ou seja, os povos indígenas se apropriam dos códigos jurídicos da sociedade ocidental, do próprio estado moderno, mas também aqueles códigos jurídicos críticos a colonização elaborados nos processos globais de resistência e descolonização, sobretudo na América Latina África e Ásia.
Me refiro especialmente à elaboração das categorias de “autodeterminação” ou livre determinação construídas nesse processo de descolonização nas esferas de solidariedade internacional também compõem o léxico das autonomias e deriva portanto nas autonomias enquanto sua expressão real e singular. Tais elaborações constam na Constituição Política do Peru, no Convênio 169 da OIT, nas Declarações das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e outros tratados internacionais. A autodeterminação vai se expressar de diferentes maneiras, e portanto a autonomia é a realização da vontade e da potência de uma sociedade que escolhe governar-se.
Correio da Cidadania: Como se deu (ou se dá) o processo de autonomia e autodeterminação livre desses povos e territórios?
Leandro Bonecini de Almeida: Como destaca o pesquisador awajun e especialista em sistemas de informações geográficas (SIGs), Ermeto Tuesta, foram três principais estratégias para formação de territórios integrais indígenas e os governos autônomos.
A primeira estratégia foi de formalização e titulação de comunidades nativas a partir da Lei de Comunidades Nativas de 1974, o que levou a fundação das escolas como eixo de concentração tradicionalmente dispersa, a alfabetização serial e a formação das primeiras organizações indígenas reconhecidas pelo Estado. Este processo gerou uma grande fragmentação política para lidar com a concertação das ofensivas internacionais e nacionais sobre os territórios. Tal estratégia encontrou seus limites já em fins da década de 1980 com a redução gradual das titulações.
Legenda: XI Cumbre Wampis [de 25 a 29 de outubro de 2019] - realizada no "local comunal" da Comunidade de Soledad. Por Leandro Bonecini de Almeida.
A segunda estratégia é associar as comunidades nativas a áreas naturais protegidas e de conservação. É nos anos 90 no contexto de explícito racismo estrutural durante o fujimorismo, que começam a ser discutidas novas estratégias. O golpe de Estado do fujimorismo em 1992 substituiu as autonomias dos governos regionais (estaduais) por secretarias e autoridades definidas por “confiança” do governo central, instalando-se as secretarias regionais. Os princípios de inalienabilidade e não embargabilidade dos direitos territoriais das comunidades nativas foram anulados, restando apenas o dispositivo da imprescritibilidade, o que representou uma ameaça.
A terceira estratégia se trata da iniciativa de autodemarcação e zonificação autônomas de territórios integrais, em oposição aos espaços superficiais e poligonais titulados como comunidades nativas.
A Coordenadora Regional dos Povos Indígenas de San Lorenzo (CORPI-SL), a partir de 1995, articula as reivindicações sobre os territórios ancestrais na medida em que se fortalecem as assembleias dos nove povos que reúne. Em janeiro de 1996 os povos awajun, wampis, achuar, shawi, chapra, candozi, kukama-kukamiria, shiwilu e quechua do Rio Pastaza decidem recuperar e defender seus territórios ancestrais através da autodemarcação de cada uma das nações originárias. Esta coalização em prol da autonomia relativa de cada povo favoreceu consensos para defesa dos territórios frente a inimigos comuns, o que pode ser entendido como uma adaptação das estratégias das autonomias ancestrais de formação de alianças táticas em momentos de aprofundamento das ameaças externas, majoritariamente não indígenas.
Determinaram assim os limites dos seus territórios já não considerando as comunidades tituladas senão a integridade dos territórios e suas formas de governo. Este processo de autodemarcação – seguido pela elaboração de um “Mapa Histórico Cultural da Nação Wampís” e na Zonificação Autônoma interna - significa uma aproximação entre povos indígenas organizados que não desconsidera seus conflitos interétnicos históricos, porém reconhece um conjunto articulado de inimigos comuns externos.
As lideranças formalmente instituídas realizaram a autodemarcação territorial, primeiro no Mapa Histórico-Cultural da Nação Wampís, que contêm indicações da ocupação ancestral, toponímias e elementos da relação da sociedade wampís com a floresta para fundamentação política, jurídica e antropológica da sua autonomia. Em seguida foi feita a zonificação autônoma a partir da visão indígena. A importância da representação espacial dos territórios indígenas está no diagnóstico da territorialização e a formalização dos limites para a titulação de propriedade, assegurados os direitos preexistentes ao próprio Estado. Sinaliza também os limites para exploração de recursos e extrativismos, favorece a resolução de conflitos internos, reafirma o direito a livre determinação, além de permitir um planejamento de projetos e ações.
A luta contra as violências se dá pelo esforço constante de manter uma unidade política que seja coerente com a integridade sócio-territorial, evidente na relação entre sociedade e natureza. No caso Wampís se elaboram teorias políticas originais, como o conceito de “território integral”, chamado em idioma wampís de “Iña Wampisti Nunke”. Para os Awajún “Wega Nugka”, este conformado por 23 Tajimat Nugka, que são bacias e áreas geográficas. Cada Tajimat Nugka é composta por: territórios das comunidades ou Batsatkamu nugka; migrantes, comércios e instituições públicas (Nugka Ijuntugbau); e zonas de conservação (Nugka Anetkamu). As unidades indivisíveis dos territórios integrais são governadas historicamente por clãs familiares, as federações e organizações indígenas em cada bacia e mais recentemente as instâncias de governo autônomo.
No ano de 2015 se inicia a elaboração do estatuto do governo autônomo wampís, validado pela comunidade em uma assembleia realizada entre os dias 28 e 30 de junho de 2015, na comunidade de “Nueva Alegría”, no Rio Kankaim. Nesta reunião foram organizadas comissões responsáveis por socializar o estatuto nas comunidades da Nação Wampís por meio de diversas assembleias comunitárias. Segundo o ex-Pamuk [equivalente ao presidente, no governo autônomo, como veremos a seguir], Wrays Pérez, a autonomia é composta de uma dimensão comunal, de controle do território para o bem das comunidades e fortalecimento dos vínculos socioculturais alcançados pelo consenso da Nação Wampís em debates intercomunitários que constroem um futuro comum.
Correio da Cidadania: Como funciona a sociedade e quais os seus principais desafios?
Leandro Bonecini de Almeida: A fundação do Governo Territorial Autônomo da Nação Wampis (GTANW) ocorreu no dia 29 de novembro de 2015, na comunidade de Soledad, Rio Kanús, evento no qual se nomeou o primeiro Pamuk, Wrays Pérez Ramírez. Desde então foram realizadas negociações e diálogos com os assentamentos de “mestizos”, com as bases e postos de vigilância militar.
De acordo com o Estatuto do GTANW, o governo é instituído em uma estrutura básica que organiza diferentes níveis hierárquicos: o Uun Iruntramu (Assembleia ou Congresso Wampís), formada por 105 Iirunin ou representantes das comunidades, é o órgão supremo do GTANW; há um Governo Executivo Central integrado pelos Pamuk e Pamuka Ayatke, equivalentes a ‘presidente e vice’, eleitos por períodos de cinco anos, os quais nomeiam um conselho de 13 diretores para diferentes agendas; os governos de bacia com a máxima autoridade das Matsatkamu Iruntramu e o Governo Executivo de Bacia (Takatan Chichamrin) liderados pelos também eleitos Waisram e Waisram Atuke, e as autoridades comunais ou comunitárias que são os Iimarus, e os moradores.
A continuidade e amadurecimento das agendas dos primeiros anos do GTANW evidenciam a preocupação pela estabilidade da transição de autoridades, que opera a nível interpessoal e nas dinâmicas de poder público de caráter social, baseado na articulação entre comunidades e bacias que compõem a Nação Wampís. Destaco que esta estrutura formal em construção é resultado de elaborações intelectuais, de sábias e sábios waemakus, portadores de poder e visão, autoridades da cosmopolítica wampís. Nas Assembleias da Nação Wampís (Uun Irúntramu), todas as reuniões e mobilizações fazem convergir vontades sobre as ações coletivas para resolução de conflitos internos ou intercomunitárias nas mais de 80 comunidades wampís.
Comunidade de Soledad, e ao fundo a Cordilheira de Kampankis ou Kampankias Murari (em wampís). Por Leandro Bonecini de Almeida.
Já o Estatuto do Governo Territorial Autônomo Awajún (GTAA) tem uma estrutura semelhante, formada pelos seguintes níveis de governo: Batsatkamu (governo comunal); Tajimat Nugka (governos de bacias); e Governo Central. Este último é composto por um Impáamamu (dois Kakajam de cada Tajimat Kugka eleitos por anos) e um Conselho Executivo Geral liderado pelo Pamuk e Waisjam, eleitos para mandatos de cinco anos e com rotação das bacias de origem.
Os critérios e as condições de autoridade política neste território das Nações originárias estão associados às relações de poder nas Comunidades, as relações familiares, de parentesco e casamento. As sociedades jívaras anteriormente se organizavam em clãs e núcleos familiares ampliados que cobriam as hinterlândias ou terras entre os corpos hídricos, ocupados por famílias que disputavam entre si o domínio ou controle de determinados rios (chamados “quebradas”) e as rotas para os rios principais. Esta dinâmica ainda é importante para a sustentação da legitimidade dos Governos Autônomos, segundo relações territoriais de longas durações.
As famílias e seus nomes designam os nomes das comunidades. Porém os nomes estão mudando, assim como as categorias de autoridade política, antes atribuídas a guerreiros e sábios. O Pamuk é um uma figura que acendia ao lugar de líder por sua experiência em conflitos e guerras interétnicas e também no caso de guerra com ou contra o Estado. Outros são sábios e sábias visionárias ou waemakus, detentoras de conhecimentos das plantas sagradas e os seus usos; os guerreiros são os kakaram ou kakajam. Os conhecimentos e visões dos sábios são adquiridos pela relação e o conhecimento do território, autoridade que deveria ser provada e aprovada no cultivo das relações políticas intercomunitárias, o que mudou radicalmente com o processo de burocratização inerente a colonização. Porém ainda se preserva estratégias e táticas de defesa, princípios filosóficos, criações institucionais e conhecimentos ancestrais de educação e medicina que compõem as agendas dos governos autônomos.
As ações recentes de exercício da autonomia da Nação Wampís realizadas pelo GTANW podem ser agrupadas em: I) Políticas Internas de Autonomia; II) Relações internacionais, interétnicas e plurinacionais (entre alianças e disputas); III) Relações com o Estado e agentes privados; IV Extrativismos locais/regionais ilegais.
A educação, a saúde, a defesa do território, a comunicação e também as dimensões produtivas são prioridades. Se destacam conflitos internos que debilitam as relações comunitárias e dividem e fraturam as relações comunitárias wampís e awajún, sobretudo pela ofensiva das economias de extração massiva e ilegal de madeiras e minérios de garimpo.
Correio da Cidadania: Qual é a dinâmica da relação entre os territórios autônomos e o Estado peruano? Muda alguma coisa com a inédita ascensão de um presidente esquerdista no país?
Leandro Bonecini de Almeida: No ano de 2021 foram realizadas eleições presidenciais no Peru, chegando a “segunda vuelta” (turno) os candidatos Pedro Castillo e Keiko Fujimori (“Fuerza Popular”). Mesmo antes da declaração do resultado final, as forças aliadas a Fujimori difundiam falsas acusações acerca da integridade do processo eleitoral, especialmente sobre as urnas localizadas no interior do país, em comunidades indígenas e camponesas. Esta evidente postura racista e colonialista, tenta retirar dos povos indígenas o direito a manifestação política na sociedade nacional. Em resposta, o GTANW se pronunciou em rechaço às intenções de anular os votos – livres e voluntários - recolhidos em seu território. Neste sentido, o GTANW se posiciona a favor de uma nova Constituição Política que reconheça o Peru como país plurinacional, formado por várias nações originárias e indígenas, para a justiça e reparação histórica no marco dos 200 anos da República, marcada por racismo, classismo e colonialismo.
Por exemplo, recentemente houve uma tentativa do Ministério de Educação peruano de rever as políticas de educação intercultural bilíngue, o que os direitos dos povos originários a uma educação culturalmente adequada, apesar da assimetria histórica da interculturalidade. A rápida reação das organizações indígenas conteve esta intenção.
Sobre o tema da eleição presidencial do Pedro Castillo não há nesse momento uma mudança da relação do estado com os governos autônomos. Por mais que se pudesse esperar uma maior permeabilidade do estado, isso não se dá, por diferentes razões. Eu acredito que uma delas, anterior às eleições presidenciais, está na rejeição do Estado a reconhecer estas entidades políticas e territoriais que são os governos autônomos indígenas enquanto personalidades ou pessoas jurídicas que respondam pela totalidade e integridade do território de um povo ou nação. Portanto, não se revê o reconhecimento exclusivo às comunidades nativas arbitrariamente delimitadas e que tem como interlocutores reconhecidas autoridades organizadas segundo culturas políticas alheias aos territórios. Esta postura permanece, fragilizando os interesses comuns dos governos autônomos e seus territórios. O governo wampís realizou inúmeras solicitações de reconhecimento do estado e nenhuma delas foi acolhida até então. O que exigem é o reconhecimento pelo Estado destas nações originárias e seus governos autônomos como sujeitos de direito que gozam de legitimidade em escala regional, nacional e internacional, por meio da consolidação de capacidades para o exercício do autogoverno nos territórios integrais, respeitadas as políticas internas e o relacionamento proveitoso com o Estado.
No dia 21 de março de 2021 ocorreram, nas bacias dos rios Kanús e Kankaim, as primeiras eleições gerais do Governo Territorial Autônomo da Nação Wampís (GTANW), que resultou na nomeação de Teófilo Kukush Paati como Pamuk (presidente) e Galois Flores Pizango como Pamuka Ayatke (vice-presidente), para o período 2021-2025. Este acontecimento histórico é resultado da soberania popular e organização da Nação Wampís e seu governo autônomo, por meio do seu Jurado Eleitoral (Usuikartin) que registrou as participações de 2.232 cidadãos wampís, 1.558 votos válidos. Em seguida os Wampís decidiram e elegeram seus candidatos para participar das próximas eleições municipais justamente porque os candidatos eleitos, para os municípios e distritos que sobrepõem seu território, atendem a interesses privados e de oligarquias regionais.
Seis potenciais candidatos se apresentaram publicamente para concorrer pelo GTANW à municipalidade do Distrito Rio Santiago, cada qual pôde expor suas intenções e planos para governar, a fim de convencer a população sobre sua postura e compromisso. Em consonância com este tema a reunião serviu para a socialização do documento “Políticas Generales de Relacionamiento con el Estado y su instrumento operativo”.
Neste encontro os pré-candidatos puderam expor suas motivações e planos para governar o Distrito Rio Santiago - primeira vez em que se realiza esta ação política nas eleições distritais - para então passar pela avaliação de uma comissão julgadora do mérito das suas propostas. Após suas apresentações iniciais e considerados alguns critérios mínimos – plano de governo, composição de equipe, conduta ética e bom relacionamento com a comunidade wampís – os pré-candidatos foram orientados se pronunciar sobre diversos temas de interesse da sociedade wampís. A assembleia votou por Urias Sharup Yambisa e Pifeña Shirap, que deverão visitar as comunidades do Rio Kanús a fim de demonstrar quem encontra maior respaldo popular, e então será o candidato apoiado pelo GTANW em disputa com outros candidatos, sejam awajún ou apach (forâneo ou “mestizo”).
Crianças jogam futebol na comunidade Soledad, em território Wampís. Foto de Kathia Carrillo, comunicadora local.
Correio da Cidadania: Existe algum tipo de influência zapatista entre os Awajun e Wampis, por exemplo quando dizem que não buscam constituir um Estado? O que querem dizer com essa não constituição de um Estado?
Leandro Bonecini de Almeida: Não acredito que exista uma influência direta do zapatismo, mas uma confluência de fenômenos na longa duração das resistências à colonização dos diversos povos Maias no sul e sudeste do México com suas especificidades regionais culturais, e os dos povos indígenas amazônicos. A constituição dos Estados modernos é um fato, que não deve ser entendido como único destino possível, muito menos ideal, das nações originárias. Essa é uma redução dos processos históricos inerente às violências cognitivas e epistemológicas da colonização, sobretudo quando dirigidas aos povos que por séculos são responsáveis pela contenção das ações coloniais das várias formas de Estado.
No caso da revolução mexicana mais de 1 milhão de vidas foram cobradas das nações originárias numa guerra de colonização e racialização que de estende do profundo passado ao futuro. Não existia e não existe ingenuidade na luta contra o estado. É preciso ver de maneira menos reducionista a relação dos povos indígenas com o Estado. A chamadas sociedades sem Estado, contra o Estado, atribuem a esta instituição relações táticas e estratégicas a fim de garantir as condições da sua própria existência. Para os Wampís, a utopia de realização plena do ser – ou Tarimat Pujut - se dará pelas próprias forças que constituem a sociedade wampís, o que não inclui necessariamente um esforço de capitulação da unidade do Estado Nacional, chamado Peru, pese a reivindicação da cidadania como elemento de representação.
Ou seja, os governos autônomos Wampís e Awajún não pretendem criar uma estrutura política ou uma superestrutura simbólica que controle a totalidade do território do estado-nacional, controlando ou substituindo o Estado peruano, parcial ou integralmente. Isto não exclui, como dito anteriormente, a solidariedade e a concertação entre Nações Originárias e seus Governos Autônomos, como horizonte de emancipação das relações de opressão e para realização da vida plena.
Os governos autônomos não podem ser comparados a uma lógica social democrata, que buscaria transformar a estrutura do estado por vias legais. Seja por pressão popular, resistência ou uso da força, as ações se centram em garantir a reprodução social da cultura sobre um território de poder autônomo. Isto não pode ser entendido como o “desperdício” de uma oportunidade histórica por povos milenares, anteriores ao Estado.
O fato de que o Estado existe não contradiz o horizonte de realização das sociedades Awajún e Wampís, porém os impele a negociar e agir pela transformação desta instituição de dominação ao ponto de que sua existência seja superada. Isto não significa uma adesão acrítica ao Estado e suas dinâmicas de reprodução das relações de dominação de classes, gênero e raça. Entende-se que os Estados jamais representaram as práticas e conhecimentos de organização social das nações originárias.
No Peru são 55 povos chamados indígenas que jamais tiveram no país que habitam suas formas de governo incorporadas ao Estado; regimes cultural e politicamente a essas entidades territoriais e políticas anteriores ao Estado. Isso é claro no caso Wampís e portanto livremente escolhem agir segundo as condições de autonomia de cada momento, determinando assim sua própria história.
Correio da Cidadania: Como acredita que a luta dos Wampis e Awajun dialoga com o momento que vivemos no continente e no mundo, tanto em termos de avanço do capital sobre as áreas indígenas e de conservação, como em termos de novas construções de resistência dos povos a esse cenário?
Leandro Bonecini de Almeida: Uma ênfase dada, e reiterada na comunicação wampís direcionada a sociedade peruana e internacional é de que o sistema de governo territorial da Nação Wampís contribui aos desafios colocados pela crise social e ecológica do planeta. Como consequência das práticas de convivência com floresta, a Nação Wampís contribui para a humanidade por meio dos bosques existentes numa extensão de aproximadamente 1 milhão 327 mil hectares. Acredito que os territórios das Nações originais mesmo com todas as suas longas lutas de defesa são ainda frentes de resistência às fronteiras do colonialismo, do desenvolvimento e do avanço do capitalismo que tem nas terras e territórios indígenas uma reserva de valor. Tais resistências se dão pelo profundo conhecimento das dinâmicas do conjunto de seres que compõem os territórios ancestrais. São conhecimentos, ciências, práticas, sonhos e visões do futuro, são poesias e também belezas que convivem com territórios em conflitos civilizatórios e cotidianos.
São conflitos que perpassam o Capital e o Trabalho, porém vão além das classes sociais das culturas urbanizadas e industrializadas que perderam majoritariamente o vínculo com seus territórios, entendido como espaço de poder. A classe trabalhadora está despojada dos meios de (re)produção da vida, alijada portanto do controle de territórios próprios. A dinâmica da democrática eleitoral burguesa como via de realização da política se beneficia desta expropriação de territórios. Por outro lado, como lembram Bertha Cáceres e Davi Kopenawa Yanomami, as nações originárias não podem existir alheias aos seus territórios, por mais que migrem aos centros urbanos como mão de obra explorada, estão vinculadas a seus territórios de origem e de destino por uma memória coletiva e ancestral. Portanto estas experiências, como os governos autônomos, excedem espacial e temporalmente as escalas coloniais, inclusive dos estados modernos e do capitalismo. Entretanto, podem também ser circunscritas às lógicas do conservacionismo ambiental, por iniciativas como os créditos de carbono, serviços ambientais e ecológicos de captura do carbono das emissões de gases das economias centrais como expressão da capilaridade do sistema financeiro.
Os governos autônomos do Peru têm agendas comuns e negociações com outras nações originárias da Amazônia, da América Latina e do mundo dadas as mediações autônomas ou do capitalismo para tratar da contaminação e a destruição que causa a reprodução do sistema hegemônico em escala global. Existem casos correlatos, como nas florestas úmidas tropicais no sudeste do México que hoje passam por uma ofensiva radical do capitalismo por meio do Trem Maia, do Corredor Transístmico, a exploração do petróleo e do Turismo de massas. Precisamos observar estas ofensivas em uma perspectiva regional e global.
As indústrias extrativistas exploram corpos “indígenas” e fragmentos da natureza expropriados da sua integridade ecossistêmica em complexos ciclos vitais. No caso da Amazônia as fronteiras de expansão do agronegócio, da exploração de madeiras, ouro em garimpos, a construção de dezenas de barragens hidrelétricas nos rios amazônicos, a construção de estradas, linhas de transmissão, das concessões de mineração e petróleo, ou o oleoduto Norperuano, entre outras ofensivas como o contrabando de mercadorias e o tráfico de drogas, armas e munições.
Ou seja, a colonização é brutal porque reduz a experiência humana a estruturas materiais e simbólicas, objetos de poder centralizado, inclusive condicionando as possibilidades de alternativa para emancipação. Portanto, é fundamental aprender, trabalhar e conhecer junto aos territórios de vida das nações originárias e suas autonomias no interior do que chamamos país, seja no Peru ou no Brasil.
É extremamente urgente que nos mobilizemos coletivamente no Brasil em direção à iniciativas dessa natureza que são várias, dedicadas a recuperar territórios historicamente expropriados: os Guarani, Kaingang, Tupinambá, Ka’apor, Munduruku etc..
Na história contemporânea da América Latina existem outras expressões de autonomia como são os municípios autônomos (caso do Povo Purépecha em Cherán, no estado Michoacán, no México) ou os mayas, zapatistas ou não, no sul-sudeste do México; os Conselhos Indígenas ou movimentos de recuperação, retomadas e libertação de territórios ancestrais usurpados – caso dos Mapuche no sul do continente ou os Misak na Colômbia; e finalmente os governos autônomos indígenas amazônicos que estão em processo de organização, sejam Wampís, Awajún, os Shipibo-Konibo, Achuar, Kukama Kukamiria, Shuar, Chapra, Candoshi, Shawi, Shiwilu, Quechuas ou tantos quanto existem em toda a Amazônia e no mundo.
Tendo uma irredutível convicção do sentido de justiça – inerente às formas de se governar as agendas políticas e práticas cotidianas - autonomias das nações originárias são inspirações para a emancipação dos povos do mundo. São convites para que todas e todos nós sejamos capazes de governar nossas próprias vidas de maneira organizada e solidária em territórios com controle popular em face dos autoritarismos oligárquicos, religiosos, capitalistas e paramilitares.
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Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
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