Correio da Cidadania

“Caminhamos para um mundo ‘bi-multipolar’”

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Cristina Soreanu Pecequilo – Time To Talk
Enquanto se arrasta no tempo, a guerra da Ucrânia parece um violento marco de mudança de época. Em crise estrutural, a ordem neoliberal vê sua hegemonia global se fragmentar, ao passo que no plano interno suas sociedades balançam na própria instabilidade. Enquanto isso, o oriente vê a China, mas não só ela, avançar em seu protagonismo, tanto regional como global. A historiadora Cristina Pecequilo se debruça sobre essas e outras percepções e tenta interpretá-las em seu livro A Reconfiguração do Poder Global em Tempos de Crise, lançado neste ano. Confira sua entrevista ao Correio.

“O que precisamos observar para decidir vencedores e perdedores é justamente quais preocupações avaliar: a econômica? A política? Os vencedores me parecem menos claros, mas eu destacaria a Índia, os EUA e a China parcialmente. A Rússia fica no “empate”, à medida que tem perdas, mas mostrou que é mais resiliente do que se esperava e tinha um sistema de alianças. Os perdedores estão mais claros: Ucrânia e União Europeia”, afirmou.

Para ela, também especialista em economia política internacional, não só é descabido insistir numa ordem “pós-guerra fria”, dado que carregaria quase a mesma longevidade da antiga polarização entre EUA e União Soviética, como talvez comece a ficar mais visível que a noção de subsequente domínio unipolar norte-americano foi uma percepção parcial da realidade. No meio disso, uma guerra na Europa a acelerar o tempo histórico e reorientar a política externa de dezenas de países.

“A realidade é mais complexa. Acho que não falaremos mais em um eixo dominante, mas sim eixos dominantes, capitaneados pelo descolamento de EUA-China de seus parceiros, e esferas de influências globais e regionais. O Goldman Sachs, criador do termo BRIC em 2001, hoje fala de “Estados swing”, ou seja, Estados que se posicionarão diante do mundo pela barganha, como, por exemplo, a Índia tem feito e o Brasil tenta fazer de novo. Ou seja, tudo está em andamento e não vejo tendências definitivas”, analisou.

Confira a entrevista completa a seguir.

Correio da Cidadania: Quais são as linhas gerais da abordagem de seu novo livro A Reconfiguração do Poder Global em Tempos de Crise? De qual crise e qual reconfiguração estamos falando?

Cristina Pecequilo: O livro foi pensado, e escrito, um pouco antes, depois e durante a pandemia, e refletia uma preocupação em repensar o século 21 em meio a tantas crises internacionais e nacionais, que trazem a impressão de um mundo sempre à beira do abismo. O objetivo era fazer pensar que não estamos exatamente no abismo, mas sim que as crises fazem parte de um processo de mudança de percepções, valores e poder no mundo em torno de três grandes linhas: a geopolítica, a geoeconomia e a geocultura.

A partir destas três linhas, visa-se entender o que é poder e liderança, diante das quatro principais crises mundiais, que estão interligadas: a econômica, a política, a social-ambiental e a sanitária. Por fim, que tipo de equilíbrio de poder estas dinâmicas geram, por isso a ideia de reconfiguração, de uma ordem mundial que deverá ser nova em torno de um Norte em declínio relativo e um Sul geopoliticamente emergente, mas fragmentado e desigual, ou seja, um processo de transição hegemônica em andamento.

Correio da Cidadania: Em palestra no Instituto de Economia da UFRJ você fala que a definição dos atuais tempos de “pós-guerra fria” já não cabe mais, dada a longevidade que este período já registra. Isso também parece sugerir que a noção de unipolaridade, de hegemonia norte-americana, estaria obsoleta. Que definições do período que vivemos te pareceriam mais cabíveis e em quais direção elas apontam?

Cristina Pecequilo: Pensando claramente, nunca houve uma unipolaridade americana no pós-1989. O que o encerramento da Guerra Fria trouxe foi uma impressão de unipolaridade, reforçada pela supremacia militar norte-americana e um discurso associado às linhas mais conservadoras (como Charles Krauthammer que falava em um “momento unipolar”). Mesmo dentro dos Estados Unidos, o sentimento no final dos anos 1980 era de crise e de perda de lugar no mundo, naquele momento diante do Japão (na época o “Sol Nascente”). Assim, era o momento que estudos declinistas e contestadores da hegemonia, como os de Paul Kennedy (Ascensão e Queda das Grandes Potências), que estavam muito na moda.

Na verdade, de 1989 em diante o que se observava era um equilíbrio misto: de fato unipolar no militar, e multipolar na economia e na sociedade. A partir do século 21 isso se acentua e eu optaria pela ideia de desconcentração de poder mundial em meio à coexistência competitiva Estados Unidos-China, que pode levar a uma multipolaridade ou ao que proponho no livro como uma hipótese: a bi-multipolaridade sino-americana.

Correio da Cidadania: No meio disso, a extrema direita, sob diversas roupagens e nomenclaturas, reaparece em praticamente todas as democracias liberais do Ocidente, em alguns casos com considerável adesão dos ditos mercados. Nos EUA, parece haver inclusive uma ampla rachadura interna em seus pactos sociais e políticos, simbolizada na figura de Trump e no assalto ao capitólio em 6 de janeiro de 2021. Não seriam sinais de decadência do projeto civilizatório conhecido como neoliberalismo?

Cristina Pecequilo: O projeto neoliberal é uma contradição em termos: apesar de seu claro fracasso econômico associado à desregulamentação trabalhista, produtiva, privatizações, precarizações, ele continua sendo trazido como resposta às crises que gerou. Assim, o crescimento da extrema direita é sustentado em termos de discurso ainda pelo neoliberalismo, à medida que se consegue construir a imagem de que os problemas do mundo e dos países internamente residem na suposta existência de modelos comunistas e de esquerda, aí incluídos os Estados Unidos.

Vivemos uma crise civilizacional, sem dúvida, mas até o momento quem consegue abraçar melhor as frustrações ainda é a extrema direita, diante de uma esquerda que se mantém fragmentada e não consegue transmitir a ideia do Estado e projeto nacional. Com isso, os gaps são preenchidos pelos próprios geradores da crise.

Portanto, como disse, uma contradição em termos, pois permite que o neoliberalismo não seja responsabilizado pelos problemas que criou, mas sempre um “outro” inimigo oculto.

Correio da Cidadania: A guerra da Ucrânia seria esse divisor simbólico de fim da ordem global hegemonizada pelo Ocidente? A reorientação do eixo global em direção da Ásia seria irresistível?

Cristina Pecequilo: A Guerra da Ucrânia, ao tomar a proporção global que tomou, pela ajuda dos Estados Unidos, União Europeia, Organização do Tratado do Atlântico Norte, é mais um sintoma do declínio da Pax ocidental. Porém, acho que é um sintoma e um capítulo inicial que está abrindo portas para outros caminhos, como o Brics Plus, uma vez que a crise do poder continua e os agentes e processos se reconfiguram. Nos anos 1990, como mencionei, o eixo global mudaria para a Ásia via Japão, agora seria via China.

Mas no fundo, a realidade é mais complexa. Acho que não falaremos mais em um eixo dominante, mas sim eixos dominantes, capitaneados pelo descolamento de EUA-China de seus parceiros, e esferas de influências globais e regionais. O Goldman Sachs, criador do termo BRIC em 2001, hoje fala de “Estados swing”, ou seja, Estados que se posicionarão diante do mundo pela barganha, como, por exemplo, a Índia tem feito e o Brasil tenta fazer de novo. Ou seja, tudo está em andamento e não vejo tendências definitivas.

Correio da Cidadania: Ainda sobre a guerra ucraniana, muito se teoriza sobre os prejuízos de um e outro lado. Há mesmo vencedores ou não estamos diante de dois blocos que, cada um a seu modo, se embrenharam num pântano escuro? É possível que tal conflito bélico se desdobre em outros?

Cristina Pecequilo: Temos muito conflitos bélicos e quentes no mundo hoje, que vão continuar e talvez até aumentar as crises, que continuam e vão além da Ucrânia (incluindo tensões sociais em diversas nações). A diferença que chamou mais a atenção é que Rússia-Ucrânia é uma guerra no coração da Europa, o palco estratégico principal da Guerra Fria, e do pensamento geopolítico com a ideia de Eurásia (Europa+Ásia).

O que precisamos observar para decidir vencedores e perdedores é justamente quais preocupações avaliar: a econômica? A política? Os vencedores me parecem menos claros, mas eu destacaria a Índia, os EUA e a China parcialmente. A Rússia fica no “empate”, à medida que tem perdas, mas mostrou que é mais resiliente do que se esperava e tinha um sistema de alianças. Os perdedores estão mais claros: Ucrânia e União Europeia.

Correio da Cidadania: Como enxerga o Brasil no meio disso, com a pressão visível de setores liberais no sentido de se exigir alinhamento à OTAN e à Ucrânia. A considerar a participação do país no BRICS o governo Lula não se verá diante de dilemas que tensionarão as relações internacionais brasileiras?

Cristina Pecequilo: O governo Lula tem procurado colocar o Brasil em uma posição equilibrada e de neutralidade, sem cair nas narrativas dos lados em guerra. Agora certamente existem pressões para que se alinhe a um ou outro lado. Acredito que as falas do Brasil sobre a guerra são coerentes com sua história diplomática e indicam a necessidade de repensar o conflito, e se encontrar uma saída. A participação nos BRICS, agora BRICS Plus, é fundamental para o país.

Agora, o Brasil é um país dividido. Assim, a agenda de soberania e autonomia, que valorizo, por exemplo, como ator do Sul Geopolítico não é consensual, nem entre as forças progressistas e muito menos entre as forças conservadoras. E, além disso, precisamos nos recuperar econômica e socialmente. Ou seja, sempre estaremos tensionados, mas o Brasil, com um projeto estratégico claro de Estado, poderia retomar seu desenvolvimento e protagonismo.

Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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