Reforma tributária é avanço, mas perde chance histórica de debater federação e equalização fiscal
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- Gabriel Brito, da Redação
- 15/12/2023
Foto: Antoninho Perri/Divulgação Unicamp
Aprovada em julho na Câmara e em novembro no Senado, a Reforma Tributária está cercada de expectativas que superam seu potencial real de correção de distorções e disputas entre estados. Apesar de registrar alguns avanços e representar ganho político do governo, o país perdeu uma grande chance de atualizar seu pacto federativo e avançar em tópicos que pudessem gerar uma reforma mais incisiva na correção das desigualdades nacionais. Esta é a síntese que o economista Francisco Lopreato faz em entrevista ao Correio da Cidadania, na qual analisa os principais aspectos de uma reforma queacaba de ser sancionada por Lula.
“Vejo problemas na questão da simplificação. Primeiro, o processo de transição é muito longo. Para o CBS, federal, o prazo seria de três anos. Já o IBS, de estados e municípios, oito anos. Por sua vez, a tributação por destino tem prazo de cinquenta anos. A convivência de dois sistemas tributários distintos durante vários anos vai ser uma complicação, há um risco. Outro problema que teremos de lidar é com um conjunto de leis que serão feitas para complementar a reforma, já que muitos detalhes ficaram pendentes, há muito a discutir e várias pequenas complicações foram deixadas para lei complementar. E nem sempre isso vai resolver”, enumerou.
Estudioso dos pactos federativos, o economista e professor da Unicamp faz uma análise serena dos acordos que a reforma representa. Além de afirmar que os impactos serão discretos, lembra que seus efeitos não podem ser sentidos a curto prazo. Além disso, depende de uma série de leis e regras complementares que, no final das contas, demorarão anos para se afirmar no cenário.
“Quem pensa em retornos em 5 ou 6 anos, pode esquecer. O impacto imediato é quase inexistente. Quando vigorar, vão aparecer dissonâncias na própria aplicação e nas perdas de uns e outros. Dentro da desigualdade, mesmo local, como apontei, veremos uma pancada. Paulínia ganhava na forma de distribuição do ICMS através do valor adicionado fiscal. Agora vai mudar para a relação de população; 25% do IBS vai para o município, dentro do qual 85% será medido de acordo com tamanho da população. Isso não tem impacto medido. Paulínia, que tem refinaria, vai sofrer um impacto forte. Quando chegar a conta, vai dar problema e teremos de buscar uma forma de compensação. Por isso devíamos falar de adiantar a transição e um sistema de equalização fiscal num prazo mais curto, para reduzir as diferenças, minimizar”, exemplifica.
Na visão de Lopreato, autor dos livros Caminhos da política fiscal do Brasil e O colapso das finanças estaduais e a crise da federação, o país perdeu uma oportunidade relevante de debater o próprio pacto federativo e mecanismos de promoção de maior equidade entre estados, a fim de diminuir as desigualdades, inclusive dentro dos estados. “Minha expectativa é de ganhos poucos relevantes. Repetindo o que disse no início, quando se faz uma reforma desse porte e não se tem o ganho à altura do esperado, fecha-se a porta para novas alterações por um longo tempo. A questão da equalização, com diferenciação de renda e gasto per capita por estado, que seria muito relevante, fica para quando? Vai demorar quanto para termos a oportunidade de voltar a falar nisso? Daqui a dez anos nem essa reforma estará totalmente concluída. É mais grave do que parece”.
Para ele, há um ganho político para o governo no curto prazo. No entanto, trata-se de uma reforma a gosto das elites econômicas e seus prepostos políticos. Em essência, uma reforma apenas do consumo. E não há como realizar a mínima justiça tributária no Brasil sem um debate profundo sobre o Imposto de Renda. Resta saber se, aprovada esta reforma, haverá espaço e força social para avançar no debate de uma reforma que ataque a regressividade do sistema.
“O benefício será marginal. No cashback, deve ser maior. Porém, como operacionalizar esse cashback ainda não está claro. A ideia é boa, a execução não parece simples, mas é viável. Avançamos, mas pouco. Temos que avançar numa reforma do IR, seria mais importante”, explicou.
Leia a íntegra da entrevista com Franciso Lopreato a seguir.
Correio da Cidadania: Como você avalia, em linhas gerais, a proposta de reforma tributária, aprovada no Senado em novembro, após meses de negociação, divergências entre estados e que agora está na Câmara dos Deputados?
Francisco Lopreato: O sistema tributário brasileiro é ruim. Precisa de uma reforma urgente, desde a era FHC. Lá em 1988, o sistema já era contestado e muitos falavam em uma mudança profunda. A necessidade de urgência está fora de questão. Qualquer coisa que for feita vai melhorar. Mas o meu ponto é que ao fazer um grande esforço político para se chegar a uma reforma como esta, vamos perder a oportunidade de fazer outras coisas no futuro. Até ser implementada levará um tempão e se a gente deixar de fazer certas coisas agora o que for deixado pra trás vai ficar pra trás por muito tempo.
A respeito da reforma tal como está, a primeira crítica geral é que qualquer reforma mexe com a federação. E não houve uma discussão prévia, algo difícil, mas necessário, a respeito de que federação estamos falando, como queremos, o que se pretende. Assim, eles decidem congelar o debate, pois partem da premissa de que ninguém perde, nenhum dos entes federativos perde qualquer recurso financeiro. Uma ideia de fazer omelete sem quebrar os ovos.
Mesmo aprovada, seguem muitas dúvidas. Em geral, vejo ganhos, fatos positivos. Mas a primeira coisa que eu acho complicada é a questão da simplicidade. Alguns tributos ganham uniformidade na legislação, operarão com uma alíquota bem alta que vai abarcar todos os produtos. Uma coisa que hoje se tem são diferenciações enormes de ICMS, por exemplo. Um produto tem várias alíquotas, é uma confusão e há privilégio de setores ou de produtos dentro do sistema, o que deve melhorar.
No entanto, vejo problemas na questão da simplificação. Primeiro, o processo de transição é muito longo. Para o CBS, federal, o prazo seria de três anos. Já o IBS, de estados e municípios, oito anos. Por sua vez, a tributação por destino tem prazo de cinquenta anos. A convivência de dois sistemas tributários distintos durante vários anos vai ser uma complicação, há um risco.
Outro problema que teremos de lidar é com um conjunto de leis que serão feitas para complementar a reforma, já que muitos detalhes ficaram pendentes, há muito a discutir e várias pequenas complicações foram deixadas para lei complementar. E nem sempre isso vai resolver. Por exemplo, a CF 1988 queria mexer no fundo de participação, não saiu um acordo e foi deixado pra lei complementar. Depois se tomou uma MP em 1989, com validade de um ano. Só em 2013 o Supremo disse ser inconstitucional.
O Senado Federal, ao propor a ideia do Comitê Gestor no lugar do Conselho Federativo, reduziu o peso da concentração de poder de um órgão burocrático. Em termos da federação, não entendo como governos estaduais podem abrir mão de seus tributos, de sua receita e deixar tudo nas mãos de um órgão burocrático, que, teoricamente, é controlado por estados e municípios, mas sem saber como seriam os desdobramentos deste instrumento, que disporia de um controle muito grande. A proposta do Comitê Gestor relaxou o controle e se tornou mais palatável. No entanto, a esfera federal ainda está ditando as regras, pois como o CBS e o IBS terão alíquotas iguais, ao que tudo indica a União terá precedência em fixar as alíquotas do CBS e deverá ser seguido pelo IBS.
Ainda não se sabe o programa a ser criado para manipular o conjunto de dados, se não vai dar uma nova discussão e se evitar contenciosos. Temos o exemplo da Lei Kandir, sobre arrecadação de impostos na circulação interna de mercadorias: impostos liberaram as exportações que antes iriam para o ICMS, mas a lei previa ressarcimento de estados e desde então sempre temos litígios entre União e estados porque seus números nunca batem.
Por tudo isso, sou um pouco cético. Há otimistas. De toda forma, para deixar claro, estamos perdendo uma chance muito grande de fazer um programa claro e explícito de equalização fiscal.
Correio da Cidadania: Como seria um programa de equalização fiscal?
Francisco Lopreato: Todo país tem diferenciações, maiores ou menores, entre seus entes federativos. Um é mais rico, outro mais pobre, outro tem receitas muito maiores comparativamente. Isso varia pelo mundo, há sistemas mais ou menos simples. Mas a ideia é tentar balancear a receita per capita.
Por exemplo, na Alemanha julga-se que se é alemão em qualquer lugar do país. Aqui no Brasil, se o cara nasce no Piauí ou no Maranhão carrega um pecado capital. O cidadão não vai ter a mesma assistência que possivelmente um paulista terá para tratar uma doença, por exemplo. Há uma diferença de gastos per capita entre estados, dentro deles entre os municípios, dentro da região também há diferenças... Dentro do Nordeste existem disparidades grandes, por exemplo. Anos atrás fiz estudos dentro da região metropolitana de Campinas e levantei diferenças de gasto per capita dentro desta região, com diferenças de cerca de 10 vezes entre Paulínia e Engenheiro Coelho...
E tem a questão da regressividade, que tem problemas graves, cuja base é o alto peso dos impostos indiretos. Porque o pobre e o rico consomem basicamente os mesmos produtos essenciais, e assim pagam a mesma alíquota dos produtos. Mas os percentuais dessa tributação na renda de cada classe são muito díspares. Em países avançados o peso da tributação sobre renda e propriedade são muito maiores. No Brasil a reforma até está preocupada com isso, mas não é um propósito declarado.
Ainda assim, há avanços. A ideia de criar a cesta básica de alimentos é boa. O programa de cashback é interessante, ainda que seja custoso, um tanto sujeito a fraude. IPVA para outros veículos, como jatos e aquáticos, pode não fazer uma diferença gigante, mas é importante. Imposto de transmissão por causa mortis e doações, onde se fecha uma brecha que antes era burlada, é outro elemento interessante, uma vez que as pessoas mudavam o estado da declaração de alguns bens de acordo com a condição mais favorável.
De toda forma, a grande reforma sobre a regressividade é sobre o Imposto de Renda. Haddad conseguiu aprovar a tributação de fundos exclusivos, onde se ganha dinheiro a rodo e só se paga quando se retira o dinheiro, o que permitia transmitir os recursos para outras gerações sem a tributação. Por fim, cabe destacar o IVA prometido. Hoje, a indústria é muito tributada e os serviços são poupados. Como o novo IVA-IBS teoricamente se equilibra isso, o que seria uma pancada no setor de serviços, que pode gerar pressão inflacionária. Mas ocorreria uma única vez, até a adaptação se concluir.
Correio da Cidadania: E há a questão intrincada das isenções para casos específicos.
Francisco Lopreato: Sim, algo reconhecido por todos. Vamos ter grandes isenções e reduções e isso vai dar problema. Outra questão é que não vão mexer no Simples, que no Brasil é muito exigente, o faturamento exigido para entrar no programa é muito alto. Em outros países o sistema é ... Simples. É feito para pequenas empresas, pequenos empreendedores. Aqui entram no guarda-chuva empresas de faturamento bastante alto.
Assim, há uma brecha, que fará empresas entrarem no Simples Nacional ou no sistema de isenções que fere a motivação principal do IVA, que é a de ter uma base abrangente. Quando se abre exceções mina-se a ideia básica do imposto. É um avanço, no geral, mas restam muitos problemas a resolver.
Correio da Cidadania: E até o sistema se adaptar vai demorar para os resultados serem sentidos na economia real.
Francisco Lopreato: A curto prazo podemos esquecer. Quem pensa em retornos em 5 ou 6 anos, pode esquecer. O impacto imediato é quase inexistente. Quando vigorar, vão aparecer dissonâncias na própria aplicação e nas perdas de uns e outros. Dentro da desigualdade, mesmo local, como apontei, veremos uma pancada. Paulínia ganhava na forma de distribuição do ICMS através do valor adicionado fiscal. Agora vai mudar para a relação de população; 25% do IBS vai para o município, dentro do qual 85% será medido de acordo com tamanho da população. Isso não tem impacto medido. Paulínia, que tem refinaria, vai sofrer um impacto forte. Quando chegar a conta, vai dar problema e teremos de buscar uma forma de compensação. Por isso devíamos falar de adiantar a transição e um sistema de equalização fiscal num prazo mais curto, para reduzir as diferenças, minimizar.
Correio da Cidadania: Não há, portanto, um salto de qualidade no pacto federativo?
Francisco Lopreato: Não parece que esta foi a preocupação da reforma. Não se sabe como vai se colocar a discussão sobre as alíquotas do IBS E CBS, qual será a participação da esfera estadual.
Outro ponto importante é a tributação do destino. Se se tributa uma operação dentro do estado de São Paulo é uma coisa. O problema é quando uma empresa de SP vende para, por exemplo, a Bahia. Quem fica com a receita cobrada do consumidor? Se for na origem, fica em SP. Assim, o estado ganharia o dinheiro pago pelo consumidor baiano. Se for o contrário, a receita fica na Bahia. Isso tem uma implicação distributivo-federativa muito grande. No ICMS tem fórmulas, que variam entre os estados, que tentam dividir uma parte entre a origem e o destino. Cria-se incentivos para evitar a guerra fiscal, a fim de evitar que se perca empresas de seu território. Se SP vende pra BA, fica com 7% da alíquota, enquanto o estado da Bahia fica com 12%. Na proposta atual, transfere-se tudo para a Bahia, o que do meu ponto de vista está correto. Mas vai demorar 50 anos para fazer a transição.
Como não se assume que haverá problemas, pois obviamente vai mexer na receita, joga-se para um prazo deste tamanho, em vez de fazer um fundo de compensação e agilizar a transição. É uma questão federativa importante. Os estados mais pobres têm maior participação no consumo frente à produção. Estados como Alagoas, Maranhão, Piauí, Sergipe, têm tendência de algum ganho, mas de forma diluída. É uma boa causa para a federação, mas muito estendida no tempo.
Correio da Cidadania: Além disso, é uma reforma que não toca nas bases da injustiça tributária, dado que é basicamente uma reforma do consumo com atualizações técnicas e tímidas tentativas de correção de distorções.
Francisco Lopreato: O sistema tributário brasileiro é altamente regressivo, o que tem raiz nos impostos indiretos e no Imposto de Renda (IR). Os indiretos tentam ser mais progressivos e reduzir o peso do imposto sobre o consumo, o que pelo visto não acontecerá. O que essa reforma melhora no sentido aqui colocado é no cashback e na cesta básica, produtos isentos de tributação. Mas basicamente essas isenções estão em produtos já subsidiados. Portanto, penso que o benefício será marginal. No cashback, deve ser maior. Porém, como operacionalizar esse cashback ainda não está claro. A ideia é boa, a execução não parece simples, mas é viável.
Avançamos, mas pouco. Temos que avançar numa reforma do IR, seria mais importante. A taxação dos fundos exclusivos é um ponto. Tem a pejotização, um problemaço criado quando se expandiu o PJ. Como mexer nisso agora? Minha filha, que é médica, se ganhar mais que eu, vai pagar metade de IR, grosso modo. Deve-se mexer nisso, mas é difícil, sou cético. Minha expectativa é de ganhos poucos relevantes. Repetindo o que disse no início, quando se faz uma reforma desse porte e não se tem o ganho à altura do esperado, fecha-se a porta para novas alterações por um longo tempo.
A questão da equalização, com diferenciação de renda e gasto per capita por estado, que seria muito relevante, fica para quando? Vai demorar quanto para termos a oportunidade de voltar a falar nisso? Daqui a dez anos nem essa reforma estará totalmente concluída. É mais grave do que parece.
Correio da Cidadania: Não há um lado bom em se superar o debate tributário de forma a contentar as elites econômicas do país e, assim, abrir espaço para outras reformas tributárias, uma vez que a reforma do consumo, bem ou mal, já teria sido feita?
Francisco Lopreato: Pode ser. A bola está no campo, há espaço para questionar. Fazer uma reforma do consumo, com avanço pequeno, pode gerar uma forte pressão para avanços como mencionados na pergunta. Teremos ganhos, mas criticamos pelo fato de que era possível obter mais. É um ganho político importante para o governo, afinal, é uma reforma tentada há vários governos, inclusive os outros dois de Lula. Imposto sobre consumo afeta uma quantidade muito grande de gente, tem prós e contras, a indústria é a favor, o agro contra... Mas no IR a briga já é mais concentrada, primeiro com as pessoas físicas e depois com as pessoas jurídicas. Não penso que a reforma do IR possa piorar ainda mais para os pobres.
A questão da regressividade depende do IR. Até é possível algum avanço, mas não dá pra criar tanta expectativa. Seria bom uma redução do IR para os mais pobres associada a uma equalização, a fim de melhorar a capacidade de gastos dos estados menores. Fica regressivo na receita, mas melhora-se a capacidade dos estados mais pobres em financiar despesas.
Na atual reforma, pode-se ganhar algo através de leis complementares, a exemplo dos vários fundos que se pensa, um deles regional, que é dinheiro federal. Outro seria a separação de 3% do IBS para atender estados e municípios que perderam na reforma, um mecanismo de compensação. Pode ser um embrião de um projeto de equalização fiscal.
Não se mexeu no fundo de participação dos estados e municípios, que ficaram iguais. Mas em vez de ser um fundo de participação é com base no IR e IPI. O IPI vai acabar, exceto para a Zona Franca de Manaus. Agora o fundo será formado por IR e IBS, o que torna tudo parecido.
Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.
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