Correio da Cidadania

Por blindagem política, Porto Alegre ignora plano que pode acabar com enchentes em 48 horas

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Foto panorâmica do centro da cidade de Porto Alegre completamente alagado após chuvas intensas
Fonte: IStock

Quarenta e oito horas ou mais 20 ou 30 dias de cidade submersa? Aparentemente, os gestores da ultradireita que conquistaram a prefeitura de Porto Alegre, em nome de suas próprias carreiras políticas, ficam com a segunda opção. Pois não há outra explicação possível para, após 3 semanas da maior tragédia climática da história do Brasil, que arrasou com o estado gaúcho inteiro, as principais lideranças institucionais não acatarem o plano orientado por 48 engenheiros com sólidas carreiras no Departamento Municipal de Águas e Esgotos e outras instituições.

Ao Correio, Vicente Rauber, um dos signatários do plano de escoamento das águas, explica como a ação seria feita e as razões que levaram a uma tragédia diretamente relacionada ao “choque de gestão” de viés neoliberal. Tragédia que, em sua visão, poderia ser evitada mesmo diante da excepcionalidade climática que se abateu sobre o estado. Quanto à negação da prefeitura de Sebastião Melo, que a duras penas aceitou fazer uma reunião com os especialistas, Rauber é enfático em apontar um movimento de autopreservação.

“No meio desta desinformação, quando você quer esconder algo, cita qualquer coisa, cria meia dúzia de fakes e é isso que o prefeito tem feito, é isso que os dirigentes do DMAE têm feito para não assumirem a responsabilidade do que aconteceu e, com isso, se protegerem. É só isso”.

Na entrevista, o engenheiro, autor do livro Prevenir é o melhor remédio – sistemas de proteção contra inundações e alagamentos de Porto Alegre, escrito quando trabalhou na administração de Olívio Dutra (1989-1992), explica como o plano poderia ser realizado, além de resgatar parte da história da relação da cidade com as cheias do Guaíba, através da construção do Muro da Mauá e do sistema pluvial da cidade.

Quanto ao presente, destaca que a prefeitura tinha pleno conhecimento dos alertas feitos por órgãos públicos e seus funcionários demonizados pelo discurso neoliberal e reacionário. “Melo sabia da existência do plano, da existência do dinheiro no DMAE para fazer a obra e não o fez. O DEP (Departamento de Esgotos Pluviais, extinto na administração Nelson Marchezan) era a única estrutura de primeiro escalão, ligada diretamente ao prefeito, que era especializada em proteção e em drenagem contra inundações. O órgão fazia um trabalho muito bom e foi sucateado”, afirmou.

Diante das explicações do engenheiro, impressiona o nível de blindagem, em boa parte garantido pela mídia ideologicamente alinhada ao mercado e seu eterno programa de redução do estado. Nada do que se lerá nesta entrevista é explorado pelos grandes meios de comunicação. Fica-se num bate-estaca incessante sobre as águas que insistem em não baixar e as campanhas de solidariedade. No entanto, como explica Vicente Rauber, não será possível ignorar as causas estruturais deste desastre que tortura a sociedade gaúcha há semanas.  

"Deve-se recriar o DEP ou outra estrutura semelhante, por razões óbvias. Ele é necessário. Aqui ficou provado o quanto ele é necessário. Eu nem entro naquela discussão de Estado máximo e Estado mínimo. Eu sou daqueles que defendem o Estado necessário. E que se faça um plano mais amplo, porque as outras cidades da região metropolitana não possuem um sistema tão robusto, no conjunto da Bacia do Guaíba”.

Leia a entrevista completa de Vicente Rauber e o plano de escoamento das águas a seguir.

Correio da Cidadania: O que, afinal, levou ao alagamento de Porto Alegre, mesmo a cidade dispondo de um sistema de prevenção de enchentes? O sistema foi negligenciado e poderia ter evitado o desastre, ao menos parcialmente?

Vicente Rauber: Porto Alegre tem um sistema robusto e eficiente contra inundações e a possibilidade de o Rio/Lago Guaíba invadir a cidade, já que 40% dela está em regiões muito baixas, praticamente no mesmo nível do Rio Guaíba em tempo seco. Portanto, facilmente o sistema consegue invadir essas regiões. A partir dos dados colhidos na histórica enchente de 1941, foi feito um projeto pelo DNOS (Departamento Nacional de Obras de Saneamento), foram contratados engenheiros alemães, que propuseram e executaram o projeto que construiu o sistema de diques, com avenidas elevadas que não permitem a passagem de águas. Entre essas avenidas, no centro da cidade, onde não era possível fazê-las, foi colocado um muro para que as águas do Guaíba não invadissem Porto Alegre. Basta que este sistema seja operado e mantido adequadamente.

Por exemplo, quando as águas do Guaíba ultrapassam a cota de 3 metros, é preciso fechar todas as comportas, em um total de 14, e também as comportas existentes nas 23 casas de bombas espalhadas ao longo deste sistema. Tem um detalhe: esse sistema, especialmente as comportas e as casas de bombas, precisa de manutenção periódica. Isso não vinha sendo feito.

Na inundação de setembro do ano passado, a natureza mostrou onde estavam os problemas e os defeitos que deveriam ser imediatamente sanados, quando naquele evento da Bacia do Taquari as comportas em Porto Alegre também tiveram de ser fechadas. Ali, ficaram muito claros os problemas a resolver. E não eram problemas de grande monta, eram problemas simples, mas cuja solução era absolutamente necessária para impedir uma invasão das águas sobre Porto Alegre. Não se fez. E tinha dinheiro suficiente. Hoje, o departamento responsável pela área tem R$ 430 milhões em aplicações financeiras.

Correio da Cidadania: Ou seja, tinha dinheiro, tinha diagnóstico, por que não se fez?

Vicente Rauber: O fato é que não se fez. E na hora em que o sistema tinha de fazer a defesa para a cidade, literalmente furou. Nós vimos isto acontecendo, mas mesmo tendo furado e a água vazado para dentro de Porto Alegre, a prefeitura tinha de ter acionado os mergulhadores, fechado os vazamentos e feito com que as casas de bombas fossem acionadas e bombeassem as águas internas e os esgotos de Porto Alegre para o Rio Guaíba. Nada disto aconteceu.

Correio da Cidadania: Você poderia comentar a reunião da qual participou com o prefeito Sebastião Melo, na qual apresentou um plano de medidas emergenciais para retomar o funcionamento das bombas pluviais e das comportas das estações de água? Como seria este plano e porque seria viável?

Vicente Rauber: Ora, nós não somos um clube ou uma corrente, nós somos um conjunto de pessoas que conhece o sistema. No meu caso, já dirigi duas vezes o antigo departamento que cuidava desta área e nós, indignados, apresentamos um diagnóstico desta solução, sugerimos um conjunto de medidas emergenciais e um conjunto de medidas para tão logo as águas baixarem.

A muito custo conseguimos esta reunião com o prefeito. Passamos três dias tentando essa audiência, porque a nossa ideia era, assim que concluído o documento, entregar o plano para as autoridades de responsabilidade direta, no caso, o prefeito de Porto Alegre. Ocorre que o documento vazou e aí foi para o mundo. E imediatamente nós também encaminhamos para o ministro Pimenta e outros ministros que acolheram o documento e estão aplicando-o na medida das suas possibilidades.

A responsabilidade direta é do prefeito de Porto Alegre. Por isso, apenas na sexta-feira, 17, conseguimos uma audiência com ele, esclarecemos algumas coisas. Primeiro, ele vem falando coisas sobre esse sistema de proteção, que é antigo, superado... Não é superado, foi construído a partir da década de 70, mas os engenheiros alemães, ao construí-lo, utilizaram uma regra internacional, que é fazer obras deste porte com “tempo de recorrência”, o termo técnico utilizado, com durabilidade igual ou superior a 100 anos. Isso significa dizer que se espera que nos próximos 100 anos, a partir daquele momento, possa novamente ocorrer um evento desta magnitude. Não se passaram 100 anos ainda.

O sistema de fato pode ser avaliado e melhorado, mas o que nós temos já é muito bom. Agora, só é bom quando é operado e mantido adequadamente. Explicamos isso para o prefeito, ele disse que ia continuar conversando conosco, colocou um assessor na reunião, que depois continuou conversando conosco. Esse assessor negou tudo, negou que houvesse qualquer desleixo, que as manutenções não tivessem sido feitas apropriadamente etc. Depois não teve mais conversa.

Correio da Cidadania: O que o DMAE tem feito? O documento fala que é possível fazer as águas baixarem em 48 horas. Como seria isso

Vicente Rauber: O DMAE é o departamento que tem essa responsabilidade hoje. Está trabalhando adequadamente e vai resolver os problemas. Nós dissemos para o assessor de Melo que a prefeitura tem duas opções: continuar sendo negacionista, ou olhar o nosso documento, aplicar as propostas que lá colocamos e tratar de tirar a cidade desta inundação e acabar com o sofrimento e o prejuízo das pessoas.

Sim, é possível acabar com a inundação em 48 horas. A partir do momento da cidade inundada, aplicando as propostas e fazendo a vedação dos vazamentos nas comportas, em 48 horas de atuação das casas de bombas se esvaziaria a cidade e as águas seriam retiradas *.

Mas, ressalto, mais importante que isto era ter prevenido. E prevenção era o seguinte: consertar os furos das comportas para que a água não invadisse a cidade. Este foi o grande problema. O que nós oferecemos foram sugestões emergenciais de como, neste momento, com a cidade inundada, resolver o problema e o que fazer imediatamente após estas águas baixarem.

Correio da Cidadania: E como a prefeitura ignora isso enquanto a inundação até ameaça aumentar de novo e, neste ritmo, a cidade e a metrópole podem ficar semanas ainda submersas?

Vicente Rauber: Em torno de temas que envolvem chuvas, águas, sempre há muitas histórias, conversas como “é por culpa do São Pedro”, “Deus castiga”. No meio desta desinformação, quando você quer esconder algo, cita qualquer coisa, cria meia dúzia de fakes e é isso que o prefeito tem feito, é isso que os dirigentes do DMAE têm feito para não assumirem a responsabilidade do que aconteceu e, com isso, se protegerem. É só isso.

Correio da Cidadania: Você relaciona o episódio com o enxugamento do DEP e do DMAE nos últimos anos? Vê a tragédia diretamente associada ao discurso do estado mínimo e acusação sistemática de que tais organismos não passam de cabide de emprego, corrupção, incompetência?

Vicente Rauber: Está diretamente relacionado. Uma das questões que o prefeito levanta é de que as casas de bombas se tornaram insuficientes porque a cidade cresceu, impermeabilizou-se mais terreno, ou seja, acumulam-se mais rapidamente as águas. Esta análise está correta. No entanto, em 2014, os engenheiros do extinto DEP elaboraram um plano para aumentar a potência das casas de bombas e modernizá-las.

O que aconteceu? Este plano foi, ainda no governo Dilma, enviado para o governo federal, que aprovou e liberou R $ 124 milhões para sua realização. Muito bem. Com o dinheiro liberado, bastava a prefeitura ir até a Caixa Econômica Federal, levar a documentação que faltava, levantar o dinheiro e realizar o plano. Nada disso fez. Perdeu um dinheiro que não era sequer empréstimo, era a fundo perdido. Isso aconteceu na gestão anterior e o prefeito tem pleno conhecimento disso.

Aliás, quando eu o lembrei da questão nesta reunião que fizemos, ele sabia muito mais detalhes dessa situação. Ele nos falou muitas coisas que nem sabíamos como tinha acontecido. Melo sabia da existência do plano, da existência do dinheiro no DMAE para fazer a obra e não o fez. O DEP era a única estrutura de primeiro escalão, ligada diretamente ao prefeito, que era especializada em proteção e em drenagem contra inundações.

O órgão fazia um trabalho muito bom e foi sucateado. Nas nossas gestões e nas administrações populares, saneamento era a prioridade. E nós investimos muito, muito dinheiro em drenagem e nos cuidados desse sistema de proteção. Depois, outras gestões que vieram, investiram menos. Mas as duas últimas gestões foram literalmente catastróficas. Primeiro, sucatearam completamente o DEP. Depois, ele foi incorporado no DMAE. A seguir, foi dito aos engenheiros e demais pessoas do DEP que eles podiam escolher qualquer lugar dentro do DMAE. Na verdade, não se manteve sequer aquele restante de equipe. A estrutura foi integrada na área de tratamento de água potável, mas não tem nada a ver uma coisa com a outra. E lá, ela ficou literalmente atirada na última gaveta, atirada às praças.

Isso tudo certamente tem a ver com a falta de investimentos, com a falta de atuação na área, nem sequer se fazendo o mínimo para que este importante sistema de proteção atuasse no momento solicitado.

Correio da Cidadania: E quais as medidas emergenciais para depois dos alagamentos?

Vicente Rauber: Em resumo, no plano emergencial, deve-se realizar tarefas que são usuais, comuns, que é vedar todos os vazamentos. Em parte, esse plano está sendo agora aplicado, mas, por exemplo, não estão sendo vedados os vazamentos. Isso significa que a água que está sendo bombeada para o rio pode retornar por aqueles vazamentos. 

Com novas chuvas, as águas podem voltar a subir. Uma vez fechados esses vazamentos, bombeia-se a água para fora com as casas de bomba que existem. Se não der certo, usa-se outras bombas para fazê-lo. Aliás, isso está sendo feito agora em parte com outras bombas. Enfim, faz isso e deixa a cidade voltar à sua normalidade.

Quando as águas baixarem, a medida número 1 é fazer as manutenções que deixaram de ser feitas imediatamente, tanto nas comportas, que vou chamar de comportas externas, como nas comportas das casas de bombas.

Segundo, retomar aquele plano de aumento da potência e modernização das casas de bombas, cujo dinheiro foi perdido. Que se faça imediatamente. Retomar um plano também de aperfeiçoamento dos nossos sistemas de drenagem e mesmo desse sistema de proteção, que já foi elaborado, e implantar as medidas já sugeridas por quem conhece do tema.

Quarto, recriar o DEP ou outra estrutura semelhante, por razões óbvias. Ele é necessário. Aqui ficou provado o quanto ele é necessário. Eu nem entro naquela discussão de Estado máximo e Estado mínimo. Eu sou daqueles que defendem o Estado necessário. E a necessidade do DEP ficou mais do que evidenciada. Portanto, que se recrie o DEP ou outra estrutura semelhante.

Quinto, que se faça um plano mais amplo, porque as outras cidades da região metropolitana não possuem um sistema tão robusto, no conjunto da Bacia do Guaíba. Embora tenhamos esse sistema que é bom e robusto, não atinge toda a cidade. Ele pode ser completado, aperfeiçoado e estamos sugerindo que isso seja feito para toda a região metropolitana. Temos expertise mais do que suficiente aqui no Rio Grande do Sul.

Não precisa trazer consultoria dos Estados Unidos como a prefeitura e o estado estão trazendo.

Correio da Cidadania: Mais amplamente, temos um notório desmonte da legislação ambiental do estado, no mesmo passo do desmonte comandado por Ricardo Salles no governo federal. É possível não fazer uma relação direta entre o avanço capitalista sobre o meio ambiente, tanto no âmbito nacional como gaúcho, e a tragédia?

Vicente Rauber: Nós poderíamos fazer um outro documento falando do desmonte do Estado e da sua péssima e trágica política ambiental, mas isso merece uma abordagem exclusiva, uma outra análise. É melhor que os órgãos ambientais o façam e se dirijam diretamente ao governo do estado.

Nota:

Segundo o documento assinado por 48 engenheiros do DMAE, o plano de esvaziamento das águas seria assim:

2.1 – Através de mergulhadores vedar as comportas do Muro e Av. Castelo Branco, com sacos permeáveis à entrada de água preenchidos com areia misturada com cimento, borrachas e parafusos. Sugerimos prioridade para a comporta 14 que invadiu o bairro Navegantes;

2.2 – Também com mergulhadores vedar as comportas e colocar ensecadeiras nas Casas de Bombas com Stop Logs, solda subaquática e bolsas infláveis de vedação;

2.3 – Vedar hermeticamente as tampas violadas dos Condutos Forçados Polônia e Álvaro Chaves;

2.4 – Com as Casas de Bombas secas e protegidas por ensecadeiras, reenergizá-las, o que pode ser realizado com redes paralelas de cabos isolados pela Equatorial. Se assim não for possível, utilizar diretamente nas Casas de Bombas geradores movidos a combustível;

2.5 – Caso não seja possível operar imediatamente as Casas de Bombas, utilizar bombas volantes de grande vazão para drenar o Centro Histórico e os bairros da região norte da Cidade. No caso do bairro Sarandi, onde as águas superaram a cota de 6,0m e a Casa de Bombas nº 10 está completamente inundada, é certo que serão necessárias bombas volantes;

Com as comportas vedadas e conseguindo fazer operar as Casas de Bombas ou com bombas volantes as águas internas de Porto Alegre poderão ser bombeadas para o Guaíba, sem que retornem.

Gabriel Brito é jornalista, repórter do Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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