“Na reconstrução do RS, devem ser aplicadas as resoluções das Conferências do Clima”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 25/06/2024
Completam-se dois meses de destruição do estado do Rio Grande do Sul após fortes chuvas, causadas pelo encontro da massa de ar frio do sul do continente com as ondas de calor cada vez maiores de um Centro-Oeste que vê seu Pantanal em chamas neste momento. As correlações são inevitáveis. Se de um lado o governo federal prioriza a reconstrução do RS, de outro a ideologia da austeridade impede ações estruturais de combate ao caos ambiental. Enquanto isso, no âmbito local os governos de direita, a exemplo de Leite no estado e Melo em Porto Alegre, tentam sair da tragédia com as mesmas ideias e práticas que a produziram. Essa é a síntese essencial da análise de Vicente Rauber, ex-diretor do extinto Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), em nova entrevista ao Correio da Cidadania.
Na conversa, o engenheiro toma como ponto de partida a devastação da natureza, a fim de ilustrar que não se trata de um fenômeno isolado. Além disso, como na entrevista anterior, denuncia os governos locais por não utilizarem um corpo técnico já disponível que seria capaz de mitigar os danos, a exemplo dos persistentes alagamentos de Porto Alegre, e orientar a reconstrução. O chamado a consultorias estrangeiras nada mais é do que uma fuga.
“O problema é como e por que foram chamados os holandeses. Todas(as) os(as) técnicos(as), ex-dirigentes, pesquisadores e trabalhadores locais foram não só ignorados como agredidos. Ou mais uma vez prevaleceu o ‘espírito vira-lata’ ou tentou-se criar um ‘grande fato’ para desviar a sua própria parcela de responsabilidade na lamentável catástrofe”, criticou.
Em sua crítica, Vicente Rauber é enfático em destacar que é necessária uma virada imediata na gestão ambiental e na importância concedida a seus órgãos de controle e fiscalização na administração pública. “No estado existem 25 Comitês de Bacias Hidrográficas, que deveriam cumprir um papel completamente relevante na harmonização das águas com a terra e do adequado uso das águas, mas estão morrendo à mingua sem as menores condições de funcionamento”.
Por fim, o engenheiro, com passagens em diversas esferas do setor público, como Petrobrás, Operador Nacional do Sistema Elétrico e diversas instituições de fomento do RS, fala daquilo que quase ninguém se dispõe a mencionar: o capitalismo, modo de produção e reprodução social que a cada dia se mostra mais incompatível com a preservação ambiental e o bem estar social. É isso que, no final das contas, bloqueia qualquer medida séria de prevenção, mitigação e adaptação climática.
“Temos que negar os negacionistas! Sejam eles supostos grandes cientistas, sejam eles governantes, legisladores e juízes e construir um mundo sustentável econômica e ambientalmente! No contexto da Reconstrução do RS, devem ser aplicadas mais intensa e celeremente as dezenas de Resoluções já produzidas nas Conferências do Clima, ainda que consideradas insuficientes, especialmente nos municípios, aspecto também válido também para os demais municípios brasileiros”, resume.
Correio da Cidadania: Como avalia o atual estágio do processo de desalagamento de Porto Alegre e região metropolitana? Poderia estar mais avançado?
Vicente Rauber: Vamos começar tentando entender como aqui chegamos. Nos anos recentes a natureza avisou fortemente o planeta Terra, especialmente seus governantes, que o seu limite de resiliência havia sido superado, provocando os sérios distúrbios com excessos de calor, frio, chuvas e secas. Na COP (Conferência das Partes) 25, em Madrid, em 2019, os Países integrantes, o Brasil entre eles, decidiram controlar suficientemente os GEEs (Gases de Efeito Estufa) para que o aquecimento global chegasse a ser superior a 1,5 grau - em relação à média anterior ao período industrial - somente em 2040. O mundo ultrapassou esta marca em muito no ano passado! Vimos a Amazônia, a maior reserva de água doce do Planeta, secando terrivelmente. Vemos a maior quantidade de focos de fogo até então ocorrida nesta região, e a destruição do Pantanal.
Aqui no RS a natureza nos avisou fortemente em setembro e novembro do ano passado. Este ano de 2024 resolveu gritar: o maior desastre ambiental já vivido no estado. Em Porto Alegre a inundação poderia ter sido evitada em grande parte, bastava que o seu Sistema de Proteção contra Inundações tivesse recebido minimamente as manutenções necessárias e ser operado adequadamente. Não foi e nem está sendo!
A principal responsável pela retirada das águas excedentes na cidade é a Lei da Gravidade, à medida que as águas da Bacia do Guaíba escoam para a Lagoa dos Patos e daí, para o mar. Desde a semana passada temos um repique das chuvas que voltaram a inundar diversas cidades e chegaram próximo à cota de inundação em Porto Alegre.
Correio da Cidadania: Como analisa a atuação do poder público na cidade, em termos de retomada da normalidade cotidiana e zeladoria da cidade neste momento?
Vicente Rauber: Em 1843 o escritor dinamarquês Cristian Andersen criou o Patinho Feio. Quem é o Patinho Feio das políticas públicas é o Saneamento Ambiental. Sua importância para a saúde, segurança, educação e economia públicas é extraordinária!
No início dos anos 2000, o Saneamento Ambiental tinha vida de Cisne em Porto Alegre. Éramos a única capital brasileira que contava com todas as suas áreas sob a sua gestão, com três Departamentos Extraordinários: DMAE (Água e Esgotos), DMLU (Lixo Urbano) e DEP (Esgotos Pluviais). Tínhamos a primeira Secretaria de Meio Ambiente Municipal criada no Brasil (1976), então chamada SMAM.
A atuação conjunta e integrada destes órgãos era decidida no Fórum Municipal de Saneamento e Meio Ambiente. Vide o folheto do Programa “Arroio não é Valão”, que produzimos à época. Ou seja, havia uma educação ambiental. A primeira rodada do Orçamento Participativo decidiu o Saneamento Ambiental como prioridade de investimentos com 60% dos votos. Estas estruturas (e seus orçamentos) foram fortemente sucateadas, fundamentalmente nas duas últimas gestões. A SMAM sequer existe mais, tem suas funções diluídas em outra Secretaria.
Correio da Cidadania: E assim ficaram afetados serviços básicos de manutenção, como drenagem e prevenção a enchentes?
Vicente Rauber: Sim. A drenagem urbana e proteção contra inundações são espécies de filho bastardo do Saneamento Ambiental. Porto Alegre viveu este dilema em 1970, quando estabeleceu a “Comissão de Águas Pluviais” que sugeriu a criação do DEP – Departamento de Esgotos Pluviais –, feita em 1973 e que até 1990 atuou fortemente em conjunto com o DNOS, concluindo o Sistema de Proteção contra Inundações e conservando-o adequadamente. Boa parte do Sistema de Drenagem também foi construída e mantida.
A partida de 1990, o DEP, mesmo sem a parceria federal, teve atuação gigante, não só mantendo e operando o Sistema de Proteção, como enfrentando centenas de regiões de alagamentos e recuperando os 20 arroios, as verdadeiras artérias pluviais de uma cidade. Éramos a única capital brasileira com um órgão de primeiro escalão atuando nesta área.
Em 2017 o DEP foi fortemente sucateado e, em nome da “modernidade” e “porque lá havia corrupção” (crimes devem ser combatidos e eliminados, jamais justificam o fechamento de um órgão público essencial), extinguiu-se o DEP, ou seja, retrocedeu-se 47 anos!
O DMAE, cujo desmonte está em andamento para a sua privatização, conta somente com 1079 heroicos trabalhadores, de um quadro de 3500 postos de trabalho. O DMLU sequer consegue realizar uma coleta satisfatória em tempo normal e praticamente extinguiu a reciclagem de resíduos.
Como faz falta uma atuação forte destas estruturas eliminadas e sucateadas, neste momento de reconstrução! Óbvio que estamos devagar, de mal a pior! Quem nos auxilia enormemente é o Governo Federal aqui presente o tempo todo com todas as suas estruturas coordenadas pelo Ministério Extraordinário de Reconstrução do RS.
Correio da Cidadania: Houve uma reunião com uma comitiva de pesquisadores holandeses, que fez avaliações da solução e sugeriu soluções. O que você pode comentar das conclusões dos europeus?
Vicente Rauber: Nada mais do que já sabíamos! Ratificaram o que nós 48 signatários da “Manifestação aos Porto-alegrenses sobre o Sistema de Proteção Contra Inundações de Porto Alegre” havíamos afirmado em 13 de maio passado. O que ainda foi ratificado por dossiê feito por Engenheiros do DMAE, ex-Engenheiros e trabalhadores de extinto DEP, inúmeros pesquisadores e todos(as) que conhecem este Sistema e seu funcionamento: necessita de manutenção ordinária e corriqueira para o seu adequado funcionamento. Em relação de atividades publicadas pela Direção do DMAE, desde 2021, não há nenhum recurso para manutenção ou investimento nas comportas e Casa de Bombas, elementos críticos no funcionamento do Sistema.
“É necessário recuperar a integridade do Sistema, fazer o monitoramento de seus níveis de integridade. Monitorar vazões e ventos, com alertas para a população. Criação de um Sistema Integrado no Estado”, disseram os holandeses. Ouvir holandeses não é problema, afinal, nos Países Baixos (nome oficial deste país) 70% de sua população sobrevivem em 2/3 de sua área abaixo do nível do Mar do Norte graças à proteção de diques (mesmo recurso utilizado em nosso Sistema). As crianças, quando vão às praias, fazem diques de areia ao invés de castelos de areia.
O problema é como e por que foram chamados os holandeses. Todas(as) os(as) técnicos(as), ex-dirigentes, pesquisadores e trabalhadores locais, acima citados, foram não só ignorados como agredidos. Ou mais uma vez prevaleceu o “espírito vira-lata” ou tentou-se criar um “grande fato” para desviar a sua própria parcela de responsabilidade na lamentável catástrofe.
Correio da Cidadania: Este é um ponto que parece sensível. Por que a prefeitura, assim como o governo estadual, se recusa a ouvir as instituições públicas do estado e da cidade e seu corpo de especialistas a respeito das questões de mitigação dos impactos climáticos e planos de reconstrução?
Vicente Rauber: Tem escolhido alguns técnicos de suas relações ou próximos. Estão trazendo grandes consultorias internacionais, ao invés de estruturar-se para resolver os problemas locais. É o prevalecimento do privatismo (e do “viralatismo” talvez) na solução de problemas públicos relevantes.
No estado existem 25 Comitês de Bacias Hidrográficas, que deveriam cumprir um papel completamente relevante na harmonização das águas com a terra e do adequado uso das águas, estão morrendo à mingua sem as menores condições de funcionamento.
Correio da Cidadania: O que pensa da ação de alguns opositores do governo estadual, no sentido de revogar as alterações na legislação ambiental feita por Eduardo Leite?
Vicente Rauber: A natureza tem nos avisado: senhores e senhoras humanos, especialmente poderes públicos, tratem de recuperar-me ou eu não seguro mais a integridade deste mundão!
Temos que negar os negacionistas! Sejam eles supostos grandes cientistas, sejam eles governantes, legisladores e juízes e construir um mundo sustentável econômica e ambientalmente!
Correio da Cidadania: Acha que as lideranças do estado assimilar o tamanho da catástrofe ou ainda estamos longe de uma reação à altura dos desafios deste tempo histórico?
Vicente Rauber: Estamos longe! A reconstrução do RS precisa de caminhos com sustentabilidade ambiental. Há esforços do Governo Federal neste sentido. Daqui pra frente, seja no RS, seja no Brasil e no planeta precisamos de novas atitudes, modos de produção sustentáveis (que, ao contrário do que se prega, são menos caros e mais eficientes), e modos de vida mais harmoniosos. Prevenir é o melhor remédio, dói menos, custa menos e propicia mais qualidade de vida!
Correio da Cidadania: Quais medidas você considerar essencial para a reconstrução do estado? Precisamos colocar órgãos de fiscalização e manejo ambiental em novo nível de importância administrativa?
Vicente Rauber: No contexto da Reconstrução do RS devem ser aplicadas mais intensa e celeremente as dezenas de Resoluções já produzidas nas COPs, ainda que consideradas insuficientes, especialmente nos municípios, aspecto também válido também para os demais municípios brasileiros.
Em especial, devem ser tomadas medidas como:
- Valorização e reestruturação do Saneamento ambiental, incluindo técnicas como cidades esponjas;
- Reassentamento de áreas de risco, como programa permanente e prioritário de habitação social, especialmente as existentes na beira e próximas de águas e em encostas. As áreas liberadas devem ser transformadas em áreas verdes com vegetação captadora de GEEs;
- Criação de corredores verdes, vide exemplo de Medellín, na Colômbia;
- Melhoria da coleta de resíduos e intensificação do reuso e reciclagem de resíduos, especialmente materiais plásticos. Conscientizar e, se necessário, coibir o lançamento de resíduos em águas;
- Terra nua é palavrão muito feio! As camadas superiores são arrastadas para canalizações, arroios e rios. A terra então degradada é geradora de GEEs.
- Incentivo a maior geração de energia elétrica renovável e uso de biocombustíveis;
- Valorização e aceleração do uso de veículos elétricos.
Leia também:
Por blindagem política, Porto Alegre ignora plano que pode acabar com enchentes em 48 horas – entrevista com Vicente Rauber publicada em 27 de maio.
Leia o documento assinado por 42 especialistas sobre como tirar as águas de Porto Alegre.
Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.
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