Correio da Cidadania

Bastidores do licenciamento do complexo hidrelétrico de São Luiz do Tapajós: Terras Indígenas

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O risco para a sobrevivência dos indígenas Munduruku

O processo de licenciamento da Usina Hidrelétrica São Luís do Tapajós já estava fora do nosso radar. Recordo que em 2016, a então presidente do Ibama, Suely Araujo, decidiu arquivar o licenciamento ambiental do empreendimento. Com a já comprovada falta de viabilidade ambiental, a decisão da presidente do Ibama foi baseada, também, em conclusões da diretora de Licenciamento, Rose Hofmann, que cravou mais inconsistências no então projeto, que de uma hidrelétrica acabou virando um conjunto de cinco grandes hidrelétricas. Sim, aconteceu durante o processo no Ibama que teve início em 2009. Vou contar essa história a seguir.

A diretora de licenciamento argumentou que a construção dos empreendimentos geraria a necessidade de remover grupos indígenas, e acrescentou que os impactos da construção da hidrelétrica seriam irreversíveis, acompanhados de impedimentos legais e inconstitucionais que inviabilizavam a emissão da licença ambiental. Além disso, a Fundação Nacional do Índio (Funai), em um parecer, apontou a inexistência de lei regulamentadora e a vedação constitucional à remoção permanente dos indígenas. 

O parecer da diretoria do Ibama também demonstrou que o empreendedor não cumprira os prazos para apresentação de informações complementares, pedidas pela equipe técnica, fato que por si só implicaria no arquivamento do processo, apesar de os estudos terem sido aceitos para análise, em 2014. O parecer seguiu para a presidente do Ibama, Suely Araujo, que tinha a discricionariedade para aceitar ou não os argumentos da equipe técnica e a conclusão da diretora Rose Hofman. Ela os deferiu e impediu, naquela época, a destruição do rio Tapajós e seus povos.

A pressão da sociedade civil, povos tradicionais, pesquisadores e professores, acabou por enterrar por um tempo um projeto muito discutido e alvo de várias ações judiciais. Se construído, o Complexo Hidrelétrico de São Luiz do Tapajós poderia afetar diretamente terras indígenas, principalmente as pertencentes ao povo Munduruku. Para contextualizar, acrescento abaixo uma breve informação sobre as terras que sofreriam os impactos decorrentes de uma possível retomada dos projetos no rio Tapajós.

  • Terra Indígena Sawré Muybu: seria a terra totalmente afetada pela área inundada da barragem;
  • Terra Indígena Praia do Índio: próxima a Itaituba, esta área estaria na região de impacto indireto;
  • Terra Indígena Praia do Mangue: também próxima a Itaituba, estaria na área de impacto indireto;
  • Terra Indígena Munduruku: parte dessa grande área do povo Munduruku seria inundada pela hidrelétrica Chacorão;
  • Terra Indígena André Miran: uma porção dessa terra, do povo Sataré-Mawé, está na área que receberia impacto indireto;
  • Além dos impactos que os indígenas dessas áreas sofreriam, eles se somariam aos problemas já existentes de desmatamento, perda de biodiversidade e impactos culturais e sociais.

Antes de entrar nos bastidores do licenciamento dos projetos no rio Tapajós e no mergulho que fiz no processo que tramitou no Ibama, é importante acrescentar a posição do atual governo brasileiro em relação à proteção das terras indígenas que sofreriam os impactos de uma possível viabilização das cinco hidrelétricas. 

1) A Demarcação das terras indígenas tem sofrido críticas pelos atrasos e dificuldades influenciadas pela política decorrente da tese do marco temporal;

2) o PL 2.903/2023 é justamente aquele que tenta mudar o artigo 231 da Constituição brasileira com relação ao reconhecimento e demarcação das terras indígenas, pois flexibiliza os direitos ancestrais dos povos, e adota uma política que permite apropriação de suas terras por invasores;

3) mais preocupante ainda seria a disposição do governo federal de dar participação financeira – 0,7 % da energia que seria produzida -  às comunidades indígenas afetadas;

4) tentativa frágil de fiscalizar e proteger terras indígenas.

De outro lado, há protestos e mobilizações do povo Munduruku, como estradas bloqueadas, ocupação de sedes do governo e acompanhamento passo a passo das ações governamentais e sobre as tomadas de decisão da Eletrobras, principal interessada na retomada dos projetos depois da privatização.

A sociedade civil tem tido uma atuação bastante conservadora e fraca em suas campanhas de sensibilização: sem renovação dos argumentos mais importantes como o olhar internacional sobre a importância da Amazônia e da consulta aos povos indígenas sobre o futuro do rio Tapajós diante da mudança climática que afetará sua dinâmica, sobre o projeto do governo de integração regional que transforma o Tapajós numa hidrovia com eclusas e altera a face da região com o incremento das commodities agrícolas e minerárias.

A verdadeira história da UHE São Luiz do Tapajós

É necessário voltar na história que remonta a 2009 para entender como o processo de licenciamento foi viciado e alterado pelo governo federal. Em 26 de maio de 2009, o então diretor de licenciamento do Ibama, Sebastião Custodio Pires, encaminhou o memorando nº 106/DILIC/IBAMA ao Protocolo Geral, aos cuidados da Sra. Luciana de Oliveira, com a ficha técnica para abertura do processo de licenciamento solicitado pelas Centrais Elétricas do Norte do Brasil (Eletronorte).

Na ficha técnica – preenchida pelo empreendedor no dia 25 de maio de 2009, às 13:22:57, constam os dados principais iniciais do empreendimento a ser licenciado. Usina hidrelétrica, a fio d’água, com potência instalada de 6.133 MW, barragem de 3.483m, 33 turbinas, eixo da barragem em Itaituba/PA, área do reservatório de 722,25 km², cota máxima de operação 50m, comprimento do reservatório de 117 km, municípios afetados Itaituba e Trairão (PA). Consta, ainda, uma observação sobre o rio não ser navegável em toda a sua extensão.

Este momento requer uma observação, pois o rio, ainda sem barragem, não era navegável à época, e a região de São Luiz do Tapajós é famosa pelos seus pedrais.

Outra observação importante sobre os dados na ficha técnica: o empreendedor não menciona a existência de terras indígenas, apesar de ter a localização exata, amparada pelas coordenadas, dos dados da barragem e do reservatório. Três dias depois (29 de junho de 2009) de protocolada a ficha técnica pela Eletronorte, no Ibama, o Termo de Referência, foi anexado ao processo de licenciamento. É importante ressaltar que um termo de referência (TR) é um documento específico, muito complexo elaborado pela equipe técnica do Ibama, com absoluto detalhamento, que vai orientar em detalhes o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA). Menos de 72 horas depois o TR foi emitido para uma hidrelétrica: São Luiz do Tapajós.

Outro detalhe que merece menção foi o que aconteceu menos de um mês depois de protocolada a ficha técnica, em 16 de junho de 2009: o presidente do Ibama, Rômulo José Fernandes Barreto Mello, recebeu um ofício da Diretora de Licenciamento Ambiental Substituta, Rosa Helena Zago Loes, encaminhando um pedido para que o Termo de Referência do Estudo de Impacto Ambiental abrangesse as cinco usinas em tela. Mas, a ficha preenchida pela Eletronorte e encaminhada à Diretoria de Licenciamento, menos de um mês antes, em 26 de maio de 2009, só se refere a uma hidrelétrica, a São Luiz do Tapajós (1). Não havia mais nada “em tela”. Em menos de um mês criaram um complexo no rio Tapajós com cinco hidrelétricas.

Chegamos ao fim da primeira parte. A segunda parte, a ser publicada ainda nesta semana, é ainda pior: trataremos de um decreto do Presidente Lula para tocar as hidrelétricas no Tapajós... Contaremos na Parte 2.

Nota:

1) https://licenciamento.ibama.gov.br/Hidreletricas/S%c3%a3o%20Luiz%20do%20Tapajos/Processo/UHE%20S%c3%a3o%20Luiz%20do%20Tapaj%c3%b3s%20-%20Vol.01.pdf  

 

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Telma Monteiro

Ativista sócio-ambiental, pesquisadora e educadora

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