Correio da Cidadania

“Não sabemos pensar o socialismo hoje, mas a esquerda não pode abdicar do horizonte emancipatório universal”

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José Maurício Domingues — Instituto de Estudos Avançados da Universidade de  São Paulo
Com as eleições municipais praticamente encerradas, à espera apenas de realização de segundo turno em algumas grandes cidades, o Brasil absorve resultados que revelam inequívoca vitória das direitas. Como explica o sociólogo José Maurício Domingues, apenas reforçaram tendência estabelecida em 2016. No entanto, mais que isso, estamos diante de um fenômeno de “reoligarquização” da incompleta democracia no país, processo amplificado por uma anemia ideológica de esquerdas que, paradoxalmente, reproduzem tal dinâmica em suas próprias estruturas.

Em termos práticos, o resultado eleitoral é um reiterado reflexo da retomada da direção do Estado brasileiro pelo grande capital e seus grupos de representação, cujo controle do orçamento se aprofunda a ponto de recolocar o país numa inusitada rota rumo a um passado que remete ao início da República.

“No Brasil as coisas se complicam na medida em que o neopatrimonislismo – o qual alguns tolamente querem negar ou atribuir menos importância – é muito forte no funcionamento do Estado e do sistema político em particular, como se viu nas últimas eleições. As emendas secretas ou agora Pix, inventadas para aproveitar-se de um presidente que, embora autoritário, era fraco em especial frente ao Congresso, tornaram-se um mecanismo extremamente perverso do ponto de vista democrático e inclusive do funcionamento do Estado”, afirma o autor de Uma esquerda para o século XXI – horizontes, estratégias, identidades.

Enquanto se amplificam análises de matizes variados a declarar óbitos e incapacidades das esquerdas em se comunicar, em especial com as classes subalternas, Domingues coloca o atual contexto em perspectiva histórica, dentro e fora do país, tônica de seus trabalhos. Para ele, há um processo de desdemocratização em andamento desde os anos 70, em consonância com a ascensão do neoliberalismo e sua versão de capitalismo. Em meio a isso, esquerdas que ainda estão num limbo de desmoralização e acomodação causado pelo fim da União Soviética.

“Nesse sentido, o financiamento público – e obviamente o empresarial de campanha mais ainda – é apenas um mal menor, pois torna os partidos independentes de suas bases sociais (como o imposto sindical em boa medida também, cujo fim levou a uma crise sindical sem precedentes) e da militância política. O problema se complica na medida em que os partidos estão muito satisfeitos com essa situação”.

No âmbito brasileiro, nem uma virada de Guilherme Boulos no segundo turno da eleição contra Ricardo Nunes, na maior cidade do país, altera o quadro aqui exposto. Possivelmente, pode até agravá-lo, uma vez que reforça uma ilusão de gestões de esquerdas que pouco podem aplicar de seu programa real, cercadas de parlamentares conservadores e aliados do poder econômico. E seu partido, o PSOL, que se apresentou na política como uma oposição socialista aos caminhos tomados pelo PT, representa de forma mais evidente os dilemas aqui debatidos.

“O PSOL se divide entre uma adesão ao lulismo sem nenhum projeto que o diferencie e uma política que não é capaz de entender que precisamos de um bloco histórico amplo e renovado para retomar o caminho das pedras da democracia e da mudança social. Aliás, o PT também não. No fundo não sai de sua perspectiva de hegemonia – que disfarça por trás da força de Lula. O fato, porém, é que as lutas sociais estão muito arrefecidas no Brasil e reconstruir nesse contexto uma esquerda que seja combativa e ao mesmo tempo ampla, pensando o Brasil de maneira republicana e com um projeto nacional, não é nada fácil”.

Em linhas gerais, há uma longa travessia a ser feita. Os ideais pós-capitalistas ou socialistas foram relegados a um segundo plano na gramática das lutas e percepções populares. Mas numa quadra histórica de colapso do metabolismo capitalista, refletido em crescentes tragédias ambientais, é absurdo afirmar sua perda de sentido. Resta saber quais atores políticos e sociais serão capazes de amalgamar todas as frustrações e anseios legítimos do ser humano.

“As tecnologias avançaram, a destruição ambiental se agravou com a mudança climática, a desigualdade aumentou, as pessoas continuam interessadas na política, apesar de sua crescente oligarquização; elas respeitam em geral o Estado, embora apostem também em suas próprias forças para melhorar de vida. Cabe à esquerda acentuar a dimensão da organização e soluções coletivas, sem opô-las às soluções e iniciativas individuais, o que também seria uma novidade”.

Leia a entrevista completa a seguir.

Correio da Cidadania: Quais as suas conclusões iniciais sobre os resultados das eleições municipais no Brasil? O que permitem elaborar sobre correlações de forças?

José Mauricio Domingues: As eleições de 2024 seguem o padrão de regulares derrotas da esquerda nos últimos anos. Um país de centro-direita se consolidou com essas eleições municipais, com ainda grande influência e consolidação da extrema-direita. Lembremos que mesmo em 2022 a vitória de Lula se deu por um triz, contra um candidato que havia cometido atrocidades durante a pandemia. E a vitória de uma frente ampla muito capenga se deu em larga medida pela força política pessoal de Lula, que sempre manteve uma posição ambígua quanto a uma frente democrática contra a extrema-direita.

Desta feita, se Bolsonaro não se saiu tão bem como gostaria, seu campo, indo da direita à extrema-direita, não foi nada mal na eleição, ainda que longe da hegemonia a que aspira, com uma centro-direita ou centro pura e simplesmente fazendo também avanços. Nesse sentido, mas só neste, o cenário é nebuloso, ao que se acrescentam disputas dentro das próprias direita e extrema-direita.

Correio da Cidadania: Como avalia o desempenho das esquerdas? Ainda se vive um refluxo regular e contínuo desde 2016?

José Mauricio Domingues: O desempenho das esquerdas foi muito ruim, seguindo o padrão estabelecido desde as eleições municipais já de 2016. O PT se segurou mais ou menos, mas para isso sugou os votos de outros partidos da esquerda amplamente concebida, como em 2022. O PDT, o PCdoB e o PV foram muito mal. O PSB se segurou, mas o PSOL e Rede enfrentaram muitas dificuldades. Sem dúvida, neste momento uma improvável vitória de Boulos em São Paulo amenizaria – mas de maneira alguma reverteria – essa situação de derrota.

Correio da Cidadania: Ainda sobre os resultados eleitorais, vemos uma forte relação entre os bilhões de reais acumulados por parlamentares, e mais diretamente um Centrão, fortalecidos desde o governo Temer, que jorraram pelas cidades beneficiadas por uma relação direta entre tais políticos e suas alianças locais. Em 2022 também já se viu alta taxa de reeleição no congresso nacional, em dinâmica que guardava evidentes vínculos com o aumento das verbas parlamentares, como o famoso “orçamento secreto”. Em linhas gerais, estaríamos diante de uma restauração oligárquica, algo como uma reprodução “moderna” do fenômeno do coronelismo? Acha esse paralelo cabível?

José Mauricio Domingues: Esse paralelo é certamente cabível. Devemos partir da constatação de que a democracia liberal – representativa – é um regime político misto. Ela tem elementos democráticos cruciais e que devemos defender, como o debate aberto, a liberdade de organização e manifestação, o direito de votar e ser votado, porém, contém um núcleo oligárquico onde quer que tenha existido e exista. Na verdade, foi assim pensada por muitos de seus proponentes iniciais. Ela se democratizou no século 20, mas desde os anos 1970 vem se tornando mais oligárquica, mediante vários mecanismos – em que o dinheiro e os diversos aparelhos de Estado, bem como uma visão estreita neoliberal, têm jogado papel central.

No Brasil as coisas se complicam na medida em que o neopatrimonislismo – o qual alguns tolamente querem negar ou atribuir menos importância – é muito forte no funcionamento do Estado e do sistema político em particular, como se viu nas últimas eleições. As emendas secretas ou agora Pix, inventadas para aproveitar-se de um presidente que, embora autoritário, era fraco em especial frente ao Congresso, tornaram-se um mecanismo extremamente perverso do ponto de vista democrático e inclusive do funcionamento do Estado.

Os parlamentares garantem a reprodução de seu poder político, os donos dos partidos se fazem mais fortes e, ao que tudo indica, como faziam (e também ao que parece ainda fazem, se bem que em menor escala) com o financiamento empresarial, usam essas emendas para fazer “negócios” absolutamente intransparentes e provavelmente atravessados pela corrupção.

Correio da Cidadania: Em 2021, fizemos uma entrevista que acabou marcada pela afirmação “Devemos desoligarquizar a democracia brasileira, inclusive na esquerda”, que ainda tomava o Chile, que vivia seu “estallido” como inspiração, ideia que aparece como central em seu livro publicado neste mesmo ano. Recentemente, o cientista político uruguaio Raul Zibechi publicou artigo no qual elabora uma ideia de “elitização” das esquerdas, noção compartilhada pela nova liderança socialista alemã, Sahra Wagenknecht. O que seria essa oligarquização/elitização das esquerdas e como reverter esta dinâmica?

José Mauricio Domingues: De fato, como a democracia liberal representativa inevitavelmente tem um núcleo oligárquico, esse é um problema quase intratável. A esquerda nunca lhe deu atenção porque acreditava que bastava quebrar o poder das “classes dominantes” para resolver o problema. Estaria ela mesma, esquerda, isenta de ambições políticas e tratava o poder político como se este em si não fosse um problema, reproduzindo o economicismo que sempre a atrapalhou. Os cidadãos do “socialismo real”, que prefiro definir como coletivismo autoritário, que o digam. Todas as formas de poder, na medida em que se apresentam como verticais e hierárquicas, são um problema, ainda que elas mesmas sejam em larga medida inevitáveis em sociedades complexas como as sociedades modernas avançadas em que estamos. Foi isso que os chilenos denunciaram nas manifestações de 2019 e depois.

Pelo menos durante o século 20 os grandes partidos de esquerda organizaram as grandes massas, como o SPD (Partido Social Democrata Alemão) e o PCI (Partido Comunista Italiano, o peronismo (embora não fosse de esquerda) e, enfim, o próprio PT, fizeram. Hoje, esses partidos giram no vazio, não têm laços fortes com a sociedade e o sistema político societal (o que muitas vezes se chama, de maneira vaga, de “sociedade civil”, o que despolitiza em boa medida a dinâmica política da sociedade, para além do Estado). Nesse sentido, o financiamento público – e obviamente o empresarial de campanha mais ainda – é apenas um mal menor, pois torna os partidos independentes de suas bases sociais (como o imposto sindical em boa medida também, cujo fim levou a uma crise sindical sem precedentes) e da militância política.

O problema se complica na medida em que os partidos estão muito satisfeitos com essa situação. Basta ver a voracidade da direção do PT em relação ao bilionário e escandaloso fundo partidário, o que contamina até mesmo o PSOL. Ele pode ajudar a equilibrar o jogo com os partidos de direita, mas torna as máquinas partidárias cada vez mais autônomas. Deveria ser drasticamente limitado, sem que se volte, é óbvio, ao famigerado financiamento privado de campanha, que até do ponto de vista individual deveria ser restrito. Para democratizar a democracia é preciso democratizar os partidos antes de tudo, sobretudo os de esquerda. Mas é exatamente isso que os aparelhos e sobretudo suas direções não querem fazer de jeito nenhum!

Correio da Cidadania: Mais propriamente o PSOL, que ainda pode mudar a percepção da esquerda com uma eventual vitória de Guilherme Boulos em São Paulo, mas não obteve avanço geral, o partido não corre o risco de se dissolver na geleia da política parlamentar e se converter em mais um “partido da ordem”?

José Mauricio Domingues: O PSOL a meu ver cometeu erros repetidos. Na conjuntura do golpe parlamentar de 2016 suas opções eram reduzidas. Suas correntes majoritárias se aliaram sem qualquer crítica a Lula e ao PT, denunciando o que definiram como mera perseguição à esquerda. Sem dúvida, defender a institucionalidade democrática era fundamental, mas o PSOL perdeu sua identidade no processo. Cabe perguntar se rejeição a Boulos não deriva em larga medida disso – ele abriu sua campanha presidencial dizendo que quem deveria estar lá era o presidente Lula, algo absolutamente inédito. Ficou com o desgaste sem ter a força de Lula.

Mesmo que parte das críticas à Operação Lava Jato fizessem sentido (mas jamais convenceram a maior parte da sociedade brasileira, diga o que disser a esquerda), essa corrente do PSOL levou sua subordinação ao PT longe demais. Por outro lado, o PSOL acertou ao defender uma frente ampla democrática contra o bolsonarismo nas eleições de 2022, ainda que, de novo, suas correntes mais fortes se mostrem muito subservientes ao PT. Isso não muda por ser Boulos o cabeça de chapa em São Paulo, uma vez que é o mais petista, ou lulista, dos psolistas – e assim é visto pelos eleitores. Por outro lado, os grupos trotskistas do PSOL – se bem que em sua maioria eles também tenham corretamente apostado na frente ampla democrática – não conseguem enxergar para além de uma suposta organização da classe trabalhadora no longo prazo e uma política quase puro sangue.

Ou seja, o PSOL se divide entre uma adesão ao lulismo sem nenhum projeto que o diferencie e uma política que não é capaz de entender que precisamos de um bloco histórico amplo e renovado para retomar o caminho das pedras da democracia e da mudança social. Aliás, o PT também não. No fundo não sai de sua perspectiva de hegemonia – que disfarça por trás da força de Lula. O fato, porém, é que as lutas sociais estão muito arrefecidas no Brasil e reconstruir nesse contexto uma esquerda que seja combativa e ao mesmo tempo ampla, pensando o Brasil de maneira republicana e com um projeto nacional, não é nada fácil.

Não há como voltar ao passado – o PSOL não pode ser o PT dos anos 1980, aliás nem mesmo o PT pode recuperar isso, ao contrário do que desejariam alguns de seus dirigentes mais à esquerda, certamente minoritários. Por ter uma ala esquerda internamente mais forte e numerosa, apesar daqueles que dominam hoje seus aparelhos, o PSOL me parece evidenciar ainda mais fortemente os dilemas da esquerda. Enfim, se virar uma imitação do PT, perde até mesmo sua razão de ser. Torna-se “partido da ordem” sem sequer ter organizado as lutas sociais com uma extensão e intensidade razoáveis.

Correio da Cidadania: Ao mesmo tempo, vivemos um presente onde as contradições e mesmo tragédias geradas pelo metabolismo capitalista em sua reprodução social, espacial e econômica se ampliam acima das capacidades de defesa da humanidade. Este “novo normal” ambiental não deveria estar acelerando uma retomada de uma agenda radical nas esquerdas?

José Mauricio Domingues: A agenda da esquerda – ou de uma parte ao menos da esquerda, para ser mais preciso – precisa ter elementos muito fortes de radicalidade. Desigualdades sociais brutais, mudança climática, desdemocratização, racismo, patriarquia e discriminações contra sexualidade heterodoxas: problemas e iniquidades não faltam. É aceitável que algumas de suas correntes sejam mais inclinadas ao centro (embora propor a incorporação de Artur Lira ao governo já seja render-se demais às oligarquias políticas dominantes). Esse pode ser o caso do PT e do PSB. A esperança de que isso mude, que alguns manifestam, me parece totalmente vã. Mas outras forças só têm sua justificativa – e este é o caso do PSOL – se apostam em uma agenda radical e se organizam as massas.

Nesse sentido, é preciso parar de falar de “pobres” e passar a se engajar com os cidadãos, os trabalhadores, os plebeus – excluídos da política pelas oligarquias políticas –, e ter propostas que enfrentem um mundo que mudou muito nos últimos 50 ou 35 anos, se tomamos o Brasil mais diretamente como referência. Isso precisa ser feito sem sectarismo e deixando de lado uma visão passadista da classe operária revolucionária que já não existe, se é que de fato algum dia existiu.

As tecnologias avançaram, a destruição ambiental se agravou com a mudança climática, a desigualdade aumentou, as pessoas continuam interessadas na política, apesar de sua crescente oligarquização; elas respeitam em geral o Estado, embora apostem também em suas próprias forças para melhorar de vida. Cabe à esquerda acentuar a dimensão da organização e soluções coletivas, sem opô-las já às soluções e iniciativas individuais, o que também seria uma novidade.

E é preciso denunciar aqueles que denunciam o identitarismo: uma agenda universal de direitos não precisa opor questões culturais e de sexualidade, sem falar do racismo, às questões materiais do mundo do trabalho. Trata-se de uma falsa solução. Ainda mais que em vastas camadas da juventude essas questões têm forte penetração. Claro, elas não devem ser sobrepostas a outras questões nem caminhar sozinhas. Não sabemos exatamente como pensar o socialismo hoje, num mundo de grandes corporações transnacionais, nem como chegar lá. A esquerda não pode, contudo, abrir mão de um horizonte emancipatório universal e todas essas questões devem estar presentes em sua agenda, bem calibradas entre si.

De nada adianta render-se ao conservadorismo de grande parte da sociedade brasileira, nem adiante inventar falsos problemas, tomando-se cuidado para evitar um discurso moralista e acusatório generalizado que afaste as pessoas, que não são obrigadas a entender sutilezas de linguagem ou modismos de comportamento. Nenhum desses é papel da esquerda. Nada é fácil nesse sentido, mas abrir mão da crítica, da mudança radical e de sua própria renovação é a antessala de uma morte em vida que pode durar muito tempo.

A essas dificuldades nacionais e locais o apoio de muitos a Maduro e ao regime cada vez mais autocrático na Venezuela, para não falar da Nicarágua e da complicada situação de Cuba, o que evidencia as ambiguidades, para dizer o mínimo, da esquerda com relação à democracia, bem como um terceiro-mundismo fora de época, com apoios à Rússia e esperanças ingênuas no nacionalismo chinês – em lugar de uma política externa independente e comprometida com a democracia sobretudo na América Latina – complicam essa equação e trazem mais problemas.

Correio da Cidadania: Ainda veremos a ultradireita no comando da narrativa “antissistema” por um bom tempo?

José Mauricio Domingues: É provável que sim. Afora o que se encontra em alguns grupos trotskistas, a esquerda está muito “nutella”, chapa branca. Tudo bem que o governo Lula e o PT se encarreguem de levar o centro consigo, mas deixar o radicalismo social de lado leva a que figuras abomináveis ocupem esse espaço. É aí que o PSOL poderia entrar, mas a campanha de Boulos fez o contrário. Para que esforçar-se para parecer de centro e a todo custo ganhar uma eleição? Não seria melhor apoiar uma candidatura mais ao centro, garantir parte de seu programa numa aliança dessa, ao mesmo tempo que mantém e aprofunda um perfil forte de esquerda?

Deixemos de lado também essa bobagem de “pobre de direita”. O “pobre” – expressão horrível ao ser utilizada politicamente, na verdade, mais respeitosamente é do cidadão, do trabalhador, do plebeu que devemos falar – não nasce com vocação de ser de esquerda. É a esquerda que tem ser capaz, pela sua visão de mundo, de seu programa e de sua militância de ganhar essas pessoas para uma visão de mundo à esquerda – contra a espontaneidade de um mundo em que o individualismo neoliberal desesperado é cada vez mais onipresente na vida de cada um.

O mesmo diz respeito à ideia de antipolítica, uma ideia autointeressada daqueles que se atrapalharam no poder visando isentarem-se da responsabilidade pelos erros e limitações da esquerda. Alguém admira ou quer a política que temos hoje e tivemos em larga medida desde sempre durante toda a república, como se tornou evidente nos últimos anos? É preciso ser antissistema! Não para destruir a democracia liberal representativa, evidentemente, mas para democratizá-la e introduzir inovações que a empurrem nessa direção, sem esperar uma hoje impossível revolução soviética.

Somente assim seremos capazes de bloquear o crescimento de um discurso oportunista, falsamente radical e profundamente neoliberal e autoritário, até criminoso, mas sedutor – um verdadeiro falso brilhante. Vai levar tempo para que essa postura que vai à raiz das coisas dê frutos. Vamos tatear e errar muito também. Se não se deve desconsiderar as alianças necessárias e os governos que bloqueiem o avanço da extrema-direita e reduzam inclusive o espaço da direita, abrindo também espaço para experiências inovadoras, fiar-se no curto-prazismo a todo custo não nos levará muito longe.

É preciso ser criativo, ousar. É claro também que isso depende da vontade das pessoas de se organizarem e lutarem. Essas energias estão ausentes no ciclo político atual, de derrota grave, falta de programa e discurso, e desmoralização da esquerda. Mas um novo ciclo que a favoreça somente virá se os trabalhos preparatórios para sua emergência e maturação forem feitos no momento atual. Obviamente, antes de tudo é preciso reconhecer que estamos mal e correr atrás do prejuízo, sem agarrar-se a soluções fáceis e fantasiosas.


Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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